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‘Uma pessoa trans não tem armário para voltar, não posso apagar minha existência’, diz guarda municipal Jordhan Lessa


Foto: Divulgação/Arte: Lari Arantes

RIO – Desde a infância, eu tive dificuldades por não saber muito bem quem eu era. Até os 9 anos, eu achava que era um menino igual os outros e que meu “pintinho” iria crescer em algum momento.

Passei por muitas dificuldades conhecidas da maioria dos transexuais. Eu me identificava como mulher lésbica – algo que é muito comum entre os homens trans. Fui expulso de casa muito cedo e me tornei menino de rua. Minha família, que era de classe média alta, morava em Copacabana, e eu dormia em uma praça que ficava a uma quadra da minha casa, então via meus familiares passarem por mim diariamente. Cheguei a voltar para casa depois disso, mas era uma relação conturbada. Eles me internaram duas vezes em hospitais psiquiátricos e também me mandaram para a antiga FUNABEM (atualmente Fundação CASA). Depois disso, eu resolvi sair de vez de casa. Era uma relação insustentável.

Aos 16 anos, sofri um estupro que gerou um filho. Na época, eu não sabia que tinha a opção de realizar um aborto naquelas circunstâncias, então mantive a gestação porque, como eu era adotado, sabia que aquele bebê seria o meu único laço de sangue no mundo. Durante a gestação, minha mãe me acolheu de volta para que eu pudesse fazer o pré-natal, mas depois do nascimento, ela tomou o bebê de mim. Cheguei a ficar sete anos sem ver meu filho. Hoje, ele tem 34 anos e me deu um neto, que está com 1 ano. Temos uma ótima relação eu, ele e minha nora.

Depois que saí de de casa, precisei me virar sozinho no mundo. Trabalhei como camelô, flanelinha, fiz de tudo. Minha sorte foi ter passado no concurso da guarda municipal do Rio de Janeiro, há 20 anos. Mas o mercado de trabalho é difícil para as pessoas trans, e eu sempre tive uma expressão de gênero muito masculina, mesmo antes da transição. Eu lembro de um treinamento que tive, logo que entrei no quartel, em que professor disse: “Por que você não usa um batonzinho, uma maquiagem, bota um brinco igual suas colegas?”. Mas, apesar de episódios pontuais, eu não considero a guarda municipal uma instituição transfóbica. Quando eu procurei meu comandante para falar sobre o livro que estava publicando, em que conto a minha experiência, ele ofereceu todo o apoio, inclusive com a assessoria de comunicação da guarda. Isso foi essencial para a divulgação do meu trabalho. Meu legado para a instituição foi ter aberto um precedente para outras pessoas trans.

E é por isso que o trabalho que eu faço hoje em dia na Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual, o livro que eu escrevi, as apresentações e as palestras se tornaram minha missão de vida. Eu passei por muita coisa. Olho para trás e penso como eu cheguei aqui, porque ninguém vive tudo o que eu vivi se não tiver um propósito. Eu sobrevivi a tudo isso e saí ileso, consegui ressignificar as cicatrizes de todo o dano emocinal que sofri.

Uma pessoa trans não tem armário para voltar, não posso apagar minha existência. O que nós, como movimento, temos que fazer é mostrar que existimos, que estamos em todos os lugares e que precisamos ser vistos como gente. Para isso precisamos perder o medo de nos mostrar. Eu entendo que muitos têm medo ou questões familiares, mas só assim iremos sobreviver. A história das pessoas trans, das travestis principalmente, sobreviveu a um momento muito conturbado, mas o que o movimento LGBT vive hoje é fruto dessa luta. Imagina se elas tivessem desistido? Por isso precisamos nos posicionar e exigir nossos direitos básicos como cidadãos.

Fonte: O Globo

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