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Projeto Diversidade Sexual realiza Oficina sobre Interseccionalidade no RJ


Foi realizado na última terça feira (25), no Scorial Hotel Rio, no Flamengo (RJ), mais uma edição satélite do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens como ato de pré-abertura do “Seminário de Capacitação em HIV: Aprimorando o Debate III”, da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA).

O evento, coordenado por Vagner de Almeida, reuniu 20 jovens e adultos de diversas regiões do estado do Rio de Janeiro e do Brasil para dialogarem acerca do tema “Interseccionalidade: enfrentamento da Epidemia de AIDS no Brasil Contemporâneo”. O início se deu com uma dinâmica de apresentação e expectativas sobre a Oficina onde cada um dos participantes pôde compartilhar um pouco sobre sua vida – pessoal e profissional – e o que esperava do evento. Estudantes universitários, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e ativistas de dentro e de fora do segmento HIV/AIDS foram alguns dos perfis selecionados, entre aqueles identificados como cisgêneros (pessoa que se identifica com o gênero biológico que nasceu) e transgêneros (não se identifica com o gênero biológico que nasceu), negros e brancos, da capital ou interior, numa interessante miscelânea como o tema preconizava. Além de Almeida, a dinâmica contou com o apoio e assistência de Juan Carlos Raxach, Jéssica Marinho e Jean Pierry Oliveira também membros do Projeto MAC.

No mural das expectativas foram destacados os desejos por: conhecimento, aprendizagem, sentimento de desconforto por questões ainda não resolvidas entre pares, compartilhamento, intercâmbio etc. Com diversas mulheres travestis e transexuais no salão de eventos, conhecer melhor o mundo da transexualidade e os desafios de viver sob uma diferente identidade de gênero foi algo quase unânime entre os presentes. “Isso aqui é o que eu acho de compartilhar sabedoria, mesclar e não deixar as caixinhas serem únicas. A ABIA sempre teve essa premissa, essa ousadia. E eu considero isso um verdadeiro TCC para mim”, resumiu Vagner de Almeida.

Já para Raxach, a ênfase dada as evidências científicas descreditam os saberes e o conhecimento adquiridos pelas “comunidades de base que no HIV/AIDS foram as primeiras a compartilharem suas vivências. Não foi a academia. E nisso a ABIA sempre foi muito eficaz: juntar o conhecimento da comunidade para com o da academia. Esse trânsito permite uma conexão”, ressaltou.

 

Oficina Interseccionalidade

Esse foi o momento de aprofundamento do tema norteador da Oficina. A condutora responsável pela dinâmica foi a assistente de Pesquisa Clínica do INI-Lapclin AIDS/Fiocruz Cléo Oliveira. Cria da ABIA, negra e mulher transexual coube à participante elucidar importantes questões para debates sobre o viés do estigma e preconceito frente a discriminação da epidemia de AIDS na contemporaneidade.

Antes de qualquer tópico da apresentação os jovens e adultos trocaram impressões e experiências de vida sobre a importância da saúde mental, depressão e suicídio. Um dos maiores males à afetar a população juvenil no mundo, diversos participantes ali presentes sofreram ou sofrem com o problema. “Eu já tentei suicídio após descobrir meu diagnóstico e foi uma amiga trans que me salvou”, contou emocionado o jovem Hugo*. Já o enfermeiro e universitário da Universidade de São Paulo (em Ribeirão Preto) Elias Teixeira afirmou que “eu venho de uma família conservadora, com um pai machista e violento e eu fui acumulando essas e outras situações até que não aguentei, desabei, chamei o SAMU para mim mesmo e fiquei dois dias internado na ala psiquiátrica do hospital. Saí de lá tão bem, como não me sentia em anos. Então não hesitem, procurem ajuda”, alertou.

E para poder (se) ajudar e ajudar os demais é importante saber quais são as estruturas e processos que atravessam cada indivíduo. E foi assim o mote inicial e conceitual da apresentação de Cléo Oliveira pós-debate. “Essa oficina surgiu depois de uma crítica feita por mim num seminário anterior da ABIA. Porque eu sinto e senti falta de uma intersecção entre a academia e a comunidade, entre experiências e saberes. Há questões fragmentadas importantes para debate e eu acredito que isso é o que valora uma boa conversa e te faz aprender com a experiência do próximo”, disse ela.

Para Oliveira o lugar de fala e o empoderamento são ferramentas que, principalmente para pessoas trans são muito mais contributivas “quando podemos ser sujeitos de pesquisa e não objeto de pesquisa”. Para corroborar seu pensamento, a também assistente social exibiu um curto vídeo da mestre em Relações de Estudos Feministas Carla Akotirene, no programa Perfil & Opinião, da TVE Brasil. Na ocasião, a intelectual versou transversalmente sobre gênero, raça e feminismo. “O vídeo deixa claro que cada fragmento traz suas questões e precisam ser pensadas. Temos aqui cinco mulheres trans e cada uma tem suas especificidades. E não se pode distinguir fragmentos de estigma: seja ela pode ser trans e negra, trans com filho, trans universitária, trans no movimento social e outros formatos. Por isso eu critiquei o último evento da ABIA. Porque não me senti contemplada por aquelas pessoas brancas e acadêmicas falando para elas mesmo, no lugar mais racista do Brasil que era Porto Alegre”, atestou.

“Eu sempre digo, e por isso mesmo sou contestado por pessoas que vivem com o HIV, que todos nós somos soropositivos sociais. Justamente para lidarmos com o estigma envolvido. E você não precisa ser negro, mulher, lésbica para lutar ou sentir a dor do outro. Você precisa estar envolvido para compartilhar saberes nos projetos e movimento social”, reforçou Almeida. “O preconceito está em todos os lugares. Eu sou do Espírito Santo e lá não tenho contato com mulheres transexuais e muito menos com mulheres trans brancas e, por isso, aqui está sendo um grande aprendizado para mim levar para outros jovens onde moro”, contou o ativista Isaque Lima.

“Uma questão que eu gostaria de colocar aqui para refletir é que a questão da interseccionalidade é um tema riquíssimo. É um conceito que tá fazendo 30 anos e é importante refletir sobre os movimentos identitários desses fragmentos. Mas até que ponto não se criou um padrão onde o discriminado aprendeu a discriminar? E o oprimido aprendeu a oprimir? E como desconstruir isso futuramente?”, indagou Raxach. “Concordo e discordo em partes de você, Juan. Quando o oprimido se empodera, (ele) se impõe, (e) ele encontra seu lugar de fala. E a interseccionalidade traz isso para gente. Esse é o ponto: não tem como ter uma ótica generalizada, única, do outro. Quando você quer combater o racismo, isso será importante tanto para quem é negro, como para alguém como o Isaque que foi rejeitado por um negro que não quis namorar com ele por ele ser branco”, explicou.

“Entender o lugar de fala é saber que você pode falar com o outro, mas não pelo outro. Eu sou uma mulher cisgênero e posso falar, dar o microfone para a Cléo, mas eu não sou como ela. Não sei o que ela passa como trans. E isso é que se confunde”, disse a psicóloga de Campos dos Goytacazes Thamyllis Lírio. A jovem reforçou ainda a importância de se cuidar diante do conhecimento social e/ou coletivo onde, principalmente, pessoas negras e periféricas são as mais afetadas. “E não se trata de quem sofre mais ou menos, mas de quem tá na ponta do processo, nas estatísticas, na realidade”, lembrou. Negar a realidade, por sinal, é desconsiderar que não se pode esquecer os problemas que acomete todo um segmento. Essa é a visão de Elias Teixeira, que fundou uma Liga de Gênero e Sexualidade na USP-Ribeirão Preto. Mas ele percebe que “o movimento social LGBT não quer falar de HIV. Porque associar o HIV com o LGBT é viver com a doença e isso é acompanhado do estigma. Mas não se trata de estigmatizar, mas de reconhecer que temos uma epidemia concentrada e ela afeta gays, HSH, jovens e trans”, justificou.

“Nós que somos ativistas temos que entender que o pré-conceito é algo intrínseco, sistêmico e imbatível. Porque nosso cérebro cria, desde pequeno, categorizações das coisas e pessoas. E só vamos superar isso com troca de gerações. E temos que entender, como militantes, que vamos construir passo a passo, com paciência o nosso lugar de fala e respeitando o dos outros. E será que a interseccionalidade vai abranger somente aquele que acumula mais minorias ou categorizações para ter mais lugar de fala? Temos que nos preocupar com isso. Até então eu era somente um cara branco e gay do Espírito Santo.  Mas há 15 anos eu vivo com HIV. Ou seja, meu score sobre para falar de outras intersecções ligadas a isso”, avaliou Ricardo*. “Nós temos que trabalhar nossos próprios preconceito, estigmas e discriminações para poder lidar com os outros. Mas as pessoas não estão preocupadas com isso. O movimento social não precisa de holofotes. Precisa de conhecimento”, completou Almeida.

A extensão do debate refletiu a importância e o poder que a interseccionalidade tem dentro e fora do movimento, para além das estruturas de gênero, classe e raça. Sobre isso, Jimena de Garay, mestranda e professora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), oriunda do México, disse que “eu tenho um lugar de ocupação aqui no Brasil que é diferente do México. Apesar de ser branca nos dois lugares, aqui meu status é de imigrante. Mas que funciona diferente do status de imigrante de uma indígena colombiana que foi forçada a deixar seu país. Então temos que construir bases para melhorar essa relação e permitir que as pessoas sejam respeitadas na totalidade”, pediu.

Respeito que Dafne Kora, mulher transexual de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, ainda busca dentro de casa. Oriunda de família evangélica, conservadora e com raízes italianas a jovem compartilhou que desde pequena “eu nunca fui levada a sério. Sempre fui julgada, sempre me senti menosprezada, sem autoestima. Foi só depois da minha segunda tentativa de suicídio que minha família resolveu me ‘aceitar’, (me) engolir para me ver viva”, lamentou. Encerrando a apresentação e os debates, Cléo Oliveira deixou uma indagação: será que estamos preparados para lidar com a fala que o outro passará a reivindicar e o lugar que passará a ocupar a partir dali?

Grupos de Trabalho

No período da tarde, pós-almoço, os participantes foram divididos em quatro grupos mesclados por idades, raças, sexualidades e identidades de gênero para serem trabalhados como eixos focais. Assim, os temas escolhidos por cada grupo foram: gênero, estigma, intersecções e transexualidade.

O objetivo era discorrer a partir do seu eixo, entre cruzando-o com outras estruturas estigmatizadas e/ou sensíveis do indivíduo. Durante a devolutiva das discussões, o Grupo 1 (Elias, Juan, Vagner, Sabino e Gabriela) apresentaram as questões que perpassam a realidade de travestis e transexuais. “Reunimos algumas dimensões: a não conformidade com o gênero e a não representatividade desde a infância, violência escolar, empregabilidade, isolamento, prostituição e drogas”, resumiu Elias.

O Grupo 2 (Hannis, Carla, Jimena e Rafael Salvador) abordou o estigma. “A noção de interseccionalidade pensada por nós é aquela que precisa visibilizar os corpos e ao mesmo tempo também trabalhar com o autocuidado. Visibilizar a diversidade e a busca pelos seus direitos pela pessoa que sofre com seus estigmas, seja pela cor, gênero, orientação sexual etc.”, resumiu Jimena.

O Grupo 3 (Anselmo, Tammylis, Jean Pierry, Dafne Kora e Lucilene) trouxe a perspectiva do gênero para a roda de apresentação. “Identificamos que nessa questão de gênero o principal alicerce é o machismo. É ele que estrutura conceitos achatados onde o menino não pode demonstrar fraqueza, tem que ser forte, provedor. E para além disso, dentro do próprio meio gay, ser afeminado é ser menosprezado em relação ao gay heteronormativo”, afirmou Anselmo Almeida.

Por último, o Grupo 4 (Cléo, Rafael Sann, Isaque, Jéssica e Thaylla) aproveitou o tema da Oficina e atravessou ele em questões gerais como homofobia, mercado de trabalho, identidade de gênero etc. “Tivemos, por exemplo, um caso recente que foi o casamento do (instagrammer) Carlinhos Maia. O cara casou e não deu um beijo no marido no altar. Por que um beijo incomoda tanto? Que sociedade é essa? Então não podemos universalizar a coisa porque não é algo do indivíduo, é algo refletido no e pelo indivíduo por parte de inúmeras vertentes e violências”, disseram Raphael Sann e Cléo Oliveira, respectivamente.

Após todas as falas, o momento posterior suscitou acaloradas opiniões acerca do que foi apresentado por cada grupo. Discordâncias e concordâncias sobre homofobia, ‘viver no armário’, transexuais, HIV/AIDS, construção e desconstrução deram a tônica da Oficina. A Oficina encerrou-se com os jovens deixando expostos no mural da sala de eventos seus sentimentos gerais acerca das atividades. “Muito obrigado pelo que vocês nos proporcionaram. Foi muito bom poder aprender, trocar e conhecer melhor vocês. E isso será algo contínuo. Também agradeço à toda equipe MAC, Richard Parker e Veriano Terto Jr (diretor-presidente e vice-presidente da ABIA, respectivamente), que não estão presentes, mas que sem eles nada disso seria possível”, agradeceu satisfeito Vagner de Almeida.

A Oficina “Interseccionalidade: enfrentamento da Epidemia de AIDS no Brasil Contemporâneo” foi mais uma ação positiva do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens em 2019, com apoio da MAC AIDS Fund.

Texto: Jean Pierry Oliveira

Fotos: Vagner de Almeida e outrxs

 

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