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Primeira mulher transexualizada pelo SUS no Brasil celebra 20 anos de cirurgia


Foto: Mirela Von Zuben/G1

“A convivência com o resto do mundo mudou, porque antes eu não conseguia conviver”. As palavras são de Bianca Vitória Magro, de 47 anos, que comemora em 2018 os 20 anos de seu renascimento, como assim denomina. Ela é a primeira mulher transexual a realizar a cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil e vive em Campinas (SP), mesma cidade onde fez a operação, pela Unicamp.

Os trejeitos de uma mulher marcada pela feminilidade ficam evidentes, seja no jeito de falar, de se apresentar à sociedade e de olhar para si. Em entrevista, ela conta o que mudou desde 1998, quando abriu os olhos após a cirurgia e, pela primeira vez, se reconheceu.

“Depois do que aconteceu, eu fiquei conhecida como a ‘moça do transplante’, então posso dizer que fui muito bem recebida. Foi um período de descoberta, de se perguntar sobre ‘como vai ser’ em cada situação. Isso foi desde a higiene, até a primeira vez”, relata. “Era como um bebê mesmo, tive que reaprender tudo. Os médicos diziam mais ou menos como seria e fui me adaptando com o tempo”.

O nome, Bianca Vitória, foi uma escolha da avó paterna e da mãe. “Minha avó escolheu o nome Bianca. Desde pequena fui menina, usava as camisolas dela, comprava minhas calcinhas e usava os esmaltes dela. Aí um dia eu perguntei: ‘Mas qual deveria ser meu nome?’, e ela disse que seria Bianca. Eu devia ter uns sete anos”, lembra. “Minha mãe escolheu o nome Vitória porque ela dizia que minha ‘passagem’ foi uma vitória”, conta Bianca Magro.

A relação com a mãe, inclusive, foi sempre muito próxima. Bianca, que nasceu em Andradina, no interior de São Paulo, conta que se mudou para Campinas para ficar perto da mãe, Maria Cecília, que já vivia na metrópole do interior paulista. “Ela é a grande heroína da minha vida. Foi uma grande mãe, que cuidava e se doava”, relembra com carinho da mãe, que faleceu em outubro de 2006.

Bom humor e família

Bianca leva a rotina com leveza e está sempre rodeada de pessoas queridas. “Tenho ótimas pessoas ao meu lado aqui em Campinas, vizinhos maravilhosos que são como se fossem da família”, diz. “Minha irmã e meu irmão moram aqui. Meus outros sobrinhos estão aqui também”.

A relação com a irmã Lilian é tão forte que até mesmo os dois sobrinhos, Ricardo, de 29 anos, e Thayná, de 21, acabaram virando filhos. “Minha irmã mora do lado da minha casa, é uma grande amiga. Somos uma pela outra, nossa relação é fantástica. Nesse ponto, sou bastante realizada”.

O filho mais velho já se formou, na faculdade de Direito, e a mais nova segue os mesmos passos om a formação acadêmica. “Não vejo a hora de ir na formatura dela”, conta.

Quem é Bianca?

Segundo a própria, Bianca é “uma senhora de 47 anos, que cuida do marido e da casa. Quando os filhos pedem socorro com qualquer coisa, estou ali, pronta. Tenho uma vida, eu diria, pacata”. “Para quem já se esqueceu de 20 anos atrás, que me encontra em qualquer lugar, eu sou uma senhora. Quer dizer, nem falam senhora, falam moça”, brinca.

Aos 47, já realizou a maioria dos sonhos que havia galgado até os 27. “Tinha o sonho de estudar, de ser reconhecida, estar tranquila financeiramente, ter estabilidade e me casar”. Ela cursou contabilidade e chegou a exercer a função por um ano, mas não quis seguir em frente com a profissão.

Bianca passou dez anos vivendo na Itália até voltar ao Brasil, em 2013. No país europeu, fez curso de Cientista da Educação, que engloba ciência social com pedagogia. Foi lá inclusive que ela conheceu seu atual marido, o italiano Henri, e se casou com ele, em plena Primavera.

“Foi em 20 de maio de 2006. Casei com o homem que me ama e que foi muito importante na minha vida. Estou com ele ainda. Casamento é uma vez só, se morrer vira viúva”, brinca. “A gente tem uma relação normal de marido e mulher, com momentos de carinho, afeto e, de vez em quando, umas briguinhas, porque conviver é difícil”.

Pássaros e plantas

A mulher de 47 anos tem hoje uma relação muito próxima com sua criação de pássaros e com as plantas que cultiva no quintal de casa. “Como as pessoas já estão podendo se virar sozinhas, não precisam tanto mais de mim, eu vejo que os passarinhos precisam”, afirma. “Tenho quatro passarinhos que comprei em pet shop, legalizado com anilha. Eles estão sempre comigo”.

Além destes, ela também adotou outros três pássaros que ficaram sem mãe na fazenda de um tio. “Ela morreu, então eu peguei eles para cuidar. Estão lá, lindos, com três anos. Eles dormem dentro de casa, a gente conversa e até passeia. É uma terapia e uma diversão”.

As plantas são grandes companheiras de Bianca, que cultiva desde orquídeas, até coqueiros e uma horta com diversos temperos. “Tem manjericão, pimenta, coentro e mais muitas outras plantas”. “Sempre gostei de terra, de cultivar. Isso vem do sangue indígena, meu avô materno era descendente de índios”, relembra Bianca.

Aposentadoria

Depois do falecimento da mãe, Bianca conta que entrou em depressão. “Meu último cargo foi como coordenadora da Naed Sudoeste. Uma junta médica chegou à conclusão que eu estava inválida para o trabalho e me aposentaram”.

Ela chegou a pedir licença sem vencimentos no Núcleo de Ação Educativa Descentralizada (Naed), momento em que se mudou para a Europa. “Quando voltei, reassumi o cargo. Trabalhei mais um tempo e aposentei. Voltei para a Europa e fiquei lá até 2013, ano em que voltei de vez para o Brasil”.

Militância

Bianca defendeu por anos a comunidade LGBTQI+. “Trabalhei em ONGs com educação, cheguei até a abrir uma, mas chegou uma hora que não dava mais”. Ela conta que a militância junto aos semelhantes rendeu muitos frutos, já que conseguiu ajudar outras pessoas a conquistarem seus direitos sociais.

“Na época briguei pelo nome social. Até os 27 anos, minha vida foi de muita luta, mas depois eu colhi tudo o que plantei”, conta. “Nunca me vi como a primeira. Eu trazia um monte de gente junto. Estava fazendo para outras pessoas, para amigas que estavam perto”, relembra. “Levei todas para a Unicamp na época da transição, mas infelizmente eles não deram continuidade com o serviço. Algumas foram para São José do Rio Preto, outras fizeram particular mesmo”, conta, se referindo à cirurgia de redesignação sexual, que só foi regulamentada pelo SUS em 2008.

A redesignação sexual no Brasil

De acordo com o Ministério da Saúde, até abril deste ano, foram realizadas 474 cirurgias de redesignação sexual pelo SUS em todo o Brasil, tanto em homens quanto mulheres. A fila de espera chega a 288 pessoas.

Os procedimentos compreendem troca de sexo, retirada de mama, plástica mamária reconstrutiva e cirurgia de troca de timbre de voz, histerectomia (retirada do útero) e colpectomia (retirada da vagina), além de outros procedimentos complementares ao processo.

Somente cinco hospitais em todo o país realizam a cirurgia de redesignação:

  • Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Porto Alegre (RS)
  • Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo (SP)
  • Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG) – Goiânia (GO)
  • Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro (RJ)
  • Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Recife (PE)

A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo informou que, entre 2015 e 2017, realizou 123 procedimentos cirúrgicos, incluindo mamoplastias, genitoplastia feminilizante e mastectomias masculinizantes nos hospitais Geral de Pedreira, Estadual de Diadema e Estadual Mário Covas, em Santo André, no Grande ABC. Além destes serviços, o Estado conta com o Hospital das Clínicas de São Paulo, que tem gestão plena de seu ambulatório.

Bianca foi a única mulher que recebeu a cirurgia pelo Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Depois disso, a instituição não deu prosseguimento com as operações.

Futuro

Bianca se considera uma mulher justa. “Sempre fui muito emocional, espontânea, tanto é que não sei mentir. Olhou no meu olho, me irritou, aconteceu qualquer coisa… eu falo”, afirma. “Sou ateia, mas tem uma coisa que aprendi com a minha mãe: o bem e o mal. O que se planta nessa vida, se colhe nessa vida, e dê à natureza que ela te retornará”.

“Nesse mundo, o barato é você conviver com os outros. Enquanto eu estiver vivendo, quero que seja da melhor maneira possível, sendo a pessoa mais justa que conseguir”, diz.

A mulher de 47 anos olha para o futuro e tem apenas um desejo: quer ser avó. “O Ricardo, que é mais velho, já namora uma mulher fantástica há algum tempo. Espero que ele se case com ela e me dê um netinho para eu cuidar”. Ela se alegra com a possibilidade de seu sonho se realizar e afirma: vai ser uma avó especial. “Me vejo mimando os netos, fazendo doces e bolos, levando para passear”, finaliza.

Fonte: G1

 

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