O diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, deu continuidade ao segundo dia de lives do “Seminário HIV/AIDS em tempos de COVID-19: em busca de respostas solidárias”. Com o tema “A história social da AIDS nas últimas 4 décadas e o que podemos esperar da quinta década da epidemia”, o antropólogo abordou sobre os principais pontos da história da epidemia de HIV e sua relação com a epidemia atual de COVID-19.
Com mediação do jornalista e integrante da ABIA Yusseff Abrahim, Parker iniciou sua fala abordando a História Social de uma Pandemia. Para ele, “temos tido uma história de relativo sucesso, mas que está em desconstrução no Brasil e no mundo, nos últimos tempos”. Objetivamente ele buscou separar sua apresentação em quatro atos:
– Quatro fases até o presente – mas uma história ainda em construção;
– Uma história de sucesso – mas de sucesso em plena desconstrução;
– O discurso sobre “o fim da AIDS” como uma cortina de fumaça que esconde uma dura realidade;
– O “desperdício da experiência” (Boaventura) e a atual epidemia de descaso.
Buscando fazer paralelos com a questão da epidemia de AIDS o antropólogo disse que, atualmente, os cientistas também vêm tentando achar uma saída e respostas para a cura da COVID-19 e/ou seu tratamento mais eficaz, assim como a sociedade precisa encontrar novas formas de lidar com esse patógeno desconhecido. Até mesmo por isso, é necessário resgatar na história da Saúde Global das epidemias – principalmente o da AIDS – alguns apontamentos e lições. “A AIDS já foi uma pandemia e também precisou ser enfrentada de maneira global. A primeira década foi uma década muito difícil, com um sofrimento terrível para as pessoas infectadas pelo HIV. Mas o positivo foi o começo de uma resposta solidária ao vírus e precisamos enfatizar isso hoje”, contextualiza.
Após um breve resumo cronológico Parker adentrou um pouco mais em cada onda. De acordo com o antropólogo, desde o começo da primeira onda havia a tensão e sinergia entre a atenção primária e a resposta emergencial ante a epidemia. “Temos enfrentado nos últimos tempos dificuldades terríveis por conta do conservadorismo no HIV/AIDS, no Brasil e no mundo. Mas desde o começo da AIDS o estigma, preconceito e a opressão foram desafios para a prevenção da AIDS”, relatou Parker.
Outro ponto destacado foi a forma encontrada por cada comunidade para cuidar da epidemia e daqueles que estavam infectados mesmo com todo o processo de redemocratização, politização da sexualidade e o Movimento Sanitarista, que se fizeram presentes nessa primeira onda.
Construção da Segunda Onda
A construção de um Movimento Global contra AIDS nos Anos 1990 foi o mote inicial sobre a segunda onda da epidemia de AIDS. As maneiras pelas quais a resposta inicial à epidemia na década de 1980 foi transformada em um movimento global muito mais amplo foi uma das explanações realizadas pelo palestrante. Além disso, Parker falou sobre a explosão de novos atores e ideias no período como a criação do UNAIDS, que neste período apesar de ter um papel discreto era importante por tentar representar os interesses positivos da sociedade civil e ativistas.
Em seguida, até o final dos anos 90 e começo dos anos 2000 começa a chamada “resposta brasileira” como “modelo”. “O Brasil fez o que parecia impossível sustentar de que países menos ricos não poderiam sustentar respostas que respondessem a crise da AIDS e ao acesso a medicamentos. Esse foi o auge da importância brasileira que vale a pena relembrar daquilo que é possível fazer quando se tem vontade política, do governo e da sociedade civil, de forma progressista e valorizando os direitos humanos”, enfatiza Parker.
Terceira Onda – Escalonamento da Resposta
O período da terceira onda foi salientado por Parker como “um momento de otimismo onde víamos que podíamos fazer algo para mudar a epidemia de HIV”. Esse momento foi de expansão massiva do acesso ao tratamento via antirretrovirais. Período marcado pela criação do Fundo Global e outras diversas iniciativas de cunho público-privado. Também foi a década em que a Re-biomedicalização da epidemia a partir 2005 mudou as estruturas da epidemia.
E aí vem o paradoxo em que o mundo lá fora ao mesmo tempo que reconhece a importância da resposta brasileira ante a epidemia, o Brasil inicia (com sucesso parcial) a descentralização (de recursos e ações). Isso se traduziu na consolidação da independência do país para o enfrentamento da epidemia.
Quarta Onda – O Fim da AIDS?
A tendência da quarta onda é o discurso do fim da AIDS. A construção dessa narrativa começa em 2010 com o “Getting to Zero” (plano do UNAIDS para 2011-2016): 0 novas infecções, 0 mortes devido à AIDS, 0 discriminação. Pula para 2014 e chega o “90-90-90”, uma proposta da UNAIDS para 2020 onde a meta é alcançar 90% de pessoas infectadas diagnosticadas, 90% dessas em tratamento e 90% das pessoas tratadas com carga viral indetectável.
Em 2016 ainda tivemos a Declaração Política para o Fim da AIDS. Mas para Parker, “essa narrativa é uma cortina de fumaça que esconde o sofrimento de milhões de pessoas com acesso de medicamentos de segunda classe, com inúmeros efeitos colaterais e não atualizados, daquelas pessoas que ainda não tem acesso ao tratamento ou aos antirretrovirais e ao estigma e discriminação”, critica. E completa: “e essa narrativa esconde as altas taxas também de mortes ainda por AIDS, inclusive no Brasil, e do acesso ao tratamento como direito que ainda não é totalmente universal do Brasil, como a PrEP. Essa visão é uma falácia para esconder coisas que não vão bem e para esconder o escalonamento com retrocessos em todos os países, onde o Brasil também é um dos líderes”.
No Brasil, desde 2010, a era do Fim da AIDS é a era do fim do modelo brasileiro para Richard Parker. Motivos não faltam, tais como:
– O abandono do protagonismo, a adoção de modelos externos e a censura de campanhas de prevenção (no governo Dilma);
– A total entrega para a rebiomedicalização da epidemia (nos governos Dilma e Temer);
– O descaso e o desmonte das políticas e do programa de AIDS (no governo Bolsonaro).
(Re)imaginando o Futuro da Epidemia junto ao COVID-19
E o fim da quarta década da epidemia de HIV/AIDS coincide com a chegada do COVID-19. E como chegamos até aqui? Parker destaca três fatores: 1) o contexto macro (político-econômico) global e local/nacional; 2) o contexto político (no sentido de política partidária); 3) o contexto paradigmático (epistemológico-conceitual). E finaliza demonstrando que AIDS e COVID-19 trazem consigo sinergias quanto a infecção, ao desastre das respostas (no Brasil e no mundo) e no realce dos determinantes políticos na saúde.
“Ambas são pandemia produzidas pela globalização e neoliberalismo desenfreado do final do século XX e começo do século XXI. Ambas também se movem pela vulnerabilidade e precariedade social, ao mesmo tempo em que a biomedicina individualizada e (acima de tudo) o Estado negam esta clara realidade”, finaliza.
Assim, imaginar um cenário do futuro das epidemias só será possível através da reinvenção de uma resposta à epidemia com base nos Direitos Humanos, através do enfrentamento das barreiras impostas pelos atuais direitos de propriedade intelectual, além da retomada da preocupação com violência estrutural e lutas pela inclusão.
Texto: Jéssica Marinho e Jean Pierry