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Primeira trans na Assembleia de SP quer ‘mandata’ com foco em negros e LGBTs


Bruno Santos/ Folhapress – Produção Daniela Ribeiro

“Mulher, negra, trans, nordestina. Mulher, negra, trans, nordestina. Mulher, negra, trans, nordestina.”

Primeira deputada transexual da história da Assembleia Legislativa de São Paulo, Erica Malunguinho, 37, reclama que toda reportagem sobre ela coloca após seu nome a sequência de palavras “mulher, negra, trans, nordestina”.

“Jura que sou assim?!”, ironiza a parlamentar do PSOL, que marcou a entrevista com a Folha no café Por Um Punhado de Dólares, no centro de São Paulo, decorado com camisetas estampadas com Lula Livre, #EleNão, Haddad, CUT, MST e o símbolo do Corinthians.

“É preciso debater por que sou apresentada dessa forma. Isso torna as bandeiras estanques e é, inclusive, um desrespeito. Nas nossas construções ancestrais históricas não havia nada disso.”

Em seu perfil no Facebook, entretanto, escreve: “Esse corpo é preto, de mulher, trans e nordestino”. É uma reafirmação por enquanto necessária, ela pondera, para lembrar “os grupos apagados da cidadania”.

Desde a eleição, apresenta-se como Mandata Quilombo. Ao mudar “mandato”, um substantivo masculino, para o feminino, despreza a gramática da língua portuguesa em prol do que considera ser uma atitude política.

Suas causas são as do movimento LGBT. É a mesma lógica que a faz usar eventualmente o “X” no lugar do “O”. “Vocês vão entrevistar todxs os deputadxs?”, perguntou à reportagem, utilizando a troca que tem se tornado comum em meio ao feminismo e às discussões sobre gênero.

Já o Quilombo, que seria, digamos, o sobrenome da Mandata, carimba o compromisso com o movimento negro. Em 2016, abriu no bairro de Campos Elíseos, na região central, um espaço que chama de quilombo urbano, com debates e eventos culturais em torno da comunidade negra.

O nome do espaço é Aparelha Luzia. Aparelha faz menção aos aparelhos, esconderijos utilizados por movimentos de esquerda na época da ditadura militar no Brasil. Luzia é uma referência ao crânio humano mais antigo do continente americano.

Ali, quem não é negro tem que “negociar a entrada”. Não é racismo, segundo Erica, mas resposta a ele.

“É uma negociação de pertencimento, não é impossibilidade da entrada. Nós, pessoas negras, LGBTs, estamos constantemente negociando nosso pertencimento. Quando vamos a bairros brancos, e isso existe, claro, temos que pensar na roupa, no cabelo. E há lugares que efetivamente impedem nossa entrada”, afirma ela, citando casos de violência recentes contra negros, como o da advogada Valéria dos Santos, algemada durante uma audiência, e a morte do jovem Pedro Gonzaga, golpeado por um segurança de supermercado, ambos no Rio.

Segundo Erica, já houve problemas na Aparelha com pessoas brancas “que tentaram fotografar moradores de rua”, que costumam frequentar o local, “e os corpos de mulheres pretas”. “Também já aconteceu de desrespeitarem nossa chef de cozinha e de não me considerarem como uma gestora, um ser político”, afirma.

Ela admite que “a Aparelha é um erro do ponto de vista da sociedade”. “Mas é um acerto considerando como a sociedade organizou a sua sociabilidade. Lugares de resistência não deveriam existir. Mas existem porque são necessários”, diz.

“É preciso haver espaços de proteção, onde os corpos negros possam estar livres e seguros. E, para isso, é necessário que pessoas que não pertencem à comunidade negra ou não são racialmente letradas saibam do que se trata. Não podemos ser vistos com exotismo, como objetos, como corpos que podem ser tocados de qualquer forma.”

ADOLESCÊNCIA

As questões raciais e de gênero estão fortemente presentes na formação de Erica. “Filha de mãe solteira”, termo que ela ressalta, nasceu em Água Fria, um bairro de periferia do Recife, em Pernambuco.

A mãe, que hoje tem 74 anos, “foi a escolhida da família para estudar, algo comum em famílias negras, com acesso escasso a recursos”, ela conta. Fez então magistério, deu aulas e depois se tornou enfermeira. A discussão política sempre foi presente na família.

“Meus avós, precarizados do ponto de vista social e econômico, eram muito engajados politicamente. Quando o governador Miguel Arraesfoi preso na ditadura, minha avó ficou dias na porta da delegacia.” Essa avó morreu no ano em que Erica nasceu. “Minha mãe fala que ela renasceu em mim.”

Na reta final do ensino fundamental, em escola pública, Erica precisava escolher entre o técnico ou o científico, normalmente a opção de quem tem planos de fazer uma faculdade. “Uma professora me disse que nunca viu pobre fazer científico, então escolhi técnico em contabilidade.”

Na adolescência, era um garoto gay que já questionava o gênero. Ainda como uma espécie de performance artística, vestia-se de mulher e andava pelas ruas para observar a reação das pessoas. O preconceito, diz, vinha de todos os lados e teve problemas certa vez quando foi a um bar gay de elite na capital pernambucana.

“Toda vez que eu saía do berço da comunidade negra, quando tinha que ir a festas, bibliotecas, cinema, shopping, tinha que negociar minha presença porque esses lugares de sociabilidade da classe média são estruturas de poder brancas.”

Mudou-se para São Paulo e conseguiu uma bolsa do governo federal para cursar pedagogia no Instituto Singularidades, considerado de vanguarda na formação de professores.

Socióloga e educadora, Gisela Wajskop, 61, foi a fundadora da instituição e se lembra bem de Erickson da Silva, nome de registro de Erica, que só mais tarde iria se tornar transexual.

“Era um bom aluno e sempre foi muito questionador e atormentado com diferentes questões. A de gênero se mostrava naquele momento mais presente do que a negritude, e debatíamos muito nas aulas.”

Ela foi a sua orientadora no TCC (trabalho de conclusão de curso). “Ele queria estudar a questão de gênero na primeiríssima infância. Acreditava que, desde pequena, a criança deveria ser educada sem gênero, sabendo que pode escolher. Era algo muito ousado para aquele começo dos anos 2000, quando pouco se falava sobre isso na educação, e foi algo que ele antecipou, até porque era uma questão dele.”

Mas terminou por abandonar a ideia. “Havia impedimento inclusive por parte das escolas, era algo arriscado”, lembra Gisela. O título final do seu TCC foi “As marcas da cultura escolar na constituição de uma docência”.

Já a dissertação de mestrado, que terminou em 2017 e assinou como Erica Malunguinho, foi sobre arte clássica e contemporânea africana. Com orientação de Denise Dias Barros, especializada em antropologia das sociedades africanas, recebeu o título pela pós-graduação interunidades em estética e história da arte da USP.

Erica, no entanto, prefere não mencionar o nome das universidades onde estudou. “Eu me recuso a receber carimbos das instituições que estão legitimadas pelo pacto do eurocentrismo e da branquitude. Não foram elas que me colocaram nesse lugar, muito pelo contrário, talvez tenham me ensinado a não ser quem eu sou.”

Para ela, as instituições “não têm que receber bônus das figuras que somos”. “Quem tem que receber esse bônus é minha mãe, as lutas históricas do movimento negro, a nação Palmares, o candomblé…” Está no candomblé, aliás, a origem do sobrenome que escolheu como figura pública, Malunguinho, entidade da religião que segue.

Erica já deu aula para crianças, adolescentes, em escolas públicas e privadas, e na formação de professores, sempre associando arte, cultura, educação e política.

‘SOCIALIZOU POUCO’

A deputada conta que sempre teve simpatia pela esquerda, mas a filiação ao PSOL ocorreu apenas pouco antes do processo eleitoral. Para a campanha, recebeu do fundo partidário R$ 5.000 e fez piada com a quantia em um debate recente: “Esse valor foi disponibilizado por um partido socialista só que não… Socializou pouco”.

Com poucas doações e um crowdfunding, espécie de vaquinha online, conseguiu um orçamento de apenas pouco mais de R$ 20 mil. Com uma verba irrisória diante do teto de gasto de R$ 1 milhão permitido por lei para a campanha de deputados estatuais, foi eleita com 55.223 votos.

Não atribui o resultado apenas às redes sociais. “Eu tinha pouco mais de 15 mil seguidores no Instagram na eleição. Não é uma matemática simples. As pessoas acordaram que é necessário que esse discurso esteja em disputa na narrativa da política. Assim como temos figuras extremamente conservadoras, violentas, que não se importam com quem não está no poder, há aquelas no contraponto extremo, como eu, que tenho como fundamento a emancipação coletiva.”

A deputada diz que irá formar seu gabinete com representantes dos grupos que promete defender. Prevê que não será fácil aprovar seus projetos, dentre eles o turismo social a quilombos e a criação de mecanismos de incentivo à inclusão LGBT no mercado de trabalho.

Em uma palestra que postou no seu Facebook, falou com bom humor do que considera obstáculos a enfrentar em todo o trâmite legislativo: “Eu fico imaginando chegar para Janaina Paschoal e dizer: ‘Janaina, quero passar meus projetos maravilhosos”, referindo-se à deputada do conservador PSL.

“Isso para chegar à plenária. Depois tem que conseguir aqueles votos impossíveis e, se aprovado, ainda tem o governador, que vai dizer: ‘Quero não’. A não ser que a gente lance um novo vídeo dele, mais picante por favor”, zombou, em menção ao vídeo que surgiu na campanha com um homem com o rosto parecido ao de João Doria (PSDB) participando de uma orgia, que o governador afirmou ser montagem.

Seu voto para a presidência seria para a colega do PSOL Mônica da Bancada Ativista, representante de um mandato coletivo, algo inédito, com nove integrantes, chamados codeputados, dentre os quais Erika Hilton, negra e transexual, também defensora de causas do movimento negro e do LGBT.

Erica Malunguinho tem no seu perfil uma coletânea de declarações do presidente Jair Bolsonaro contra gays, uma delas em que afirma “sou homofóbico, sim”, e aponta o discurso bolsonarista como incentivador de crimes de homofobia.

Desde a eleição, tem evitado se expor demasiadamente nas redes sociais, onde diz ser constantemente ameaçada. Afirma que tenta se proteger também nas ruas, mas evita falar em medo.

“Não tenho medo, tenho luta. Eu nasci morta segundo o sistema.” Ao final da entrevista, já de pé, se volta e completa o raciocínio: “Eu nasci morta para o sistema, mas estou viva. Porque o maior ato de resistência é um corpo negro vivo”.

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