Para muitas pessoas, usar o banheiro não é um ponto-chave a se considerar no planejamento do dia. Mas imagine se você fosse o alvo desta declaração: “Se por acaso dentro de um banheiro de uma mulher, que a minha irmã ou a minha mãe estiver utilizando, entrar um homem que se sente mulher ou que pode ter arrancado ou colocado o que ele quiser, eu não tô nem aí: eu vou tirar primeiro no tapa e chamar a polícia para levar”. A frase foi dita pelo deputado estadual Douglas Garcia em abril de 2019, durante sessão na Assembleia Legislativa de São Paulo, e é a versão declarada do ódio que pessoas transgênero — aquelas que se identificam com o gênero oposto ao que lhes foi atribuído ao nascer — sofrem muito concretamente.
O medo de xingamentos, constrangimentos, violência física e até de morte faz com que essas pessoas alterem sua rotina para reduzir o risco de transfobia, como é nomeada o preconceito contra transexuais e travestis. “Deixei de fazer muita coisa na vida, como me inscrever em um curso ou ir para a balada, pensando no banheiro”, afirma Glauco Vital, fotógrafo que mora no Rio de Janeiro. Ele é um homem transexual que frequentemente não se sente seguro para utilizar o banheiro masculino. Com pessoas à vontade para demonstrar preconceito como o referido deputado, que pessoa transgênero se sentiria segura?
Problemas urinários em homens trans
Deixar de ir ao banheiro é um dos fatores de risco de infecção urinária, que pode afetar bexiga, ureteres, uretra e rins. Causada em geral pela bactéria Escherichia coli, que vive normalmente no intestino, mas é danosa quando migra para o trato urinário, a infecção é mais recorrente em mulheres cisgênero (pessoas que se identificam com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer) e homens trans que não passaram por cirurgia de redesignação sexual (procedimento pelo qual as características sexual e genital de nascença são modificadas para se adequarem ao gênero com o qual a pessoa se identifica). O motivo é o mesmo: o tamanho da uretra dessa população é mais curta (cerca de 4 centímetros), o que facilita a invasão de bactérias. Já homens cisgênero e mulheres transsexuais que não fizeram a cirurgia possuem uretra com cerca de 16 centímetros. No caso de pessoas que fizeram a cirurgia de redesignação sexual esse quadro se altera, pois a uretra é readequada de acordo com o órgão genital.
Uma pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia identificou que 54% das pessoas transgênero entrevistadas tiveram problemas de saúde relacionados à falta de acesso a banheiros públicos, incluindo infecção urinária. Aproximadamente 70% tiveram dificuldade para utilizar os banheiros ou sofreram ofensas e ataques físicos nesses locais. A pesquisa recebeu respostas de 93 pessoas trans que vivem, trabalham ou passam longos períodos em Washington, capital dos Estados Unidos. Para os padrões científicos, a amostragem é pequena e localizada, mas são escassos os trabalhos que se debruçam sobre o assunto.
Para essa população, reconhecer-se como trans e realizar a cirurgia de redesignação são conquistas importantes, mas não suficientes para resolver o problema do desconforto ao usar o banheiro. “No banheiro feminino, sentia que estava invadindo o espaço das mulheres. Aí não ia. E na transição, você fica em uma espécie de ‘limbo’: não pode usar nem um nem outro”, relata Glauco. Quando o fotógrafo conseguia usar o banheiro, ficava à mercê de ser lembrado sobre por que evitava esses espaços. “Uma vez, no shopping, fui entrar no banheiro com um amigo e um rapaz falou baixo para a gente: ‘viado’”, relembra. Para se poupar de violências como essa, ele evita o banheiro de alguns locais. “Já saí do shopping e fui ao botequim do outro lado da rua. Paguei dois reais, usei o banheiro e voltei ao shopping.” Glauco teve infecção urinária quatro vezes nos últimos três anos.
A dificuldade para utilizar o banheiro fez Glauco Vital utilizar estratégias que podem trazer outros prejuízos à saúde. “O que eu mais fazia era beber pouca água para não precisar ir ao banheiro fora de casa”, conta. Beber água, porém, é uma das principais medidas que reduzem o risco de infecção urinária, além de ser fundamental para a manutenção da saúde de forma geral. No caso do fotógrafo, a desidratação chegava a provocar episódios de prisão de ventre, pois a falta de água faz com que o muco do sistema digestivo se altere, provocando azia, indigestão e dificuldade para evacuar. O déficit de água era tanto que o fotógrafo percebia a pele ressecada.
Acesso de pessoas trans a serviços de saúde
A dificuldade para acessar serviços de saúde também é um problema para pessoas trans. As equipes, em sua maioria, não estão preparadas para atendê-las. Questões como a não aceitação do uso do nome social e até falta de sensibilidade para entender as dificuldades desse grupo são alguns dos problemas.
“Passabilidade” é um termo que gera discussão nos movimentos LGBTQ+. Ele serve como uma espécie de medidor do quanto algumas pessoas da comunidade são mais ou menos aceitas na sociedade — o que não significa que as mais aceitas estejam livres de discriminação. “Mesmo com a maior passabilidade dos homens trans, eles são mais afetados pela infecção urinária que as mulheres trans por questões anatômicas. Apesar de não termos dados de pesquisas no Brasil sobre esses casos, a dificuldade para utilizar banheiros e o pouco acesso a atendimentos médicos pesam sobre a questão”, explica Marcele Paiva, médica de família e comunidade e responsável pela residência de Medicina no Centro Municipal de Saúde Heitor Beltrão. Localizado no bairro da Tijuca e ligado à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, o Centro possui um Grupo de Acolhimento para Pessoas Transexuais e Travestis que atende cerca de 70 pacientes por mês.
De acordo com a especialista, a unidade é exceção, já que grande parte das instituições de Saúde do Rio de Janeiro não garante o acesso a banheiros por pessoas trans nem oferece uma terceira opção sem gênero, o que reforça a necessidade da criação de ambulatórios e serviços dedicados a essa população. O pioneiro no país foi o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais, criado apenas em 2009, em São Paulo.
Como as mulheres trans são maioria nos atendimentos do local, casos de infecção urinária não são tão frequentes. Apesar de serem menos propensas a infecções urinárias, mulheres trans devem ficar atentas ao “aquendar”, termo usado na comunidade LGBTQ+ para o ato de “esconder” o pênis entre as pernas para ocultar seu volume. Existem casos em que a pessoa utiliza fita adesiva para segurar o pênis preso, o que impossibilita a ida ao banheiro ao longo do dia e aumenta o risco de infecção. Existem acessórios específicos que possibilitam “aquendar” sem impedir as idas ao banheiro, como calcinhas próprias para mulheres trans. Odair Gomes Paiva, médico urologista na unidade de Marcele, reforça que por conta de todas as especificidades, serviços especializados são fundamentais para atender essa população. “Ouvindo a história de pacientes no consultório, dá para perceber que aqueles que chegam aqui já estão rodando há muito tempo atrás de atendimento. Aqui é o fim da linha”, relata o médico.
Direitos legais das pessoas trans
De acordo com o Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil em 2018, naquele ano ocorreram 163 assassinatos de pessoas desses grupos. O levantamento foi feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) a partir de informações publicadas na mídia; ou seja, provavelmente o número é subestimado.
Apesar de ainda não existir uma definição legal sobre o tema, o debate avança. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, defendeu em 2015 que “pessoas transexuais têm direito a serem tratadas socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”. Na ocasião, o colegiado julgava um recurso de reparação de danos morais a uma pessoa trans que foi constrangida ao tentar utilizar o banheiro de um shopping em Santa Catarina. O recurso ainda corre no STF e aguarda conclusão do relator.
O Ministério Público da União é da mesma opinião. Em dezembro de 2018 foi publicada uma portaria que garante o acesso de pessoas trans aos banheiros das unidades do órgão, assim como a utilização do nome social, sejam elas usuárias dos serviços, membros, servidores, estagiários ou trabalhadores terceirizados.
A transfobia também é criminalizada no Brasil. Em junho de 2019, o STF decidiu que o preconceito contra pessoas trans, assim como a homofobia, é passível de condenação: de um a três anos de prisão, além de multa. Em suma, além de um atentado à saúde, praticar, induzir ou incitar a discriminação — incluindo restringir o acesso a um banheiro público conforme a identidade de gênero — é crime.
Glauco afirma que atualmente não passa por constrangimentos para ir ao banheiro porque sua rotina se dá em um ambiente que considera seguro. “Onde trabalho é tranquilo, o lugar já está preparado para lidar com as questões de gênero”, afirma o fotógrafo. Ele defende que, para encarar a realidade como pessoa trans, é preciso coragem e paciência. “A sociedade está começando a respeitar e entender agora, e ninguém nasce sabendo. Crie uma rede de amigos em que você confie para compartilhar e desabafar suas experiências. Não sofra calado”, aconselha.
Fonte: Viva Bem