A conclusão de que o sentimento e o cuidado são o que importa na criação de um indivíduo sempre foi simples para o universitário André Lima de Sousa, 25. O cearense nasceu com sexo biológico feminino e gerou o filho único aos 16 anos de idade. Até os 20, foi mãe solo de Marcos Ianderson de Sousa – até que se reconheceu como homem transexual e iniciou o processo de transição para se adequar à própria identidade. Hoje, acumula com orgulho as duas funções: de pai e de mãe.
Em 2018, quando o tratamento hormonal começaria, André conversou com o filho, hoje com 8 anos de idade, sobre o novo estilo de se vestir e o corte de cabelo mais curto que adotaria. Como resposta, recebeu amor. “Pra não ter um impacto tão grande, ele foi comigo. Expliquei pra ele que eu seria, agora, não só a mãe, mas o pai também – até porque já vivenciei isso por ser mãe solteira”, relata André.
“Até hoje cortamos o cabelo juntos, é uma coisa nossa. E ele diz em qualquer lugar: ‘ela é minha mãe e meu pai também!’”, emociona-se o pai de Marcos.
O processo de explicar ao filho sobre a transição de gênero foi lento, e envolto em compreensão mútua. “Ele não me chama de pai, porque nunca teve essa figura. Tenho que entender a cabeça dele, saber respeitar: é muito pra uma criança entender a transição e ter que me chamar de pai. Não existe nenhuma pressão sobre isso. Às vezes tenho medo, porque infelizmente as pessoas são muito preconceituosas. O medo de uma agressão física é constante”, lamenta André, que já vivenciou a violência.
É com afeto e cumplicidade, contudo, que o universitário prepara o filho para as discriminações a que está sujeito. “O ódio das pessoas me assusta. Não faltam com respeito só ao pai, mas à criança: pai é dar amor, carinho, atenção. A família tradicional brasileira é muito imposta na questão biológica, mas a maioria das crianças sequer tem o nome do pai no registro ou convívio com a figura paternal. Como pai trans, tenho direito de ver meu filho crescer no amor”, afirma.
Neste domingo, descreve André, a dupla vai aproveitar o sofá de casa com filme e pipoca, programa preferido para as datas especiais, como todos os segundos domingos de agosto. Nos últimos cinco anos, porém, contam com outras três presenças: a de Roberta Melo, esposa de André, e das duas enteadas do universitário.
“Elas me têm como padrasto, mas tô sempre ao lado como figura de amigo, pra respeitar a figura do pai delas, que é presente. Elas moram com ele, e nós frequentamos a casa deles, tomamos café todos juntos, dialogamos. Ele é muito cabeça aberta, é uma ótima relação. Minha enteada mais velha inclusive brinca que quando o primeiro beijo vai contar pra mim, e não pros pais”, sorri o pai de Marcos.
Construção social
Jurema Dantas, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta que as relações que se estabelecem no campo afetivo são, muitas vezes, “distintas das fórmulas prontas” instituídas pela sociedade.
“Os vínculos são construídos por presença, diálogo, e são muito importantes para o processo de maturação e acompanhamento da criança e adolescente. Ser pai não se esgota no papel social nem laço biológico, mas se edifica na relação que se estabelece”, define.
As influências e imposições externas, alerta a psicóloga, não podem condicionar as escolhas sobre como viver ou não a paternidade. “Somos apresentados a papéis e padrões em torno da família, e eles atravessam nossas decisões. Mas o que vai iluminar a relação com os filhos são os sentimentos. Isso não se traduz em identidade ou sobrenome. Constituir-se como pai ou mãe de alguém é exercício diário de cuidado – de presença física ou afetiva.”
No Ceará, quase 1,5 milhão de domicílios são chefiados por mulheres, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), grande parte deles por mães solo. Segundo a Defensoria Pública do Estado, a demanda por reconhecimento ou exercício da paternidade responsável é uma das mais frequentes no âmbito judicial.