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‘Vida de boy’: o corre dos garotos de programa no centro de São Paulo


Naquela quarta-feira, Thiago, 36, acordou animado. Era 20 de janeiro, data de pagamento para muitos assalariados. Apesar de ele não ter registro ou salário definido, o dia prometia bons ganhos.

Vestiu calça, camiseta e a inseparável munhequeira de couro, despediu-se rapidamente da mulher, com quem divide uma casa no Brás, na área central de São Paulo, e correu para mais um dia de trabalho a poucos quilômetros dali, na República. A primeira parada é no Cine Paris, disputado cinema pornô que oferece cabines privativas no nível da rua.

Não demora muito e ele sai acompanhado de um homem de meia-idade, baixinho, calça social larga, camisa branca e uma malinha a tiracolo. Com 2 metros de altura, Thiago abaixa a cabeça para ouvir melhor, mas logo eles se despedem. “Achei que ia fazer um antes do almoço, mas a gente marcou para amanhã”, conta.

O relógio na calçada à frente aponta 12:45, 30ºC, e Thiago parte em busca de uma sombra na praça, do outro lado da rua. O lugar onde os paulistanos do século 19 assistiam a rodeios e touradas hoje recebe moradores de rua, vendedores de água, cartomantes e homens de idades, origens e tipos diferentes em busca de um trocado.

Entre o ir e vir das pessoas que trabalham na região — ou que tomam um sorvete como sobremesa, à sombra de árvores centenárias —, eles quase passam despercebidos: ficam horas sentados, encostados nas pequenas pontes sobre os lagos, com um olho no celular, outro no movimento. A Praça de República também é o ponto de encontro dos boys, como os próprios garotos de programa se autodenominam.

Os mais novos passeiam em grupos pequenos. Vestem camisas de time e apostam em roupas streetwear. Cabelo sempre na régua, pulseiras douradas, brincos e óculos de sol na cabeça. Desenvolveram um olhar especial para detectar quem é cliente e quem é curioso. Para o primeiro, eles apalpam a genitália. Para os outros, às vezes são ríspidos. “Não sei do que você está falando”, me disse um rapaz de 20 e poucos anos e cabelos descoloridos. O paraibano Leo, 27, está desconfiado: não quer ver seu rosto ou nome verdadeiro na reportagem. “É complicado. Eu não trabalho aqui, não, mas preciso pagar as contas e aí tem que se virar nos 30.”

Ao meu lado, William, 35, alerta. “Os mais novos são os mais ariscos. Muitos têm namoradas ou a família não sabe. Ninguém quer aparecer.”

Com calça jeans maior do que o corpo e uma camiseta preta, ele conta que fazia programa desde os 21, mas afirma ter parado. Aquela tarde era uma exceção: precisava descolar uma grana para pagar o morador de rua que lhe vendeu uma bota nova — ele faz questão de mostrar o calçado, ainda sem riscos e sujeira. “Só faço quando estou na necessidade. Tem gente que gosta, mas eu não.”

William mora embaixo do Minhocão desde o começo da pandemia. Tão logo a quarentena foi decretada, com o fechamento restaurantes e estabelecimentos não essenciais, perdeu o emprego numa loja do Habib’s. Antes, morava num albergue. “Mas roubaram minhas roupas. Lá tem muito ladrãozinho e o maldito do percevejo”, diz ao TAB, levantando a camisa e mostrando as marcas de picada nas costas.

Natural de São Carlos, no interior de São Paulo, William conta que migrou para a capital para trabalhar na montagem de palcos no Carnaval. Com pouco dinheiro no bolso, acabou não voltando. Foi naquela mesma região que fez o primeiro programa.

Ele explica a dinâmica. “Quando você é novo, você é o rei da cocada preta. Todo mundo quer sair com o novato. Mas se você ficar todo dia aqui focado, junto com os mais velhos, você fica manjado”. A saída, segundo William, é diversificar, passar uns 4 ou 5 meses sem ficar no mesmo ponto.

Quando cruza a Ipiranga e a avenida São João 

O trabalho dos boys não se restringe ao espaço de 20 mil m² da praça. Estende-se às ruas que a contornam — em cabines e cinemas. Reaberta antes mesmo dos cinemas, a sauna é uma opção, mas para poucos. “Custa mais caro, é um investimento para entrar”, explica Thiago. “Até porque você não faz só um ou dois programas ali, não é?”

A parada obrigatória ainda é o Cine Paris, há 50 anos localizado no cruzamento cantado nos versos de Caetano Veloso. O cinema de rua — que foi de clássicos estrangeiros a pornochanchadas — hoje exibe, sem interrupção, filmes pornôs. A entrada com paredes pretas ficou ainda mais discreta desde que apagaram o letreiro que dizia “Cine 24 horas”.

Após a fase mais restritiva da quarentena, o Paris reabriu cumprindo os requisitos: totens de álcool em gel, temperatura medida na porta e funcionamento até às 21h30. As cadeiras da sala de cinema foram separadas com 1,5 m de distância, mas William dá o toque: “É nas cabines que o pau come.”

Em um corredor estreito, os boys ficam na porta de cada cabine e o cliente passeia como se estivesse numa feira. Se gostar, pode resolver a coisa ali dentro, pagando R$ 6 por 10 minutos com o boy escolhido. A oferta é tanta que o Viagra é item essencial na hora da escolha. “Se você não estiver com pau duro, você não consegue nada. No geral, todos eles tomam para conseguir fazer o giro do dia”, explica William.

No escuro, o distanciamento social é inexistente, mas isso não impede que o Paris continue com boa frequência frente às bilheterias de outras praças durante a pandemia. Em poucos minutos, homens de todos os tipos passam por aquela porta: trintões de camisa social e relógio no pulso, jovens estilo skatista, idosos com dificuldade de locomoção. “Tem trabalhador, advogado, médico. Eu nunca vi, mas ouvi falar que vem até policial aqui”, conta William. “Mas geralmente é um pessoal mais simples, coroa, tem aquele que é aposentado, que já tá livre na vida.”

Não importa a idade ou a origem, todos saem sem olhar para o lado e rapidamente somem no meio da multidão na calçada. As travestis ainda aparecem, mas com menos frequência. A abertura de novas cabines na região, voltadas especialmente para elas, fez mudar um pouco a dinâmica local. Mulher também é permitida, mas nunca aparece. “Tem casal hétero que de vez em quando vem pra transar no cinema, mas é só”, conta William.

Já são 14h e o movimento na região aumenta com o fim do horário de almoço, tanto que nem noto quando um homem idoso desce a rampa de acesso ao cinema acompanhado de três jovens. William cochicha e aponta o dedo discretamente: é um velho conhecido. “Ele é maricona” — é assim que os boys chamam (entre eles) os clientes —- “Nunca fala com ninguém. Se ele se interessar na cabine, ele te escolhe e puxa pra fora”.

Na meio da bagunça, o mais velho saca uma nota e passa para um jovem bem arrumado, de Nike no pé e fone de ouvido auricular. Os outros dois o acompanham. Entre buzinas, sirenes e pessoas correndo na faixa de pedestres, eles somem ao entrar num pequeno hotel, bem onde cruza a Ipiranga e a avenida São João.

Novos tempos, novos boys 

O paulista Henrique, 20, está sentado sozinho embaixo do sol com um braço fora da camiseta. A máscara descartável parece maior do que seu pequeno rosto. “Prefiro aqui do que as cabines, é sempre muita gente, tem muito cara que está lá faz tempo”, diz.

De calça estilo rasgada, boné virado, tem o olhar meio perdido, parece nem notar o vaivém de pessoas. Estava refletindo sobre seu trabalho. “Pra mim não dá. Nunca é garantido”, diz.

Ele conta que trabalhava como marceneiro antes da pandemia. Há dois meses, faz ponto na praça. A família acha que ele conseguiu um bico qualquer. “Eu faço pra guardar um dinheiro, mas aqui cada um é cada um.”

As motivações dos boys variam entre pagar boletos e custear desde roupas a vícios, seja de droga ou de sexo. Gabriel, 22, diz que ele é dos que “mais gastam do que ganham”. De bermuda, boné e barba rala, ele define seu estilo como “maloqueiro doidão”. É o mais animado. “Tem quem não goste, mas eu adoro. Pode ser mulher, pode ser homem. Mas depende da idade. Tem uns caras que vêm aqui que, se você meter, o cara tem um infarto”, diz, dando risada. Um boy do lado, até então alheio à conversa, solta: “Esse aí, se um cliente oferecer comida, ele ainda assim prefere o sexo”.

De Itororó, na Bahia — “cidade da carne de sol” —, Gabriel mora num albergue na Mooca. Saiu de casa aos 17 anos. “Não gosto de depender de família e esse é meu corre pra sobreviver. Não tenho contato com eles e nem quero. Nem preciso esconder nada. Faço isso desde criança, cheguei pra eles e falei na cara de pau.”

A dificuldade dessa vida, segundo ele, é administrar o tempo dentro do programa. “Tem que ser pá-pum, bagulho pra mim é assim. Pegou, gozou, já era. Uma hora lá dentro são três clientes que eu perco aqui fora”, explica. Drogas ele usa de forma recreativa, após o serviço. “Não adianta você ficar bruxão de dia que não vai rolar nada. Tem uns que conseguem, tem cliente que gosta de uns porra- louca.”

Gabriel conta que a ideia é conseguir um trabalho registrado e parar com a vida de boy. Como vai a procura? “Ainda não comecei.” Os amigos caem na risada. “Estou sendo realista…”

Ele conta que já conseguiu fazer R$ 400 em um dia, mas isso ficou no passado. “A pandemia deu uma enfraquecida, as pessoas têm mais medo de se expor, é muita gente casada que vem”, diz.

Na parte de trás da praça, onde as travestis ficam concentradas, a reclamação de Isadora é a mesma. Ela está em São Paulo há dois meses, veio de Recife com o marido, também garoto de programa. “Ele está agora na sauna trabalhando. Tem dias que ele ganha mais do que eu”, balbucia, acariciando a máscara no queixo. “Eu trabalhava mais no Recife do que aqui. As meninas daqui dizem que antes da pandemia era bem melhor.”

Maquiada, com cabelo loiro recém-platinado, brincos grandes, ela parece ignorar minha presença, apesar de responder às perguntas. O jeito vai ser ir pra pista, ela diz. “Na avenida eu ganho mais. Gente rica por aqui é difícil, só se for no fim de semana.”

Com camiseta e bermuda mais gastas, o baiano Leonardo Souza talvez seja o boy mais velho da região. Tem 50 anos, mas o porte atlético e o rosto sem rugas dão aparência de pelo menos 10 anos a menos. A maior parte dos clientes são aposentados ou jovens que não saíram do armário. A análise do orçamento ele fez pelas roupas. Se for alguém simples, faz por R$ 60.

Naquela tarde, ele tinha acabado de encontrar na rua um homem com quem havia feito programa na semana anterior. Estava com a esposa. “Nem falou boa tarde”, reclamou, enquanto encarava potenciais clientes. Só baixa a guarda quando passa uma criança ou um carrinho de bebê. Ele então abre um sorriso grande e acena animado. “Eu gosto muito de criança, tenho 10 filhos.”

Leonardo mora numa ocupação nos arredores da praça. A pandemia também afetou seu trabalho, mas diz ter ficado tranquilo por causa de um cliente fixo. “É um rapaz que me banca em tudo, alimentação, saúde.”

O mineiro Thiago diz que é uma profissão que precisa de disciplina — e ele entendeu isso quando fez seu primeiro programa numa sauna no Rio de Janeiro, onde morava. “É um dinheiro fácil, rápido e alto. Todo dia ganhava R$ 700. Eu nem sabia o que fazer com aquilo”, diz.

Por não saberem lidar com o trabalho e o dinheiro, muitos boys acabam sumindo da praça. “Veio a pandemia, perdeu dinheiro, perdeu programa, veio a depressão, o que vai distrair? A droga. Se não tiver psicológico firme, naufraga.” Não foi seu problema. “Sou cascudo e tenho dote, eu tenho 26 cm, então isso ajudou muito nesse período.”

Uma pessoa boa 

O relógio marca 14h45. Thiago aproveita o pouco movimento para almoçar num restaurante na frente da praça. Enquanto espera o marmitex, ele conta que já foi ator — “Abre aí o Xvideos, deixa eu te mostrar”. Na plataforma de vídeos pornográficos, ele aparece como Thiago Cavalão. Para os clientes ali, ele é Mateus. Para outros boys, “negão”. Já a família evangélica do interior de Minas Gerais nem sonha com aquela realidade. “Mas eu tenho profissão, fio. Sou serralheiro, vendedor, desossador, vigia”, diz.

Simpático e querido por muitos, Thiago tem voz grave e articulada, gosta de conversar olhando nos olhos. “Aqui precisa de disposição. Dormir bem, comer bem, se alimentar bem, não se drogar muito.” E o Viagra? “Tomo porque fiquei dependente, é como cigarro, ele solta uma substância como a nicotina. Você sente falta daquilo.”

Das duas vezes em que o vi, Thiago estava com um bracelete de couro grande, com tiras de de várias cores. Cada uma tem um significado, ele diz, recusando-se a revelar qual era. Ele então chega mais perto e coloca o dedo na minha testa: “Todo mundo tem fé aqui dentro. E isso é um pedacinho de Deus em cada um de nós. Eu vim de igreja evangélica, eu sei a verdade. Eu sou uma pessoa boa.”

Ele então volta a se sentar. O dia de pagamento acabou não rendendo como esperado e ele diz que vai se aposentar. “Não tenho mais idade. Você não está sentindo uma diferença de quando você tinha 25? Você vai envelhecendo por dentro, sabe? A tolerância vai diminuindo.”

Os planos daqui pra frente incluem “não trabalhar para os outros”. Após ouvir muitas vezes que seu dom estava no meio das pernas, ele diz ter descoberto a verdade. “Me peguei refletindo e acho que descobri meu verdadeiro dom. É o dom da venda”, diz, sorrindo. “Sou um ótimo vendedor. Tenho o maior prazer de vender e conversar com as pessoas.”

Fonte: TAB/UOL

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