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Roda de Conversa do Projeto Diversidade Sexual debate a “História da Prevenção nos anos 90”


Foto: Vagner de Almeida

“Segurança Negociada”, “Posicionamento Estratégico” e “Risco x Vulnerabilidade”. Conceitos que parecem antigos, ultrapassados e ainda distantes da realidade atual. Talvez, sequer muitos já ouviram falar ou sabem do que se trata.

Com a iminência da quarta década da epidemia de AIDS, o que assistimos agora é um desmonte na saúde pública e no eixo político social brasileiro, diante do cenário neoliberal. Por isso, é importante sabermos de que forma isso pode afetar a saúde pública e as políticas de prevenção ao HIV – e que lições podemos tirar daquilo que já executamos com sucesso nos anos 90 e que em meio à outra pandemia, a de COVID-19, podemos resgatar e ressignificar.

Diante disso, o Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) promoveu na tarde da última terça-feira a roda de conversa “História da Prevenção – Debate sobre a Prevenção nos anos 90”, via Zoom. O evento teve como objetivo aprofundar o debate e os olhares sobre a história da prevenção, partindo de alguns conceitos que surgiram na prevenção de HIV e AIDS nos anos 1990.

Práticas que as pessoas usam no cotidiano para reduzir riscos nas suas vidas sexuais tiveram uma importância especial. Não é o que os especialistas em saúde pública geralmente recomendam, mas é o que as pessoas realmente fazem com seus corpos e desejos – como, por exemplo, segurança negociada ou posicionamento estratégico nas relações sexuais.

O momento também serviu para discutir a ideia de risco e vulnerabilidade – duas maneiras profundamente distintas de pensar sobre as raízes individuais e sociais do perigo e, portanto, as bases da prevenção.

Apresentação

Vice-presidente da ABIA, Veriano Terto Jr foi o responsável por abrir o debate da roda de conversa. Segundo ele, quando falamos de prevenção temos que pensar “na garantia da autonomia do cidadão, de forma que ele possa escolher aquilo que faz mais sentido para sua vida sexual. É importante para que as pessoas negociem a prevenção, de forma que não sejam julgadas de forma inconsequente ou visto como desobediente por não gostar de usar camisinha, como vemos por aí”, afirmou.

Para o psicólogo, os anos 90 foi o período da “rebeldia” desses conceitos, onde as comunidades mais afetadas reivindicavam e se opunham aos discursos biomédicos que ditavam como e de que forma deveria se praticar sexo. ”O barebacking, inclusive, é isso. Uma opção e atitude política quanto ao sexo que lançou luz sobre essa imposição do prazer e da não dimensão de autonomia do corpo”. 

Richard Parker, diretor-presidente da ABIA, também palestrante da roda, concordou com as observações de Terto Jr. E trouxe outro ponto: o questionamento sobre a ideia de risco dentro da prevenção. “Há um preconceito e uma discriminação, com viés moralista, sobre “práticas de risco” e “grupos de risco” para o HIV”. Para ele, a ideia de vulnerabilidade foi algo recuperado por teóricos como Jonathan Mann, que “mudou o lugar de para onde deveríamos mudar a ação sobre políticas de AIDS do biomédico, para o estrutural/social onde a desigualdade de gênero, raça, sexualidade e identidade é o que criava a vulnerabilidade para as pessoas”, explicou.

Nos últimos anos, porém, para ele o que se percebe é “a perda dessa noção levada por posturas conservadoras e moralistas da realidade social, política e econômica do Brasil, que com a desigualdade social já presente aqui e em períodos de pandemia, é um agravo duplo. São perdas importantes diante de ganhos históricos”, observou.

Debate

Psicóloga residente do programa de prevenção de Santa Maria (RS), Carolina Kubiça foi uma das primeiras participantes a interagir via chat do Zoom da roda de conversa e indagou sobre a disponibilidade de outros métodos que profissionais de saúde podem utilizar para orientar os usuários. “Para mim o fundamental é ter uma escuta ativa. Ouvir para compreender onde as pessoas estão, quais são suas experiências e entender a realidade dele”, respondeu Veriano.

“Vivemos um período onde todo mundo fala, mas ninguém escuta. Essa falta de respeito com o outro inviabiliza o uso da ‘caixinha de ferramentas’ da prevenção combinada. E para isso funcionar temos que ter uma pedagogia da prevenção que seja construída coletivamente”, completou Parker. Vagner de Almeida, coordenador do projeto Diversidade Sexual, ressaltou ainda que muitos profissionais de saúde esquecem desse detalhe e é preciso recuperar essa característica de que ele ‘sabe tudo’ e o outro apenas precisa ouvir para aprender.

Professor universitário da área de Educação do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Seffner evidenciou que há algumas séries da Netflix como Cara Gente Branca e Sintonia, respectivamente, que dialogam com muita fidelidade situações da vida real dos jovens no sexo como o rompimento da camisinha na transa, o uso de bebida, direção e sexo no carro e outros pormenores. E questionou os debatedores sobre de que forma essas representações de vulnerabilidade, na questão da AIDS e da Sífilis, podem esclarecer e ajudar no debate com os jovens – mediante a alta audiência.

Para Almeida, essas séries são muito contemporâneas e já abordam, inclusive, a COVID-19. Então é muito interessante trazer esses argumentos porque as histórias das sífilis e da AIDS não costumam ser tratadas nesse contexto em episódios de seriados em suas temporadas”, disse. Professora aposentada, Sandra Britto disse que para negociar a segurança nas relações sexuais passa por ter maturidade. Na realidade juvenil, eles “estão descobrindo o mundo do prazer sexual e não ligam muito para essa questão da prevenção, na minha opinião. Falar de segurança com quem não tem maturidade e falar de risco e vulnerabilidade é andar numa corda bamba. A vida é um risco. Agora, para se posicionar estrategicamente, acredito eu, não podemos abandonar as bases de um coletivo. Focando na sensibilização, informação e acessibilidade relacionados à AIDS, uso de drogas, HIV etc”.

Entre o prazer e o desejo, segundo Almeida, nem sempre os jovens estão tão por fora da complexidade da prevenção. “Esse debate é muito amplo porque como falar de negociar a prevenção com a camisinha, se uma vez numa situação de pobreza, o sexo pode ser uma moeda de troca para eu ganhar um dinheiro? Então nem sempre ele não reflete sobre o porquê de fazer ou não fazer aquilo, mas repensar a realidade de onde esse jovem está inserido e o que o levou até aquilo é o que devemos observar e também deve nos interessar”.

Universitário e redutor de danos de Campinas, interior de São Paulo, Gustavo Córdoba salientou que risco x vulnerabilidade é uma questão muito cara no campo da AIDS no Brasil. Destacou que desde 1993 a ABIA já vinha apresentando essas noções em suas atividades e produções intelectuais e que não há uma resposta fácil para isso. “Vulnerabilidade em alguns momentos significa fragilidade, em outras está ligada a questões mais sociais. É uma noção potente categoricamente, mas no cotidiano a vulnerabilidade está operando de uma forma com muita alteridade. Na pandemia as mulheres são vulneráveis, os idosos, a violência é uma vulnerabilidade”, apontou.

Antropólogo, Richard Parker disse que foi esquecido pelo caminho o conceito da vulnerabilidade social, tão fundamental nos anos 90, que preconizava os Direitos Humanos como uma filosofia institucional para o campo da AIDS. O intelectual destacou que “a vulnerabilidade foi primordial para se trabalhar essas questões (de prevenção). O tempo, porém, foi passando e a partir de 2005 – com o avanço da biomedicina – Direitos Humanos tornou-se secundário para enfrentar estigma, discriminação, preconceito e vai apagando da nossa memória as chances de reconstruir isso. É o verdadeiro desperdício da experiência”, lamenta. 

Terto Jr afirmou que “informação não é conhecimento. E não tem como as pessoas, os jovens terem conhecimento com escola fechada, sem leitura, sem aulas, sem educação sexual no currículo do colégio. Então acho que temos que começar a romper essas coisas. Olhar o estigma que tem com populações vulneráveis e ressignificar. Aprendi com amigas muçulmanas que no Ocidente só se olham para as mulheres quando elas estão apanhando, sofrendo, sendo humilhadas. Como se não se pudesse ter um estilo de vida diferente e revitimizar esse determinado grupo de mulheres. E com a AIDS e os grupos mais afetados ocorre a mesma coisa”, afirmou ele.

Questionado sobre as diferenças nas percepções entre sexo seguro e segurança negociada produzidas nos anos 80 e 90, em comparação com a prevenção que se pede hoje, Parker explicou que “sexo mais seguro surgiu como uma prática comunitária, de forma a proteger a comunidade – você e seu par – nos primórdios da epidemia de AIDS. Uma prática solidária num momento em que as pessoas estavam ‘no chão’ com o HIV, ainda desconhecido e fatal nos anos 80. Já nos anos 90 as reflexões eram mais complexas e as terminologias, como segurança negociada, foi criada na Austrália por especialistas em que pessoas com parceria mais longa pudessem estabelecer acordos na sua relação como, por exemplo, transar sem camisinha entre si, mas com camisinha quando desejassem transar com outros”, pontuou. E completou: “acho isso interessante porque, conforme avançamos, as coisas vão ficando mais complicadas, mas temos também mais opções sobre aquilo que faz mais sentido para cada um de nós”. 

A sensação para o diretor-presidente é que toda uma geração de jovens está sendo condenada pelos desafios impostos pelos valores conservadores nesse momento, que prega a valorização da vida. “Mas a sexualidade também é vida e precisamos manter viva essas pessoas também”, alertou.

Finalizando a atividade, Vagner de Almeida lembrou que “a falta de camisinhas ainda é uma realidade para muitas regiões e populações no Brasil, como já demonstrei em filmes que gravei na Baixada Fluminense, com jovens que faziam de sacolas plásticas sua verdadeira prevenção na ausência do preservativo. Então segurança negociada, prevenção, risco e vulnerabilidade dentro da prevenção combinada liga-se a muita coisa, não tem uma fórmula certa, mas precisamos continuar lutando para que realidades como essa não sejam mais presentes”.

Texto: Jean Pierry Oliveira 

Foto: Vagner de Almeida

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