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Por que os gritos homofóbicos no estádio precisam ser punidos?


Foto: Thiago Ribeiro/AGIF

Aos 19 minutos do segundo tempo do jogo entre Vasco e São Paulo em São Januário, um marco histórico para o futebol brasileiro aconteceu. Pela primeira vez, a arbitragem teve a coragem de interromper um jogo para fazer parar as manifestações homofóbicas que vinham da arquibancada. Foi recomendação da Fifa e do STJD, aconteceu na França duas vezes na última semana e foi replicado aqui na partida apitada por Anderson Daronco.

Muita gente deve ter achado tudo isso um “mimimi” absurdo, um exagero e uma prova contundente de que “o futebol está ficando chato” – como se o futebol, pra ser legal, precisasse incluir ofensas a um grupo de pessoas. Se levar isso em consideração, não é de ontem que ele está “ficando chato”. Porque décadas atrás, também era permitido e aceito gritar ofensas racistas em alto e bom som na arquibancada. Chamar o jogador negro de “macaco” já foi prática comum de torcedores. Até ser passível de punição e, principalmente, de repúdio. Até que a própria torcida se desse conta de que eram jogadores negros os responsáveis por algumas das nossas maiores alegrias no futebol. Não fazia sentido ofender um jogador negro do time adversário quando seu próprio time tinha jogadores negros como protagonistas. Tudo isso ajudou muita gente a perceber que o futebol não ficou mais chato por não permitir os gritos racistas – ao contrário, ele deixou de ser tão chato para jogadores e torcedores negros que sofriam com esse comportamento primitivo.

Até pouco tempo atrás, também era muito bem aceito assediar mulheres no estádio, gritar “vagabunda” ou “prima” para a torcedora que passasse na sua frente, ofender as repórteres, bandeirinhas e árbitras que ousavam ocupar seu espaço no gramado. Isso tem mudado. Talvez porque as esposas, filhas ou irmãs dos autores desses gritos tenham começado a ir ao estádio e isso os fez refletir sobre a “graça” dessa atitude. Talvez porque as próprias mulheres passaram a reagir, questionar, denunciar os assédios e ofensas que sofriam em vez de aceitarem caladas essas violências. Fato é que diminuiu. Não acabou, mas diminuiu. E, aos poucos, vamos mostrando que o futebol pode ser muito mais legal quando ele incluir todo mundo no jogo.

E é aí que está a chave para entender o que aconteceu ontem. Ainda não estamos incluindo todos no jogo. Se os torcedores “tradicionais” alegam que estão cerceando sua liberdade de torcer ao criarem regras como essa impedindo gritos homofóbicos na arquibancada, eles não percebem que a suposta liberdade deles está travando a liberdade de outros. Quantos casais gays você já viu na arquibancada? E quantos casais heterossexuais já passaram por você no estádio? Isso tem menos a ver com o número de casais héteros apaixonados por futebol do que com o medo imposto nos casais homossexuais apaixonados por futebol.

Quantos jogadores profissionais de futebol assumidamente gays você conhece? Será que a gente vai insistir na ingenuidade de acreditar que, num universo de milhares deles das séries A, B, C e D, nenhum, absolutamente NENHUM é homossexual? Ou seria o comportamento ofensivo que torcidas, imprensa e todos os órgãos vinculados ao futebol sempre tiveram com relação aos gays que estaria inibindo essas pessoas de saírem do armário?

Quando a torcida do Vasco (e eu poderia inserir aqui qualquer outra, porque todas já gritaram coisas assim) grita “time de veado” com o intuito de ofender a equipe adversária, ela passa um recado: ali não é lugar para “veado”. Não é lugar para qualquer um que não se encaixe nos padrões de ser homem heterossexual e que se comporte como tal (o popular “machão”). E esse tipo de comportamento restringe a liberdade de quem não se identifica com esse padrão e não encontra espaço para simplesmente ser quem é dentro do estádio. Aqui, um depoimento de uma torcedora corintiana (reforçando: poderia ser torcedora de qualquer time, dado que esse comportamento é comum em todos os estádios), que vai aos jogos com a namorada sem poder exercer sua liberdade com medo da reação alheia.

“É muito frustrante ter que continuar ouvindo, em 2019, gritos homofóbicos das torcidas. Para mim, em um relacionamento homoafetivo, é ainda mais doloroso. Não acho que o estádio seja um lugar que eu me sinta confortável de estar com minha parceira, por isso, quando vamos, nos tratamos como amigas. Não andamos de mãos dadas, não trocamos nenhum beijo como qualquer outro casal heterossexual faria. Não nos sentimos em um ambiente seguro para sermos o que somos. Acho que o estádio representa nossa sociedade, mas sinto que ele potencializa essas situações pelo fato das pessoas sentirem que suas ações são validadas coletivamente. Se uma pessoa quisesse gritar ‘bicha’ e todas as outras a repreendessem, essa pessoa que gritou repensaria ou se sentiria mal, saberia que tomou uma atitude errada. Agora, quando uma pessoa grita junto com muitas outras, há a sensação de que o que estão fazendo é correto, porque todos estão corroborando a atitude.

É triste também constatar que o que pode fazer parar os gritos seja a penalização do seu time ou a paralisação do jogo, a multa. Isso mostra que as pessoas que gritam talvez só pararão pelo fato do seu time ser prejudicado e não por compreender como isso é errado, atrasado, desnecessário.

Quando eu estou em um ambiente mais familiar ou entre conhecidos acabo por responder as pessoas que têm comportamento homofóbico do meu lado. Geralmente elas se constrangem e percebem que estão fazendo besteira. Mas imagino que as mesmas pessoas, validadas por muitas outras dentro dos estádios, agiriam em bando achando que aquilo é aceitável. E apesar de querer muito que esse tipo de comportamento acabe dentro dos estádios, acho que todos nós deveríamos monitorar o comportamento das pessoas que estão ao nosso redor. Quando identificar algum comportamento homofóbico (tal qual racista, machista, xenófobo…) precisamos agir rápido e responder a atitude delas. Só assim, daqui um tempo, as pessoas compreenderão que isso é inaceitável e portanto nossa sociedade vai evoluir”.

O depoimento dela faz concluir algumas coisas básicas: os gritos homofóbicos não são “brincadeira”, são ofensivos; não são “mimimi”, eles causam medo; se o preço para o futebol se tornar um lugar mais inclusivo e respeitoso para todos for ele ficar “chato” pra quem é preconceituoso, racista, machista e homofóbico, é um preço justo a se pagar.

Lembrando que, assim como o problema do racismo também é dos brancos, e o problema do machismo também é dos homens, o problema da homofobia também tem que ser das pessoas heterossexuais. Todo mundo tem o dever de combater esses preconceitos, porque como dizia aquele velho ditado repetido pelos nossos pais, a nossa liberdade acaba onde começa a do outro. Os gritos homofóbicos restringem a liberdade dos homossexuais que também têm o direito de viver o futebol por essência. E se ainda tem gente que não entendeu isso, ainda precisaremos da arbitragem e das punições para lembrar as torcidas que o preconceito não está liberado – nem na rua, nem nos estádios.

Fonte: Dibradoras/UOL Esporte
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