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Ser ‘trans’ é cruzar uma fronteira política


JONATHAN DRAKE (REUTERS)

Eu me atrevo a dizer quais são os processos de cruzamento que melhor nos permitem compreender a transição política global que estamos enfrentando. A mudança de sexo e a migração são as duas práticas de travessia que, ao porem em xeque a arquitetura política e legal do colonialismo patriarcal, da diferença sexual e do Estado-nação, situam um corpo humano vivo nos limites da cidadania e até do que entendemos por humanidade. O que caracteriza as duas viagens, para além do deslocamento geográfico, linguístico ou corporal, é a transformação radical não só do viajante, mas também da comunidade humana que o acolhe ou rejeita. O antigo regime (político, sexual, ecológico) criminaliza todas a práticas de travessia. Mas onde a travessia é possível, o mapa de uma nova sociedade começa a ser desenhado, com novas formas de produção e de reprodução da vida.

No meu caso, o cruzamento começou em 2004, quando comecei a me administrar pequenas doses de testosterona. Durante alguns anos, transitando por um espaço de reconhecimento de gênero que oscilava entre o feminino e o masculino, entre a masculinidade lésbica e a feminilidade King [ou feminilidade masculina], experimentei a posição que agora é chamada de gênero fluido. A fluidez das encarnações sucessivas se chocava com a resistência social para aceitar a existência de um corpo fora do binário sexual. Essa “fluidez” foi possível durante os anos em que me administrei uma dose de testosterona que chamamos de “limiar”, porque desencadeia a proliferação no corpo dos chamados “caracteres secundários” do sexo masculino.

Paradoxalmente, renunciei à fluidez porque desejava a mudança. A decisão de “mudar de sexo” é necessariamente acompanhada disso que Édouard Glissant chama de “um tremor”. A travessia é o lugar da incerteza, da não-evidência, do estranho. E tudo isso não é uma fraqueza, mas um poder. “O pensamento do tremor”, diz Glissant, “não é o pensamento do medo. É o pensamento que se opõe ao sistema “. Em setembro de 2014, iniciei um protocolo médico-psiquiátrico de redesignação de gênero na Audre Lorde Clinic, em Nova York.

“Mudar de sexo” não é, como quer a guarda do antigo regime sexual, dar um salto para a psicose. Mas também não é, como pretende a nova gestão neoliberal da diferença sexual, um mero trâmite médico-legal que pode ser completado durante a puberdade para dar lugar a uma normalidade absoluta. Um processo de redesignação de gênero em uma sociedade dominada pelo axioma científico-mercantil do binarismo sexual, onde os espaços sociais, trabalhistas, afetivos, econômicos e gestacionais estão segmentados em termos de masculinidade ou feminilidade, de heterossexualidade ou homossexualidade, é cruzar aquela que talvez seja, juntamente com a raça, a mais violenta das fronteiras políticas inventadas pela humanidade. Cruzá-la é ao mesmo tempo saltar uma parede vertical interminável e caminhar sobre uma linha desenhada no ar. Se o regime heteropatriarcal da diferença sexual é a religião científica do Ocidente, então mudar de sexo só pode ser um ato de heresia.

À medida que aumentava a dose de testosterona, as mudanças se intensificavam: o pelo facial é um mero detalhe em comparação com a força com que a voz precipita uma mudança de reconhecimento social. A testosterona provoca uma variação da grossura das cordas vocais, um músculo que, ao ter sua forma modificada, varia o tom e o registro da voz. A mudança de voz é experimentada pelo viajante de gênero como uma posse, um ato de ventriloquia que o força a se identificar com o desconhecido. Sem dúvida, essa mutação é uma das coisas mais bonitas que já vivi. Ser trans é desejar um processo de crioulização interior: aceitar que só somos nós mesmos graças à — e através da — mudança, da mestiçagem, da mistura. A voz que a testosterona impulsiona em minha garganta não é uma voz de homem, é a voz do cruzamento. A voz que treme em mim é a voz da fronteira. Como diz Glissant, “entendemos melhor o mundo quando trememos com ele, porque o mundo está tremendo em todas direções”.

Junto com a mudança de voz veio a mudança de nome. Durante algum tempo, desejei que meu nome feminino fosse declinado em masculino. Ou seja, quis me chamar Beatriz e ser tratado, segundo as gramáticas, com pronomes e adjetivos masculinos. Mas aquela torção gramatical era ainda mais difícil que a fluidez de gênero. Decidi então procurar um nome masculino. Em maio de 2014, o subcomandante Marcos anunciou, em uma carta aberta enviada “da realidade zapatista”, a morte do personagem Marcos, que tinha sido inventado como um nome sem rosto para dar voz ao processo revolucionário de Chiapas. Naquele mesmo comunicado, o subcomandante afirmou que deixava de se chamar Marcos para se chamar Galeano, em homenagem a José Luis Solís López, conhecido como Galeano, assassinado em maio de 2014. Pensei então em me chamar Marcos. Queria usar o nome de Marcos como uma balaclava que cobrisse meu rosto e meu nome. Marcos seria uma forma de desprivatizar meu antigo nome, de coletivizar meu rosto. Minha decisão foi denunciada imediatamente nas redes pelos ativistas latino-americanos como um gesto colonial. Afirmavam que, sendo branco e espanhol, eu não podia usar o nome de Marcos. A ficção política durou poucos dias. Esse nome, enxerto político fracassado, existe apenas como um traço efêmero inserido na assinatura do artigo do Libération de 7 de junho de 2014. Sem dúvida, eles tinham razão. Havia naquele gesto arrogância colonial e vaidade pessoal, mas também uma busca desesperada de proteção. Quem se atreve a abandonar seu nome para adotar um nome sem história, sem memória, sem vida? Aprendi duas coisas, aparentemente contraditórias, com o fracasso do enxerto do nome Marcos: eu teria de lutar por meu nome e, ao mesmo tempo, meu nome teria de ser uma oferenda, teria de ser presenteado a mim como um talismã. (…)

A ciência, a tecnologia e o mercado estão redesenhando os limites do que é e será um corpo humano vivo. Esses limites são definidos hoje não só em relação à animalidade e às formas de vida consideradas até agora subumanas (os corpos não brancos, proletários, não masculinos, trans, com deficiência, doentes, migrantes…), mas também frente à máquina, frente à inteligência artificial, frente à automatização dos processos produtivos e reprodutivos. Se a primeira Revolução Industrial foi caracterizada pela invenção da máquina a vapor, pela aceleração das formas de produção, a revolução industrial atual, marcada pela engenharia genética, pela nanotecnologia, pelas tecnologias de comunicação, pela farmacologia e pela inteligência artificial, afeta em cheio os processos de reprodução da vida. O corpo e a sexualidade ocupam na atual mutação industrial o lugar que a fábrica ocupou no século XIX. Há, ao mesmo tempo, uma revolução dos subalternos e apátridas em andamento e uma frente contrarrevolucionária lutando pelo controle dos processos de reprodução da vida. Em cada canto do mundo, de Atenas a Kassel, de Rojava a Chiapas, de São Paulo a Johannesburgo, é possível sentir não só o esgotamento das formas tradicionais de fazer política, mas também o surgimento de centenas de milhares de práticas de experimentação social, sexual, política, artística… Fazendo frente ao aumento das forças edípicas e fascistas surgem, por toda parte, as micropolíticas do cruzamento.

Fonte: El País Brasil

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