A professora de epidemiologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lígia Kerr (foto), coordenou, pela segunda vez em sete anos, um estudo em 11 capitais brasileiras, além de Brasília, com foco na vigilância biológica e comportamental de jovens. O resultado foi publicado na revista internacional Medicine e revelou dados preocupantes. Houve um aumento da prevalência do HIV entre homens que transam com homens. De acordo com a pesquisa, na faixa etária entre 15 e 19 anos, triplicou a taxa de soropositivos (de 2,4 para 6,7 casos por 10 mil habitantes) e entre 20 e 24 anos o índice dobrou (de 15,9 para 33,1 casos por 10 mil habitantes). Dentre os entrevistados, 83,1% se declararam gays, 12,9% heterossexuais ou bissexuais e 4% se identificaram como ‘outros’. Do total, 75% transam apenas com homens.
A pesquisa também revelou que o uso de aplicativos para agendar encontros entre jovens gays cresceu 400% no período 2009-2016. De acordo com Kerr, em entrevista exclusiva à ABIA, há uma desconexão na forma como os jovens gays que usam estes aplicativos se sentem quando em situação de risco de infecção pelo HIV (sem o uso da camisinha). Contraditoriamente, afirmam estar mais seguros. Para Kerr, as comunidades mais afetadas precisam se apropriar do conhecimento gerado pela pesquisa para decidirem o melhor caminho que devem percorrer. “Por mais doloroso que possa ser, se você não conhece o que acontece com você, como terá o poder de mudar?”. Vale lembrar que o Brasil adotou a Profilaxia Pre-Exposição (PrEP) somente em 2017. Confira a entrevista completa a seguir:
ABIA: Na sua opinião quais são os dados mais relevantes desta pesquisa, coordenada pela senhora, que entrevistou 4.176 homens em 11 capitais e em Brasília?
LIGIA KERR: Já esperávamos que haveria um crescimento da AIDS já que o primeiro estudo feito em 2009 revelava um dado bem alto. Se somarmos os soropositivos desta pesquisa mais os que, embora soropositivos, não quiseram fazer o teste, tínhamos 12.1%. E neste período (entre 2009 e 2016) muita coisa aconteceu. Achamos vários dados que nos deixaram bastantes apreensivos. Um deles foi o crescimento da AIDS de 12.1%, em 2009, para 18.4%, em 2016. E também a sífilis, que cresceu três vezes, algo em torno de 9% para 27%. Este dado mostra haver uma queda acentuada no uso do preservativo. Esta queda, principalmente entre jovens, nos preocupou bastante.
Houve um aumento extraordinário da busca de parceiros por essas novas mídias como Grinder, Hornett ou Tinder e WhatsApp. Estudos internacionais já demostraram que as pessoas que buscam esses sites têm mais relações, mais parceiros e mais relações sem camisinha. E, contraditoriamente ao fato de estarem sob maior risco de AIDS e de infecção, se sentem mais seguras. Isto revela uma desconexão entre o que de fato acontece e o que elas pensam que acontece com elas. Outro dado que nos chamou a atenção foi o crescimento da violência física e a da discriminação e do estigma. É um período relativamente curto (entre 2009 e 2016) para um impacto tão grande nesta população. É preciso que os grupos mais afetados olhem estes dados profundamente e discutam entre si, com as ONGs e com as redes para compreender como vão lidar com isso.
ABIA: A senhora mencionou um crescimento da violência: já teria este dado disponível que possa revelar como em estava em 2009 e como vocês encontraram em 2016?
KERR: Ainda não. Mas posso afirmar que a discriminação cresceu em torno de 140%. Sobre o uso dos aplicativos, o crescimento foi em torno de 400%. Na pesquisa qualitativa, notamos o discurso que de que os ambientes de socialização gays (bares, boates, etc) “praticamente não existem mais” pois os encontros são marcados pelo WhatsApp. O uso de redes sociais deverá ser uma estratégia a ser usada na prevenção. A população precisa tomar conhecimento sobre essas informações. Por mais doloroso que possa ser, se você não conhece o que acontece com você, como terá o poder de mudar?
ABIA: A senhora está afirmando que as comunidades afetadas devem se apropriar dessas informações e encontrar ali suas soluções.
KERR: Exato. É muito difícil a gente de fora dizer o que o outro deve fazer. Tenho notado o impacto que este estudo tem causado. Há as reações homofóbicas nos sites que publicaram a pesquisa. Surgem discursos dos mais absurdos. Essas comunidades têm que se apoderar deste estudo e encontrar estratégias sobre como vão superar esta etapa. Outro dia alguém me disse que erramos ao mostrar caras tão felizes fazendo o tratamento porque teve AIDS. Mas não dá para estar sorridente, feliz e saltitante por que você tem AIDS, não é? A AIDS não é uma doença trivial. É uma doença que é para sempre, não tem cura, e tem milhares de efeitos colaterais. Para os jovens, a AIDS não existe mais, não assusta mais. E esta mudança nos impressionou bastante. Entrevistamos a faixa etária de 18 anos para cima. E falavam também dos jovens abaixo de 18 anos que entram num mundo onde não há a repressão da maneira que as outras gerações enfrentaram para assumir a homossexualidade. E tem os que dizem que não querem entrar nesta caixinha. Perguntamos: “como você se identifica?”, responderam “não me identifico com nada. Posso ter vontade de ter relações com homem ou com mulher”. Isto dificulta muito a forma de se aproximar desta população. Este é outro desafio para quem quer trabalhar com estes grupos.
ABIA: A senhora mencionou reações homofóbicas e ao mesmo tempo disse que a pesquisa anterior não chamou tanta atenção quanto agora. A que a senhora atribui essa mudança?
KERR: Em 2009, por exemplo, havia um apoio muito grande da sociedade civil que, naquela época, estava muito próxima do governo. A sociedade civil participou do processo de pesquisa e, entre outras coisas, fez o monitoramento quando surgiram problemas para obter informações em determinado local. Era um momento de muito trabalho conjunto entre sociedade civil e o governo. O que aconteceu logo em seguida foi o início da falta do apoio financeiro e político para as ONGs. Isto veio com o crescimento do setor conservador. Este cenário aconteceu já dentro do governo Dilma que tinha esta ideia de que a negociação abriria espaço para fazer mais. Uma das negociações foi com bancada de congressistas em Brasília que, em 2015, foi denominada “BBB” (bala, boi e Bíblia). Um dos efeitos disso foi a censura. Houve um episódio durante um Carnaval: o governo federal divulgou uma propaganda para comunidade HSH (homens que fazem sexo com homens) e 24h depois estava banida da TV. Fatos como este “criaram” um momento muito conservador que deram vazão a esta onda de ódio.
ABIA: Voltando para a pesquisa e compreendendo todas as limitações metodológicas, como esses números refletem as condições estruturais que são enfrentadas por estes homens, com destaque para os HSH e os jovens gays?
KERR: Estudar esta população é sempre difícil. Usamos metodologias especiais como a que chamamos de “em redes sociais”. Também não buscamos somente a pessoa que se auto identifica como gay. Nossa solicitação foi que indicassem quem têm relação sexual com homens, independente da identidade sexual que assume. A partir disso, exploramos o percentual destes homens que tiveram relações sexuais com mulheres. De qualquer forma, é preciso olhar os dados com cuidado. As metodologias podem trazer uma visão mais enviesada. Mas é importante frisar que acreditamos que a nossa pesquisa captou com relativa segurança o que está acontecendo na sociedade. Existem fatores relevantes que explicam o aumento dos casos de AIDS. Um exemplo é o corte brutal de recursos para a saúde pública. Outro é o desaparecimento das ONGs. Em abril de 2016, quando começamos este trabalho, fui procurar a ABIA, e quase entrei em depressão. Era um desanimo total por falta de recursos financeiros, falta de estimulo diante de tudo que estava acontecendo. Em vários lugares nossa pesquisa obteve muito pouco apoio das ONGs, completamente diferente de 2009.
ABIA: A ABIA, outras instituições da sociedade civil organizada e o movimento AIDS têm insistido que a prevenção é a principal saída para retomarmos o caminho de uma resposta eficaz para a epidemia. Para nós, os dados da sua pesquisa reforçam essa perspectiva. A senhora concorda com essa leitura?
KERR: Concordo plenamente. Não acredito que o fim da AIDS será alcançado com um discurso centrado em medicação. É preciso ter uma estratégia que inclua medidas preventivas e que atinja todas as áreas da sociedade, promovendo o cuidado de si, o cuidar do outro. Precisamos de uma prevenção que possa fazer com que as pessoas compreendam que isso é parte de um processo preventivo, que não se inicia e nem termina na medicação. A pessoa que vive com HIV também precisa entender isso, ou não vai entender porque as pessoas discriminam, porque não o/a aceitam, porque batem ou porque matam. É preciso entender a sociedade onde esse fenômeno está sendo produzido e ter um outro olhar solidário para este outro ao seu lado.
ABIA: Olhando o passado e os dias de hoje, e buscando entender o que funcionou num momento lá atrás e o que deixou de funcionar. Será que é interessante retomar o passado no sentido de pensar em novas respostas ou recomeçamos do zero? Vale pensar nesta proposta que a senhora fez no início de utilizar ferramentas como WhatsApp?
KERR: Tem muita coisa que podemos resgatar. Uma delas é o trabalho feito perto da comunidade. Nosso estudo qualitativo feito em 2016 deve revelar muita informação interessante para aprendermos de novo o quê e como fazer. É um erro o governo trabalhar à parte da comunidade. Parece que o governo está interagindo com esses aplicativos, mas não pode ser somente por aí. É preciso usar essas ferramentas para levar as pessoas para alguns lugares, mandar mensagens positivas e se aproximar dessas pessoas. Também é preciso compreender bem os grupos. No estudo de 2009, fizemos uma entrevista que me chocou bastante. Tentamos entender o porquê a pesquisa só tinha entrevistado indivíduos de classe C, D e E. Para isso, convidamos alguns conhecidos gays da classe A e B e perguntamos por qual a razão não haviam participado da pesquisa, se foram chamados e se sim, porque não participaram. As declarações foram surpreendentes. Naquele espaço entre quatro paredes diziam: “Eu não me misturo com essa gente”; “Isso é coisa para pobre”; “Eu pego um avião nos finais de semana com meus amigos e vou para a Europa não quero nada com esta população”. Isso, em 2009! Imagina hoje!!
ABIA: Tem um dado interessante que a pesquisa traz que em relação a Porto Alegre que registra uma taxa muito alta de infecção pela HIV e é diferente de outras cidades da região Sudeste. Como se explica isso?
KERR: Tudo o que acontece na região Sudeste pesa nos dados nacionais. A epidemia em São Paulo tem atingido um ápice e os dados sobre os HSH já mostraram um aumento. Mas quando a gente coloca esta epidemia do Sudeste diante da epidemia do restante do país, vai aparentar estar estável. Se olharmos os dados das regiões Nordeste e Norte, veremos a epidemia crescendo. Já sobre Porto Alegre, têm alguns estudos em andamento para tentar explicar as diferenças tão grandes apresentadas nesta cidade. Apontam que a alta taxa de infecção por AIDS é por conta da desorganização dos serviços de saúde locais ou é em decorrência do uso de drogas intravenosas. Há também os estudos que apontam os fatores ligados a serviços, ou seja, mostram as dificuldades que os serviços têm de funcionar adequadamente. Além disso, o tipo de vírus que circula por lá difere do vírus que circula em outros lugares do Brasil, mostrando que é uma epidemia diferente.
ABIA: Pode explicar melhor sobre este tipo de vírus?
KERR: O vírus da AIDS tem uma mutação. Quando se estuda um vírus geneticamente, é possível reconstruir a história dele. Você consegue saber porque há uma modificação. O vírus que entrou via sanguínea em usuários de drogas veio de um outro grupo social, logo carrega uma história genética diferente. Se vier pela via sexual, tem histórico genético de outro grupo de pessoas.
ABIA: No artigo da ABRASCO, a senhora se mostrou bastante pessimista em relação às ações que têm sido implantadas pelo governo depois do golpe em 2016. Neste cenário sombrio, o que a sociedade civil organizada e o movimento AIDS podem fazer neste momento?
KERR: Acho que não devemos pensar somente nos HSH, mas também nos negros e nas mulheres. E, sendo eu uma pessoa que tem uma deficiência física, penso também nas pessoas que tem alguma deficiência. Todos somos seres humanos, iguais em nossa essência e com necessidades diferenciadas que precisam ser atendias. A discussão precisa mudar para um debate mais amplo. É preciso enxergar que o negro morrendo na favela é igual a quem está morrendo após ser espancado por um skinhead. São processos aparentemente diferentes, mas na sua essência são semelhantes. Neste momento o tratamento corre risco, pois o SUS é responsável pela maioria destas pessoas. Quando um indivíduo, que é homossexual, ataca o SUS, ou ataca um governo mais de esquerda, está atacando o sistema que vai tratar dele. Sem o SUS, dificilmente alguém vai sobreviver.
ABIA: A senhora sugere que a sociedade civil organizada e o movimento AIDS possam ampliar o debate com a sociedade a fim de compreender todos os fatores que incidem diretamente sobre a vida do brasileiro?
KERR: Exato, é preciso ampliar o debate. O discurso da esquerda tem que incluir o debate do negro e do gênero. A esquerda tem que incluir essas pautas e essas pessoas tem que incluir as pautas genéricas! Não é possível lutar pela democratização da sociedade sem ampliar o debate, sem a redução da discriminação contra os HSH, sem a discussão das questões de gênero, sem a discussão das questões raciais.
ABIA: E dá para projetar os próximos anos a partir dos dados deste estudo que a senhora coordenou?
KERR: Tudo depende do que vai acontecer nesta eleição. Às vezes sou tão pessimista que a todo o momento acho que a gente ainda pode terminar sem eleições em outubro. Outras, dou vez ao meu lado otimista e penso que talvez tenhamos grandes chances de eleger um político de esquerda. Se isto acontecer, esta pessoa vai ter que tomar posse. Não podemos deixar um segundo, um terceiro golpe acontecer, senão a coisa vai degringolar completamente. Também não podemos menosprezar o poder que a direita concentra. Temos que lutar.
ABIA: Para finalizar, a senhora gostaria de acrescentar algo?
KERR: Esta pesquisa produziu um vasto material. Não deu para falar de tudo porque ainda não foi possível analisar todos os dados. Mas tudo o que já conseguimos analisar até aqui nos deixou profundamente preocupados. Há algo que esqueci de comentar que foi uma mudança positiva: o aumento do número de pessoas que nunca se testaram, mas que estão procurando fazer o teste. Ainda é muito grande o número de quem nunca se testou na vida. Para muitos, participar da pesquisa resultou na primeira vez que se testaram. É preciso haver uma mudança radical de mentalidade, compreender o processo como um todo e não um pedacinho.
Matéria reproduzida do site ABIAIDS