O Tratamento como Prevenção (TASP, em inglês, ou TcP, em português) consiste no uso de medicamentos antirretrovirais por pessoas vivendo com HIV/AIDS para que alcancem carga viral indetectável. Estudos comprovam que quem possui carga viral indetectável melhora a sua qualidade de vida e passa a não transmitir mais o HIV. Essa estratégia foi incorporada ao Programa Nacional de Pessoas Vivendo com HIV em 2013, após comprovação dos estudos clínicos sobre sua eficácia.
Apesar dos benefícios gerados pela estratégia, que integra as abordagens da prevenção combinada, muitos desafios ainda precisam ser discutidos e superados, como o combate ao estigma e a discriminação, a falta de informaçõees qualificadas sobre o TcP, o desmonte da saúde pública e a adesão ao tratamento.
Diante disso, o Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) promoveu no dia 30 de setembro a roda de conversa “A Prevenção nos anos 2000: Tratamento como Prevenção”, via Zoom. O evento teve como objetivo discutir sobre a estratégia do Tratamento como Prevenção, resgatando o histórico da incorporação do TcP no Brasil e discutindo sobre os avanços ao longo das décadas da epidemia.
Apresentação
O coordenador do Projeto Diversidade Sexual, Vagner de Almeida, responsável pela mediação, deu as boas-vindas aos presentes, apresentando o tema da atividade e os convidados.
Em seguida, o vice-presidente da ABIA, Veriano Terto Jr iniciou sua fala resgatando o histórico de uso do Tratamento como Prevenção no Brasil. De acordo com ele, quando incorporado ao programa nacional de Aids, nos anos 2000, o uso do TcP confirmou o que especialistas e pessoas vivendo com HIV já sabiam: pessoas em uso regular de antirretroviral regular e com carga viral indetectável teriam uma tendência a não transmitir o HIV para outras pessoas, assim como passariam a ter benefícios clínicos que evitariam a progressão para a AIDS.
“Nós já sabíamos, porque o que se chama hoje de tratamento como prevenção já era utilizado nos anos 90 em mulheres soropositivas grávidas, fazendo a prevenção da chamada transmissão vertical (da mãe para o feto). Tomando o AZT, na época, durante a gravidez e com o uso na hora do parto, evitava-se que a criança nascesse soropositiva”, contou.
Terto Jr. lembrou a pressão do movimento social de AIDS sobre o governo, quando estratégia foi adotada formalmente, em 2013, para que as políticas nacionais incluíssem os benefícios clínicos para pessoas vivendo com HIV. “O primeiro texto da nossa política de aids sobre TcP só falava dos benefícios para soronegativos. As pessoas vivendo com HIV não podem ser tratadas como vetores. Devem ter o poder de questionar e demandar uma qualidade de vida”, ressaltou. Ele também enfatizou que o Tratamento como Prevenção precisa ser pensado junto a questões culturais, econômicas e legais, para criar um ambiente propício para que essas estratégias possam acontecer de forma eficaz.
Juan Carlos Raxach, coordenador de projetos da ABIA, também palestrante, concordou com as observações feitas por Terto Jr. e acrescentou que temos abandonado a mobilização pela incorporação de novos medicamentos. “Não estamos mal, mas olhando para o mundo, estamos ficando para trás. Entre 2015 e 2018, foram 17 novas combinações incorporadas nos protocolos de saúde em outros países, enquanto aqui no Brasil não incorporamos novas combinações. Novas combinações geram medicamentos mais eficazes que geram mais qualidade de vida, mais adesão, possibilidade de carga viral indetectável mais cedo e menos transmissão do HIV”, explicou. Para Raxach, também temos que entender o que está acontecendo que a curva de novas infecções continua em alta no país.
Debate
A primeira pergunta, enviada via chat do Zoom, foi de Gustavo Renan, integrante do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura da Universidade Federal da Paraíba, que indagou se a mulher grávida precisa estar indetectável para evitar a transmissão vertical. Raxach explicou que o necessário é a mulher ter acesso a um bom pré-natal, fazer a testagem, receber o diagnóstico o mais cedo possível e iniciar o tratamento. “O tratamento para impedir transmissão vertical é eficaz em qualquer momento, mas quanto mais cedo mais eficaz é. O ideal é fazer e ter acesso ao pré-natal e a uma boa orientação para saber quando engravidar”, complementou.
Trabalhando com HIV desde o início da epidemia, Vagner de Almeida compartilhou suas observações sobre as populações que não alcançam essa estratégia, como populações com alto grau de vulnerabilidade, e pediu para que os convidados falassem um pouco mais sobre acesso ao tratamento como prevenção.
Fábia Lisboa, assessora de DST, AIDS e Hepatites Virais de Niterói, salientou que houve ampliação das opções de prevenção e da perspectiva de descentralização dessas estratégias, e questionou se o país o problema é a ampliação do acesso em relação a essas tecnologias.
Raxach levantou que o número de mortes por AIDS no Brasil diminuiu, mas o número de infecções vêm aumentando, o que significa que algo está falhando. Ao mesmo tempo, percebe-se a importância do tratamento para que a sorologia não evolua para a AIDS e não se torne um óbito.
Além de concordar sobre existir populações distantes do acesso a chamada roda da prevenção combinada, que consiste em ter à disposição diferentes estratégias preventivas para serem combinadas, Raxach propôs um acesso equitativo. “Para além de tomar antirretroviral. Quando falamos do famoso mandala (mandala da prevenção), as questões estruturais estão muito pequenas e muito na borda e sem um olhar de saúde mais amplo”, afirmou o médico.
Terto Jr. respondeu que há adesão dessas populações ao tratamento, mas faltam estratégias combinadas com o TcP que considerem condições de vida dessas populações. Ele também falou sobre a importância da quebra de tabus, lembrando que a comprovação de que antirretrovirais retirava a carga viral dos fluidos corporais auxiliou na discussão sobre práticas sexuais de maneira mais leve.
Monica Franch, também do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura da Universidade Federal da Paraíba, lembrou que foi na ABIA que ouviu falar sobre Tratamento com Prevenção pela primeira vez.
“Foi na salinha da ABIA, estávamos eu, Luziania… A gente fazia nossa primeira pesquisa sobre casais sorodiscordantes, pensando que só existia camisinha no universo preventivo e eu lembro que Veriano chegou e disse que estávamos muito atrasadas. Pra gente se abriu todo universo após aquele dia. Falar sobre TcP com vocês é junção de passado e presente e, espero que, de futuro também. A gente começou a aprender essas coisas com vocês e modificou muito a maneira como a gente vê, e foi muito bom poder contar com vocês em momentos de debate com gestão e movimentos sociais. Foi incrível!”, relatou.
Franch acredita que os métodos preventivos ainda são muitos desconhecidos fora do campo das pessoas que trabalham ou que vivem com HIV. “Essas tecnologias não chegaram à população como um todo, nem como insumo, como política, nem como informação. Fala-se muito mais, mas em círculos previamente interessados”, afirmou.
Vagner de Almeida compartilhou que toda a população jovem com que tem dialogado, a partir do Projeto Diversidade Sexual, relata que tem sentido prazer na pele, chamando atenção para a importância de falar sobre fluidos sexuais sem medo e de dar continuidade aos estudos com a população jovem sobre esse aspecto.
Outra pergunta colocada na roda foi sobre a proposta de descentralização de serviços e a falta de preparo dos profissionais da atenção básica de localidades distantes dos grandes centros. Quando questionado sobre como a ABIA tem pensado a atual resposta ao HIV/AIDS a partir dessa realidade, Almeida concordou que essa diferença entre os atendimentos nas capitais e nos atendimentos acontece e apontou também que muitos agentes misturam ao seu atendimento à religião. “A religião, o estigma, a discriminação perpassa qualquer tecnologia avançada quando o profissional de saúde fala que você se infectou ou o estado que você se encontra é por pecado, é por não ter encontrado Jesus”, lamentou.
Já Raxach enfatizou a necessidade da individualização do tratamento como um caminho. “Estou pensando como profissionais de saúde que em princípio teria alguém frente a mim com toda uma série de questões para tentar ser aderente. Também é muito importante que profissionais sejam desprovidos de falsa moral, e não deixem de fornecer informações que permite que a pessoa com HIV possa viver com melhor saúde”, afirmou.
No caso da adesão ao tratamento, o médico lembrou que graças à escuta da demanda das pessoas vivendo com HIV/AIDS e luta, foram adotados tratamentos mais potentes e menos tóxicos, mas que o Brasil está ficando para trás e novos tratamentos como medicamentos injetáveis mensalmente ou biterapia ainda nem são discutidos no país. “Nós, como comunidade, devemos nos reunir e mobilizar para ter acesso a novos tratamentos e novas tecnologias para o tratamento e novas vias de ingestão do medicamento”, alertou.
Terto Jr. afirmou que é preciso pensar nas lições que a AIDS trouxe em todos os anos e em aprendizados passados por Betinho e Daniel sobre enfrentar o HIV falando, conversando e escutando uns aos outros, apesar de locais seguros de fala e de escuta estarem restritos no momento. “Tem sido muito pouco o que as comunidades têm podido falar e se elas não podem falar sobre, não vão aprender também. A gente tem que enfatizar mais, criar mais locais de falas, para que as pessoas possam colocar suas dúvidas e seus saberes. Não vamos ampliar a prevenção combinada sem quebrar silêncios. Esse é o nosso desafio”, enfatizou.
Encerrando a atividade, Vagner de Almeida apontou que é preciso voltar a ter um diálogo amplo, principalmente dentro das escolas, e poder multiplicar com camada jovem sobre sexualidade.
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Texto: Maiana Santos
Jornalista e Assessora de Projetos da ABIA