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Quando a abstinência é um pecado contra a vida


por Richard Parker

Tendências & Debates

Na história da democracia brasileira, nunca houve tantos ataques aos direitos humanos em troca de um suposto viés ético e humanista. A política de abstinência sexual para prevenção da gravidez anunciada  —e já amplamente criticada pelos inúmeros equívocos— desconsidera os impactos desta política na resposta à Aids, uma das principais epidemias globais nos últimos 40 anos.

Deve-se dizer que a ministra Damares Alves (Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) até tem falado de Aids, mas de maneira equivocada. Há um ano, sinalizou para uma possível política de abstinência, quando declarou: “Se eu retardo um ano o início da relação sexual dessa menina, eu posso salvar a vida dela (…) porque nesse um ano ela pode ter se relacionado com alguém com HIV”. Essa afirmação alimenta o estigma que aflige as pessoas vivendo com HIV e ignora a evidência científica de que quem é soropositivo com carga viral indetectável não transmite o vírus —e para quem tem carga viral detectável existem diversos métodos altamente eficazes e disponíveis para a prevenção da transmissão.

Há duas semanas, no lançamento da nova política, cartazes diziam que camisinha não protege das ISTs (infecções sexualmente transmissíveis). Na ocasião, a ministra anunciou que vai suspender a distribuição de preservativos no sistema que abriga adolescentes em situação de privação de liberdade. O anúncio desconsidera que essa distribuição é hoje muito precária e, por isso, esses jovens estão sujeitos a frequentes surtos de sífilis e gonorreia. A sociedade brasileira não pode continuar enfrentando restrições ao acesso à informação e aos insumos para a prevenção.

O governo Jair Bolsonaro desconhece os sofríveis resultados dos programas internacionais de promoção da abstinência. Desde os anos 2000, os Estados Unidos são os principais financiadores e promotores da abstinência sexual no mundo. Em 2003, no governo Bush, foi lançado o Plano de Emergência do Presidente para a Aids (Pepfar, sigla em inglês), programa bilionário que priorizou investimentos em tratamento e prevenção em países com alta prevalência para o HIV. Em 2006, um terço do total desses fundos foi canalizado para a promoção da abstinência sexual, com foco nos países africanos. Diversas pesquisas já demonstraram o fracasso desses programas, pois não houve redução no número de infecções por HIV entre jovens.

A política de abstinência também fracassou em solo norte-americano. Até 2017, movido por crenças religiosas e visões ideológicas, os EUA gastaram mais de US$ 2 bilhões em programas domésticos. A promoção da abstinência nem retardou a idade de iniciação sexual nem reduziu o chamado comportamento de risco. Sobretudo, não resultou em declínio da transmissão do HIV e de outras ISTs.

Ignorar essas evidências viola o direito à saúde da população brasileira. Por aqui, continuam elevadas a taxas de transmissão do HIV e registra-se um crescimento vertiginoso da sífilis, ambas enfermidades que afetam, sobretudo, as pessoas mais vulneráveis: pobres, negras e em situação de risco social.

A melhor resposta de prevenção ao HIV e às ISTs —e também à gravidez indesejada— é a educação sexual, orientada pelo respeito aos direitos humanos. Pregar a abstinência sexual como política de saúde pública, sem considerar os efeitos comprovadamente deletérios, é um pecado contra a vida.

Direitos sexuais são direitos humanos.

 

Richard Parker é diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), professor titular emérito da Universidade de Columbia (Nova York), editor-chefe da revista científica Global Public Health e autor de mais de 250 publicações científicas

Fonte: Este artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo no dia 14 de janeiro de 2020.

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