A quinta e última aula de Richard Parker, diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) – foi realizada na tarde da última terça feira (05/11), na sede da instituição, no Centro (RJ), das 14h00 às 17h00. O tema foi “Imaginando a Epidemia: As Políticas de AIDS e a Invenção da Saúde Global”.
A História Social de uma Epidemia Global
Para contextualizar o que queria explicar, Parker dividiu as ondas da epidemia de AIDS da seguinte maneira:
- 1981-1991: 1º Onda: anos de crise, mas também de resistência;
- 1991-2001: 2º Onda: batalhas para o acesso e a construção de um movimento global contra a epidemia;
- 2001-2011: 3º Onda: administrando a epidemia no contexto do Scale-Up e começo da re-biomedicalização;
- 2011-???: 4º Onda: prometendo o fim da AIDS (e entregando o fim do Scale-Up).
As Ondas da Epidemia
Após o breve resumo cronológico, foi necessário adentrar um pouco mais em cada momento. Segundo Parker, a primeira onda “foi o momento da chamada invenção da epidemia nos anos 80”. Anos marcados pela crise, mas também pela resistência diante da nova doença.
Já sobre a segunda onda, ele aponta que “você tinha realmente uma mobilização transnacional mais ampla, principalmente com o surgimento de medicamentos mais eficazes. Com ativistas e aliados como a ONU (Organização das Nações Unidas), Ministério da Saúde de vários países e aqui no Brasil do antigo movimento por reforma sanitária, pela identificação com bandeiras de Direitos Humanos e Saúde Coletiva que a AIDS também tem”, explicou.
Pulando para o terceiro momento da epidemia, o antropólogo caracterizou como aquele do “escalonamento da resposta global frente à epidemia nos anos 2000. Tem um aumento significativo de pessoas em tratamento, mas também de pessoas sendo infectadas. À grosso modo, você tem estimadas 35 milhões de pessoas com HIV. Apesar de ser considerado um progresso, já estamos vendo um desmanche do sucesso daquela década”, lamentou ele. E completou: “depois de 2008 você tem uma disputa muito maior para os recursos disponíveis. Pessoas ligadas à outras doenças que matam muito mais gente, mas não tem destaque na mídia, reagem aos recursos (dirigidos) para a AIDS. (Com isso) os recursos diminuem e chegamos à quarta década (da epidemia)”.
Onda essa que ele frisou não somente a escassez dos recursos, mas também onde “têm-se uma posição dos administradores da AIDS e do processo de escalonamento com o discurso de que estamos chegando ao fim da AIDS. Eles acreditavam que prometendo o final para muito breve, para os doadores manterem seus financiamentos e aumentarem as doações. Mas quase imediatamente a ONU e UNAIDS assinam o fim da epidemia para 2030 (e) os recursos caem mais ainda”, critica ele.
Além disso, Parker salienta que a “Fundação Bill e Melinda Gates e a indústria farmacêutica aumentam os repasses e essas doações ficam concentrados nas mãos de poucos países”, conclui. Dessa forma, o discurso do fim da AIDS ajuda a encobrir tais realidades:
37, 9 milhões de pessoas vivendo com HIV;
– 23,3 milhões supostamente com acesso aos antirretrovirais (ARVs);
– 14,6 milhões ainda não tem acesso (aos ARVs) > principalmente quase todos aqueles países mais pobres do mundo e que não são prioridades para os Global Health Initiatives (Iniciativas de Saúde Global), como o PEPFAR;
– Das 23,3 milhões que tem acesso, nenhuma agência estima quantos acessam a última geração de medicamentos;
– Sabe-se, por experiência, que no Brasil muitas dessas pessoas não tem acesso aos medicamentos mais novos;
– Efetivamente, milhões de pessoas só tem “acesso de segunda classe”;
– Em lugar nenhum o acesso à prevenção consta como direito de cidadania das pessoas;
– A difícil distinção entre direitos negativos e direitos positivos;
– O abandono da luta contra estigma e discriminação;
– O crescimento da criminalização e de índices de estigma;
– O crescimento de políticas populistas e neo-fascistas e o ataque conta gênero, sexualidade e pessoas vivendo com AIDS.
(Re)imaginando o Futuro da Epidemia
Para o diretor-presidente esse cenário de reimaginação do futuro da epidemia só será possível com alguns elementos elencados por ele, como por exemplo:
– Reinvenção de uma resposta à epidemia com base em Direitos Humanos;
– Criando uma pedagogia de tratamento e prevenção: por que os significados vernáculos importam?
– Enfrentando as barreiras impostas pelos atuais direitos de propriedade intelectual, regimes comerciais existentes e receitas neoliberais recicladas;
– Retornar para uma preocupação com violência estrutural e lutas pela inclusão.
Todos esses pontos são questões levantadas e refletidas por Parker que, segundo o mesmo, estarão presentes numa futura publicação autoral.
As Políticas de AIDS e a Invenção da Saúde Global
São mudanças de paradigmas que organizam a saúde mundial, como foram definidas. Mas atuam através de eixos como:
– Medicina Tropical (do século 19 à 2º Guerra Mundial);
– Saúde Internacional (final da 2º Guerra Mundial até o final do século 20);
– Saúde Global (a partir da virada para o novo milênio);
– A importância da AIDS para esta invenção da “saúde global” (para o bem e para o mal).
Linha do Tempo de Allan Brandt: “How AIDS Invented Global Health”
Sobre este tópico Parker separou alguns argumentos gerais e chaves para o pardadigma da saúde global e AIDS. São eles:
– A AIDS desintegrou as fronteiras entre saúde coletiva e medicina clínica – medicamentos essenciais tem benefícios para pacientes e populações;
– A AIDS abriu espaço para ativismo e “advocacy” (pressão política) de uma forma nova no campo da saúde. (Ex: os princípios de Denver);
– A AIDS inaugurou a nova era de financiamento via grandes iniciativas globais (o Fundo Global, PEPFAR, etc.);
– A AIDS ajudou a abrir espaço para um novo peso de recursos privados (como a Fundação Gates) e parcerias público-privado (PPPs);
– A AIDS abriu espaço para um novo debate sobre custo de medicamentos essenciais e o papel de propriedade intelectual no campo da saúde;
– A AIDS abriu espaço para uma nova compreensão do papel dos Direitos Humanos no campo da saúde;
Mas apesar de todos esses determinantes, há cautelas a serem consideradas, em especial sobre:
- Problemas com questões de governança global no campo da saúde – determinadas no Norte Global e aplicadas (ou impostas) no Sul Global;
- Problemas com diferentes modelos das grandes iniciativas globais, que reproduzem certo imperialismo;
- A perda de controle públcio nas instituições (supostamente multilaterais e nas parcerias (supostamente) PPPs);
- Limitações dos modelos biomédicos que continuam dominando o campo da saúde global;
- A resistência profunda do sistema capitalista com relação aos sistemas de comércio e propriedade intelectual;
- O esvaziamento dos princípios de Direitos Humanos (muitas vezes um discurso vazio dentro de sistemas).
A Reinvenção da Saúde Global e seus Principais Desafios nos anos 2020
Essa etapa está disposta sob tais argumentos:
– Enquanto o campo da saúde global tem sido visto com muito otimismo, a AIDS precisa ser reinventada e o campo da saúde global repensada urgentemente;
– A neoliberalização das políticas de AIDS e a dura realidade que o fim da AIDS encobre se repete, de forma ainda maior, no campo da saúde global.
Debate
- Sobre atenção básica, descentralização e territorialidade do tratamento
Parker: “O que foi criado na primeira década foi um pouco artificial pelo contexto. E a mesma coisa depois com a Lei Sarney e todas aquelas coisas para apoiar a saúde farmacêutica. Desde o começo o pessoal de Brasília sabia que teria que ter uma descentralização da estrutura do SUS. Desde 2002 é algo tipo “como é que vamos fazer isso?”. Só que a AIDS tinha criado uma resposta muito mais eficaz do que a estrutura do SUS.
Se o dinheiro não fosse desaparecer para as coisas especializadas, você poderia manter e não seria muito ruim para os usuários. Eu não sei como vai ser o futuro disso. Não tenho noção, lamentavelmente, (de) como vamos resolver essa questão. Sou pessimista. Veja as coisas sendo desmontadas aqui no Rio de Janeiro com (o) governo Crivella e Witzel”.
- Sobre PEP e PrEP
Parker: A dificuldade com PEP (profilaxia pós-exposição) em termos gerais tem sido o desconhecimento. E o segundo caso disso é o preconceito relatado pelos usuários com relação aos profissionais, como se tivesse feito algo condenável. E não tem coisas sendo feitas para melhorar esses serviços. E a maneira como isso acontece com PrEP, onde so médicos tem que fazer uma avaliação sobre quem merece receber esse medicamento, já que não tem para todo mundo”.
- Sobre os Guias de Sexo mais Seguro
Parker: Esses panfletos para grupos específicos tem relação com o site, onde há informações mais ampla, tanto sobre prevenção do HIV, como das IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e Hepatites Virais. É uma tentativa de usar recursos digitais para diferentes grupos.
Vagner de Almeida: Esse material é dividido para a linguagem de populações como HSH (Homens que fazem Sexo com outros Homens), Mulheres Cis e Mulheres Travestis e Transexuais. E em breve lançaremos o de Homens Trans que vai contemplar outras questões como hormonização e exames ginecológicos. E o site tem uma parte onde você encontra a linguagem popular utilizada por esses grupos, onde vocês podem sugerir novos vocabulários e nós inserimos. Ele é um glossário móvel e não estático”.
Texto: Jean Pierry Oliveira