Dados do Ministério da Saúde, obtidos pela Folha, mostram que ainda há baixa procura da Prep (profilaxia pré-exposição ao HIV) entre transexuais e jovens de 18 a 24 anos —grupos com maior prevalência de HIV ou que registram aumento de casos de Aids nos últimos anos.
A prevenção é composta pela associação dos antirretrovirais tenofovir e entricitabina em uma só pílula de uso diário. Se o protocolo for seguido, a eficácia chega a quase 100%, o que a torna uma das principais apostas para conter o avanço da Aids, sobretudo em grupos de maior risco.
Fazem parte da lista gays, transexuais, profissionais do sexo e casais sorodiscordantes (nos quais um dos parceiros é soropositivo). A indicação segue critérios como número de parceiros e frequência de relações desprotegidas.
Do total de usuários de Prep hoje no país, 82,7% são gays e HSH (homens que fazem sexo com homens, termo usado para designar aqueles que não se identificam como gays).
Outros 8% são mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero designado ao nascerem) e 5,9% são homens cisgênero heterossexuais. Em contrapartida, apenas 3,2% são mulheres transexuais e 0,2%, homens trans, o que preocupa especialistas.
Hoje a prevalência do vírus HIV na população geral é de 0,4%. Entre gays e homens que fazem sexo com homens, de 10,5%. Já entre transexuais o índice é de 31,2%.
“O que todos que trabalham com Prep querem é que outras populações, além dos homens que fazem sexo com homens, também busquem os serviços”, afirma a especialista Adele Benzaken.
Responsável pela implementação da Prep no SUS, Benzaken aponta outros desafios, como aumentar a parcela de usuários jovens, negros e de baixa escolaridade.
Hoje, a maior parte dos usuários são brancos e com mais de 12 anos de estudos. “Sabemos que o HIV cresce entre jovens de baixa escolaridade. É preciso ter projetos educativos sobre Prep para essa população mais vulnerável.”
Para o infectologista Esper Kallás, o acesso por pessoas com mais informação é natural no início da oferta de novos serviços. “O que é mais important: Prep para pessoa com curso superior e conhecimento das formas de transmissão ou para o adolescente negro da periferia? Claro que todo mundo precisa, mas queremos chegar principalmente no segundo grupo.”
Em São Paulo, a expansão recente da oferta da Prep para unidades localizadas em áreas periféricas tem colaborado para rever essas distorções, afirma Elza Maria Alves Ferreira, técnica do programa municipal de DTS/Aids.
“Na medida em que expandimos para a periferia começamos a ver expansão também para trans e gays com menor poder aquisitivo”, diz.
Para Tatiane Araújo, presidente da Rede Trans, o menor acesso de transexuais à Prep coincide com o cenário de exclusão vivido por essa população. “Temos problemas em todas as áreas de saúde. Imagina com algo estigmatizado como o HIV”, diz ela, que defende horários ampliados de atendimento e divulgação direcionada.
Apesar de a Prep ainda estar restrita a alguns grupos, especialistas veem de forma positiva os dados iniciais da oferta do método no SUS.
A previsão era que a profilaxia fosse ofertada para 7.000 usuários no primeiro ano na rede pública. Em 2018, 8.108 pessoas iniciaram o tratamento preventivo. Destas, 6.733 ainda o utilizam. A taxa de interrupção do tratamento foi de 11% em até 30 dias e 7% nos meses seguintes. Segundo Benzaken, o parâmetro é similar a dados internacionais.
De acordo com os especialistas, os dados de adesão à pílula, de uso diário, também estão dentro do esperado.
Há, porém, alguns impasses. Um deles é a resistência de alguns profissionais de saúde em oferecer o serviço.
Após iniciar o uso de Prep há quatro anos como voluntário na pesquisa Prep Brasil, o programador Piero Mori, 35, passou por uma situação do tipo ao buscar a pílula em um local diferente após o fim do estudo em que participava.
“A Prep ainda sofre preconceito imenso. Quando fui mudar de serviço, a assistente social falou de um jeito como se eu não devesse usar”, disse. “Como eu já tinha usado antes, sabia dos benefícios. Mas e se fosse um menino chegando pela primeira vez?”
Para ele, que hoje coordena um grupo no Facebook para tirar dúvidas de usuários, a pílula aumentou sua segurança. “Eu usava camisinha, mas sempre tem aquele momento em que você se empolga, vacila e descuida”, conta.
“Antes, vivia com medo que qualquer relação descuidada ia ser aquela em que eu ia contrair o HIV. Hoje em dia, nenhuma das minhas relações é seguida por aquele fantasma.”
Segundo ele, hoje o temor entre usuários é outro: descontinuação da política.
Neste ano, o método não foi citado na campanha de prevenção ao HIV no carnaval, focada apenas no estímulo ao uso da camisinha por homens jovens de forma geral, sem citação a gays.
Antes da troca de gestão, uma das ideias era usar a campanha justamente para ampliar a divulgação da Prep para populações-chave.
Além disso, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também tem dado sinais contraditórios em relação à profilaxia. Em alguns eventos, ele já disse que pretende mantê-la. Em outros, fez críticas.
“Acho que a Prep pode e deve ser utilizada nas indicações corretas. Mas por outro lado acho que as pessoas se cansam um pouco de fazer todo um tratamento para poder ter um comportamento de risco. É tão mais simples você usar um preservativo e ficar livre do medicamento”, afirmou no fim de fevereiro.
Para Kallás, o argumento não se justifica. “Então vamos parar de distribuir camisinha, porque é o mesmo conceito: ter uma barreira ao HIV. Só que a Prep é uma barreira farmacológica, com a vantagem de que não interfere no ato sexual.”
E quanto ao uso de camisinha? Em nota, o ministério diz que não há evidências conclusivas sobre uma possível redução ou aumento no uso dos preservativos devido à Prep, preocupação frequente em debates sobre o tema.
Estudos têm apontado redução do uso de preservativos no Brasil de uma maneira geral. Segundo a pasta, no Brasil é de 19% a proporção de usuários de Prep que declararam não usar camisinhas nenhuma vez nos últimos três meses.
O ministério lembra que o método é aplicável justamente às pessoas que não fazem uso regular de preservativos.
Esse foi um dos fatores que levou Piero a recorrer a Prep.
“Percebi que vinha abrindo mão da camisinha mais tempo do que deveria. Possivelmente hoje seria soropositivo se não fosse a Prep.”
Em nota, o Ministério da Saúde informa que está em andamento uma licitação para compra de 4,4 milhões de comprimidos de Prep para distribuição no SUS –um sinal de que a oferta da profilaxia, por enquanto, continua.
O QUE É E COMO FUNCIONA A PREP, QUE PREVINE O HIV
O que é a Prep
Pílula composta pela associação entre os antirretrovirais tenofovir e entricitabina e indicada para pessoas com maior risco de exposição ao HIV. Deve ser tomada diariamente para garantir a eficácia, apontada em pesquisas como superior a 90%
A quem é indicada
O público-alvo são populações mais vulneráveis à infecção pelo HIV, como gays e outros homens que fazem sexo com homens, transexuais, trabalhadores do sexo e casais sorodiscordantes
Para indicação são levados em conta critérios como número de parceiros sexuais, episódios repetidos de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e frequência de relações desprotegidas ou uso repetido de PEP (profilaxia pós-exposição)
Prep no SUS
8.108
é o número aproximado de pessoas que iniciaram o uso da Prep no SUS entre janeiro e dezembro de 2018
6.733
é o total daquelas ainda em uso de Prep até o fim do ano
Dados do perfil de usuários
Por grupo populacional
82,7%
Gays e homens que fazem sexo com homens
3,2%
Mulheres transexuais
0,2%
Homens transexuais
8%
Mulheres cisgênero (mesmo gênero do nascimento)
5,9%
Homens heterossexuais cisgênero
76,9% têm mais de 12 anos de escolaridade
Outros dados
31% se declararam ter parceiro com HIV (união sorodiscordante)
9% se declararam como trabalhadores do sexo
12,4% já tinham usado Prep em estudos
Dados de adesão
De 6.733 usuários:
75% relatam ter tomado todos os comprimidos no último mês de atendimento
20% deixaram de tomar um a quatro comprimidos
4% deixaram de tomar cinco ou mais comprimidos
Taxa de abandono
1.375
é o número de usuários atendidos no SUS que descontinuaram o uso, ou 16,9%
destes:
855 interromperam antes de 30 dias
520 interromperam durante o acompanhamento (o que pode ocorrer quando o usuário entende que está menos exposto ao risco de HIV, com redução de parceiros, etc)
Onde encontrar a Prep
109 serviços do SUS ofertam Prep, em 83 municípios
http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/prep-profilaxia-pre-exposicao
Fonte: Folha de São Paulo