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“Quando descobri minha sorologia eu pensei: vou morrer”, revela jovem soropositivo sobre o momento do diagnóstico, a depressão que quase o levou ao suicídio, a difícil criação no Norte e o engajamento político com o HIV e AIDS no Rio de Janeiro (2017)


Texto: Jean Pierry Oliveira e Jéssica Marinho

“Quando eu resolvi vir por Rio de Janeiro foi porque aqui eu me sentia acolhido e resolvi que era hora de ter uma nova vida”. Foi com esse sentimento que Tadeu Lemos (nome fictício) resolveu deixar o passado numa grande cidade do Norte do país e (re)começar do zero na cidade maravilhosa. Sentimento esse que ele não havia encontrado naquela que deveria ser seu porto seguro: a própria mãe. Criado pelos pais biológicos até os cinco anos, foi quando o casamento dos progenitores ruiu que sua realidade mudou. E não foi pouca. Com um histórico familiar desestruturado “onde todos os meus primos eram bandidos ou viciados”, ele viu sua mãe abandoná-lo a própria sorte quando decidiu que não queria mais ter a responsabilidade de criá-lo e o colocou num ônibus, sozinho, direto para a casa de seus avós maternos. “Só que quando cheguei lá, meus avós maternos não me aceitaram porque eu fui o primeiro neto e o primeiro negro da família. Então, eu voltei”, afirma ele. Rejeitado pela segunda vez, coube a avó paterna assumir sua criação. Já de idade, sempre que esta caia doente, seu destino era retornar a casa de quem não lhe queria por perto e ser submetido a agressões físicas e verbais. “Eu apanhava todos os dias, ela me acordava e me espancava todos os dias. Ela me batia com diversas coisas que estivessem na frente dela, por nada até. Qualquer coisa era motivo pra ela me bater. Ela já me acordava carinhosamente com um chute porque eu dormia no chão, então ela me acordava com uns pontapés e me mandava, tipo, comprar pão, me humilhava, as sete da manhã eu tinha que tá (sic) em pé porque eu tinha que comprar pão, enfim”, revela ele.

Por volta dos sete anos, ainda morando com a mãe biológica, compadecida das agressões e espancamentos sofridos diariamente, Tadeu foi pego pela vizinha para morar com ela. “E aí eu fiquei um período na casa dessa vizinha que era a dona Júlia, que hoje é minha amiga, os filhos dela são meus amigos também e que foram de grande valia, porque eu acho que se ela não tivesse me levado pra casa dela eu teria sofrido muito mais, não sei o que ia acontecer. Aí eu fiquei com ela, acho que, até quase uns 10 anos”. Mas a vizinha teve um aneurisma e como a avó paterna ainda encontrava-se adoentada, Tadeu – novamente – retornou para o convívio de sua mãe. Com outros dois filhos brancos – seus irmãos – que eram tratados sem distinções, Tadeu não sabe explicar os motivos de tamanha indiferença, mas acredita que “ela transferiu pra mim a decepção que ela teve com meu pai, nem acho que era assim forte o racismo dela, porque ela se envolveu com um homem negro né”. E completa: “Eu não fui planejado, eu não sou fruto de uma relação planejada. Eu sou fruto de um acidente”. A partir dos 10 anos sua madrinha resolveu assumir a responsabilidade de criá-lo, mas com um único objetivo em mente: fazer do afilhado um empregado doméstico. “Eu não era a pessoa que ela pegou pra criar. Ela me pegou pra eu trabalhar pra ela. Então eu lavava, limpava a casa, já com 10 anos de idade, então todos os dias eu tinha que limpar uma casa muito grande. Então eu acordava as sete da manhã pra limpar a casa as oito da manhã e terminava de limpar a casa ao meio dia. Aí eu almoçava e ia pra escola porque tinha que estar na escola 13h30.Quando eu saia da escola eu voltava pra casa e eu tinha que lavar a louça do café e do jantar e limpar a casa pra dormir e no dia seguinte começar tudo de novo. Era minha rotina diária. De 10 até os 16 anos”.

Aos 16 anos, Lemos começou a trabalhar como aprendiz num escritório como Office boy pela manhã e aos estudos pela tarde, aonde já chegava a noite em casa. Como não servia mais aos interesses de sua madrinha, ela o expulsou de casa e ele retornou para a casa de sua mãe. E com ele as agressões. Mas, disposto a acabar com aquilo dessa vez o jovem reagiu. “Ela tentou me bater porque a minha irmã deixou alguma coisa fora de lugar e eu fui reclamar e ela disse que eu não tinha que reclamar, aí eu peguei e falei “vou reclamar sim”, porque ela deixou fora do lugar e aí ela veio pra me dar um tapa. E quando ela veio me dar o tapa eu fui e segurei o braço dela e consegui desabafar tudo que eu sentia. De toda a minha infância, de toda a minha adolescência, eu falei tudo. E falei que se ela me batesse eu iria bater nela. Ela ficou quieta, sentou atônita, surpresa né (sic) porque eu falei tudo, tudo dos abusos, das vezes que ela me espancou e das coisas que ela falava. Ela falava que tudo isso era mentira, os espancamentos ela sempre falou que era mentira, ela sempre negava. E eu falei que ela era uma mentirosa, enfim, falei tudo. E aí depois disso eu fui embora de lá. Aí passei um tempo na casa da dona Júlia de novo, que é essa senhora que me pegou quando criança, e depois voltei a morar com minha mãe de criação que era minha avó”. Foi ainda durante essa idade que Lemos percebeu que havia um outro desafio a sua frente: a descoberta de sua homossexualidade: “eu me percebi como homossexual, eu senti atração por homens, definitivamente, com 14 anos e lutei contra isso porque achava que era uma anomalia e que era por conta dos abusos que eu tinha sofrido na minha infância, porque assim: eu nunca fui estuprado de fato na minha infância, mas tipo assim, eu fui tocado sempre por primos e tios. Mas eram toques, eles nunca chegaram às vias de fato, mas sempre tocavam e tudo mais”.

Mas apesar de todos os questionamentos que lhe afligiam e o colocavam em dúvida consigo mesmo, foi quando começou a namorar uma menina e descobriu-se apaixonado por um amigo que ele não teve dúvidas de sua orientação sexual e aos 18 anos assumiu-se gay. Nesse momento, ele resolveu deixar a igreja católica que frequentava desde os 16 anos “porque eu não podia ser hipócrita de ir as missas e estar participando de grupos que em algum momento vão tocar nesse assunto ou simplesmente vão anular, porque essa é minha vida”, disse ele de maneira taxativa.

Companheiro com HIV

Com tantos percalços no caminho, o desejo latente de mudar a realidade e construir uma nova história de vida se acentuava dia após dia. Apesar do desejo de mudar-se para o Rio de Janeiro, Lemos foi adiando a decisão e um dos motivos durante muito tempo foi o relacionamento com seu ex-companheiro. Mas quando seu companheiro soropositivo faleceu, vítima de uma doença oportunista, ele não teve dúvidas e veio para o Sudeste. Sobre a relação, ele conta que não sabia da sorologia do marido. Mas que isso nunca foi um problema para si. “É, assim, ele faleceu de uma doença oportunista, ele tinha HIV só que nunca havia me falado nada. Assim, ele nunca falou. Nunca. A gente (sic) ficou junto um ano e meio e ele nunca falou nada. E ele só foi morar na minha casa nos últimos três meses de vida. E aí foi quando eu desconfiei porque ele tava com uma doença, que eu não me lembro o nome agora, não é tuberculose mas é respiratória…enfim, é uma doença oportunista que muitas pessoas positivas que não fazem tratamento, quando descobrem, acabam indo a óbito. Ele faleceu disso e acabou brigando comigo pra que eu não fosse no hospital visitar ele. E eu não fui, porque ele falou que não queria que eu visse ele assim e eu respeitei e não fui”.

Além de lidar com a dor do luto, Lemos ainda deparou-se com uma grave violação ética cometida por profissionais do hospital onde seu companheiro ficou internado. “Quando aconteceu – ele faleceu na madrugada – uma semana depois chegou pra mim a informação de que a enfermeira que havia atendido ele, falou para outras pessoas que ele tinha falecido de HIV, que ele tinha AIDS e não sei o que e aí, essas outras pessoas chegaram até a mim para dizer, que uma pessoa de dentro do hospital expôs a sorologia dele”, relatou. E completa: “(Na época) eu não tinha nenhum envolvimento social com nada. Hoje eu entendo que isso é crime e que ela não deveria ter feito isso e que se de repente a minha postura naquele momento fosse a postura que eu tenho hoje, eu teria ido atrás. Me arrependo, mas me arrependo em partes. Porque eu não tinha envolvimento nenhum, não sabia como era”.

Descoberta da Sorologia

Mas não foi por muito tempo que seu envolvimento com o HIV e a AIDS sempre se deu distante. Em 2014, T.L deparou-se com outro grande desafio em sua vida. Novamente a soropositividade perpassou por sua vida. Desta vez, consigo mesmo. “Eu descobri há três anos, em 2014. E foi muito ruim né (sic), porque eu comecei a ter algumas reações no meu corpo. Eu descobri com sífilis a minha sorologia. Então eu fui porque a sífilis se apresentou, eu tava tendo umas feridinhas no pênis e tudo mais e aí eu fui no urologista, aí ele me examinou e me encaminhou pra fazer um geral”, afirmou. Foi durante uma ação preventiva no shopping onde trabalhava que ele resolveu fazer um teste rápido. E já naquele momento, Lemos deparou-se com a falta de preparo e sensibilidade de profissionais da saúde para lidar com algo tão importante. Segundo ele, “eu trabalhava no shopping e o laboratório ficava no subsolo, aí eu fui lá e fiz o primeiro teste e quando eu fui buscar o primeiro teste, o resultado, a menina da recepção assim totalmente despreparada, nervosa, falando alto “ahh o resultado do HIV ainda não saiu” na recepção e eu super assim constrangido com meu uniforme de trabalho, no meu ambiente de trabalho. Porque a minha loja ficava no meu primeiro piso e o laboratório era no primeiro. Então aquilo me deixou tão desesperado e eu fiquei assim gelado por dentro, porque a mulher (ficou) gritando que o meu resultado de HIV não saiu”.

E quando saiu os constrangimentos continuaram. “E a mulher assim me passou o segundo, aí eu fui e colhi o segundo, mas aí já me desestruturou completamente, eu já estava sofrendo por antecipação porque assim: eu tinha sido exposto, se ela tivesse me chamado depois que ela gritou e berrou (…) até que uma médica me chamou e explicou que deu uma inconformidade e ela ia me passar o segundo. Quando eu fui buscar, a mulher abriu meu resultado numa tela de computador num balcão onde estava todo mundo. Sabe balcão de recepção que está todo mundo ali pra pegar?! Ela abriu o resultado do meu exame numa tela de computador que ficava virado pra recepção, então quando abriu eu já li: tava reagente. E aí eu fiquei desesperado. Parece que eu ia cair ali e todo mundo olhando. Eu não sei se as pessoas leram, mas na minha cabeça tava todo mundo lendo que eu tinha AIDS naquele momento, porque eu tava sozinho. Eu fui buscar sozinho. E daí eu saí desesperado pela rua, andando assim sabe, sem saber o que fazer. Aquela coisa que todo mundo quando descobre né (sic): “vou morrer”.

Depressão e Suicídio

Abalado e divagando perdidamente em seus próprios pensamentos, entre a descoberta da sorologia e a solidão por não ter com quem compartilhar isso, Lemos entrou em depressão. “No meio disso, de 2014 a 2015, eu tive depressão. Então, assim, eu abandonei o trabalho e fiquei 10 dias em casa pensando em como eu ia me matar: se eu ia tomar um veneno, se eu ia tomar algum troço, eu tava pesquisando como eu ia fazer meu suicídio. Então eu fiquei 10 dias trancado sem sair programando isso”. Nesse momento, já decidido de seu ato, ele resolveu entrar no Facebook e publicar um texto para ser postado justamente na hora em que tivesse se envenenado. Mas, quis o destino, que fosse por meio da rede social que ele desistisse de atentar contra a própria vida, através da morte de outra pessoa. “E aí quando eu abri o Facebook eu vi a mensagem de algumas pessoas para um menino que eu conhecia e que morava perto de minha casa, que cometeu o suicídio. Quando eu vi uma mensagem de uma garota falando que sentiria saudades dele e blá blá blá, eu fiquei curioso e fui até o perfil dele e quando eu cheguei lá eu vi que tinha inúmeras mensagens pra ele. E aí eu descobri que ele tinha cometido o suicídio. O que me conscientizou é porque eu vi que tinha muitas pessoas sofrendo por causa dele e aí eu não achei justo fazer isso com os meus amigos”.

Apesar de ser uma das maiores causas de morte no mundo, sendo cometida a cada 40 segundos conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é tratado como um tabu e com reservas nas mais diversas formas de comunicação. Atualmente, uma das produções que vão à contramão dessa premissa é a série norte americana “13 Reasons Why”, que mostra de maneira muito realista o drama vivido pela adolescente Hannah Baker que se suicida após diversas agressões e abusos sofridas na escola. “Suicídio é uma coisa muito séria e eu acho sim que deve ser falada e ela tem sim que ser exposta nos meios sociais e eu passei por isso. E o que me salvou foi ver alguém que cometeu o suicídio. Pra algumas pessoas isso pode ser incentivo, mas pra mim foi uma salvação. Você não precisa ficar toda hora dizendo que alguém se matou, mas precisa debater isso dentro de casa, nas escolas, falar de maneira preventiva. Encontrar uma maneira didática de falar com a juventude sobre isso. Porque é muito importante”, completa.

Aumento de Infecções em Jovens

Falar com a juventude de maneira mais objetiva e menos didática ou repetitiva. É dessa maneira que T.L vê uma possibilidade de se chegar naqueles que negligenciam a prevenção e diminuir os números epidemiológicos. “Já virou automático o “use camisinha, use camisinha, use camisinha” e aí como ninguém fala sobre o durante, sobre o soropositivo, já que não tem campanha com o soropositivo que diz que temos que tomar um remédio todo dia, que a gente tem uma vida normal mas a gente poderia ser assim, que a gente vive bem mas poderia ser assim (…). O jovem não tem acesso a essas informações. As escolas não falam sobre isso, as pessoas não são informadas sobre isso e acho que é por isso que cresce porque eles estão sempre romantizando a história do sexo sem camisinha “ah você é meu namorado, eu confio em você, então vou fazer”. Qual foi o comercial de massa que durou e você viu lá “sou soropositivo” como, por exemplo, tem lá do câncer? O câncer fez uma campanha de pessoas que tinham tirado a mama e recebiam um abraço”, critica ele sobre o diferente enfoque entre as doenças, por exemplo. Além disso, ele enfatiza que o jovem de hoje não teme mais a doença “porque quando tinha uma “cara da AIDS” tava lá “ah meu Deus, que sofrimento”, mas hoje não. Então a “cara da AIDS” precisa aparecer como alguém saudável, alertando essas pessoas que apesar de ser saudável, é uma doença”.

Dificuldades na Prevenção e HIV/AIDS

Mas nem sempre ter informação é sinônimo de boas práticas. Apesar do combalido estado e  assistência prestada no serviço público de saúde no Brasil, T.L argumenta que um dos maiores problemas durante a prevenção e tratamento do portador do HIV e da AIDS vem muito antes disso e se reflete na falta de atendimento humano e conscientização dos médicos e demais profissionais da saúde. “Hoje em dia você até consegue ser acolhido por enfermeiros, mas você não consegue ser acolhido por médicos. A gente consegue dentro dos grupos sociais entender que as pessoas precisam ser tratadas como pessoas, elas precisam de atendimento humanizado quando se fala de HIV e AIDS porque câncer não é estigmatizado, as pessoas querem te abraçar, querem te acolher, tem campanha romântica na TV e quando você fala que tem AIDS as pessoas falam “nossa coitado”. E retifica: “As unidades de saúde não estão preparadas para receber uma pessoa que acabou de receber um diagnóstico e que estão com medo, que não conseguem se relacionar mais com as outras pessoas porque não sabe como o outro vai receber a sorologia dela. É difícil pra cabeça das pessoas. Às vezes nem é, mas a sociedade transformou a AIDS numa arma tão letal, emocionalmente, que as pessoas não conseguem se abrir. E isso poderia acontecer quando elas são recepcionadas num infectologista que pode dizer “olha, não é assim”. Não! O cara não olha na sua cara, passa um monte de coisas e te manda embora. E você se dana pra lá”.

Expectativa/ Futuro

E é por tudo isso que T.L não se abate e permanece engajado dentro dos movimentos sociais em prol dos direitos das pessoas soropositivas. Questionado sobre quais são suas expectativas para o futuro, após todas as experiências vividas e compartilhadas, sem titubear ele disse: “Eu penso em me envolver mais e ir em busca de mais pessoas. Quero muito me envolver nos movimentos, quero muito ouvir o que as pessoas tem pra me falar, quero muito dividir as minhas experiências com outras pessoas e poder ajudar outras pessoas. Porque eu acho que isso é alimento pra elas. Meu sonho hoje é poder conseguir me doar o máximo que eu posso pra ajudar outras pessoas”, idealiza. E no plano pessoal a junção de amor + ativismo também é uma boa forma de extensão de prazer e felicidade. “Nesse momento o que eu consigo pensar é que vou estar o resto da vida envolvido com isso, porque eu comecei agora e minha vontade é de se aprofundar mais e estar ali participando. Quero encontrar um parceiro que me dê e a mão e vamos juntos. Não que precise estar dentro do movimento comigo, mas que me entenda. Porque eu vejo que quando a gente tá (sic) dentro do movimento a gente fica com o tempo apertado, porque toda hora tem alguma coisa pra fazer. E isso me deixa muito feliz. Me dá uma saciedade emocional essa capacidade de ajudar e ver o outro feliz”, suspira.

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