Steven Universe é um ser híbrido, fruto de uma alienígena com um humano. Mas, apesar da origem extraordinária, e de seu objetivo maior ser proteger a humanidade, sua jornada é a de uma criança comum: lidar com o crescimento, os próprios sentimentos e as relações que o cercam.
A trama da série de animação “Steven Universe”, exibida no Brasil desde 2013 no Cartoon Network, pode parecer politicamente correta demais para adultos que cresceram assistindo a embates violentos nos canais abertos de TV pela manhã. Mas, embalado em cores vibrantes, personagens divertidos e uma trama sci-fi, o desenho tem conquistado fãs sem limites etários.
Criada pela norte-americana Rebecca Sugar, a animação é uma das mais queridas do público infantojuvenil hoje e tem ajudado a criar uma paisagem nova e mais diversa no universo animado para crianças com um herói cujo maior poder é saber usar a inteligência emocional, personagens não-binários e até o primeiro casamento lésbico em uma produção voltada para o público infantil.
Na quinta temporada da série, exibida (sem cortes) no Brasil em 2018, as personagens Ruby e Shippire, seres chamados de Gems, selam a união em um casamento. A cena não cita gênero ou orientação sexual, e serve apenas para dar continuidade à história das Gems, seres que se relacionam e podem literalmente fundir seus organismos em um único corpo, formando um novo indivíduo.
“Precisávamos mostrar, repetidas vezes, que não havia nada menos saudável nesses dois personagens do que em qualquer outro casamento animado já exibido no Cartoon Network”, diz Rebecca Sugar, que aos 32 anos se identifica como uma mulher não binária e passou a ganhar destaque graças a seus personagens carismáticos e histórias inclusivas. “Não há como negar que elas deveriam se casar”, explicou, em um evento pouco depois de o episódio ir ao ar.
Ainda que delicada, a cena soa como um pesadelo para alguns pais e países, principalmente em um momento em que o termo “ideologia de gênero”, que sequer existe no mundo acadêmico, passou a integrar o vocabulário de movimentos mais conservadores contrários aos estudos sobre identidade de gênero.
Isso não impediu que a tal “ideologia” fosse citada como justificativa pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), ao determinar o recolhimento dos exemplares de uma HQ infantojuvenil na Bienal do Livro do Rio de Janeiro por conta do beijo entre dois personagens masculinos.
Sem repetir o estardalhaço, mas valendo-se do mesmo argumento, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), pediu a edição de três páginas do material de ciências para o 8º ano do ensino fundamental. O texto defendia que o gênero não necessariamente tem relação direta com o sexo biológico.
Os gestos vão contra a orientação da ONU (Organização das Nações Unidas), que incentiva a inclusão no currículo escolar de temas relacionados a sexualidade e gênero. “Tem uma questão de censura posta”, observa Eliane de Christo, psicanalista do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos) de São Paulo.
“Poder contar com histórias e programas que tragam personagens que encarnam populações que são alvo de preconceitos, caso dos LGBTIs, contribui enormemente para o aumento de tolerância às diferenças e respeito pelo outro. É uma pena que tenha de ser dessa forma, que se tenha que, literalmente, desenhar, insistir, falar alto, para se fazer entender e ser aceito”, afirma.
Explica, não; desenha
No Brasil, esse cuidado em “desenhar” tem sido reforçado desde os anos 2000, quando a pesquisa Juventude e Sexualidade foi divulgada pelo Ministério da Educação, em parceria com a Unesco. Na ocasião, aproximadamente 25 % dos alunos do ensino fundamental e médio nas capitais do país indicaram que não gostariam de ter um homossexual como colega de classe. Em menor grau, até mesmo os professores deram a mesma declaração em relação a seus alunos.
Se ainda não conseguem espaço no terreno pedagógico, a diversidade e a orientação sexual vêm sendo mais abraçadas no entretenimento — e muitas vezes de forma retroativa. Criadora do universo Harry Potter, J.K. Rowling tem vasculhado, em seus novos trabalhos, o passado de personagens da série de livros do bruxo, e tocado em temas como relacionamentos homossexuais.
“Ao representarem personagens LGBTI, essas produções midiáticas também possibilitam que crianças e jovens reconheçam as múltiplas possibilidades de configurações familiares”, observa Joanalira Corpes Magalhães, professora do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (Gese). É o caso do desenho “Clarêncio, o Otimista”, exibido também pelo Cartoon Network, em que a família do personagem Jeff, um dos melhores amigos de Clarêncio, é constituída por ele e suas mães, duas mulheres.
“Trazer esse debate para o público infantojuvenil é uma possibilidade de que esses sujeitos possam construir outros entendimentos de família, de amor, de afeto, de respeito, bem como de desconstruir a tríade sexo-gênero-sexualidade como algo dado, e mostrar que existem múltiplas formas de expressão e vivência de gênero e sexualidade”, explica.
Mauricio de Sousa, pai da Turma da Mônica, base do nosso imaginário infantil, afirmou que em breve vai introduzir um LGBTI no rol de seus personagens. “Não há datas e não há pressa. Estamos em um processo evolutivo”, conta Sousa ao TAB.
A notícia veio na esteira da reação em torno da foto postada pelo cartunista com seu filho Mauro, ao lado do marido. Mas um passo já foi dado na série de graphic novels que reapresentam personagens célebres do desenhista a um público um pouco mais velho. “Tina”, a mais recente da série, lançada na mesma Bienal do Rio, em setembro, apresenta a primeira personagem declaradamente LGBTI, Kátia.
A história assinada e ilustrada por Fefê Torquato tinha apenas o assédio como tema, mas havia ali a vontade de ter outras vozes e perspectivas. “Eu leio bastante sobre a vertente do feminismo interseccional e tentei fazer com que a HQ refletisse isso de alguma forma”, explica Torquato. “Se a Tina, uma garota cis, branca, hétero e padrão sofre com o preconceito, que dirá a Kátia, que além de machismo, precisa enfrentar o racismo e a homofobia? E ela está lá, resistindo e vencendo a cada dia, o que inspira Tina a retomar a perspectiva dos seus próprios privilégios e fazer algo a respeito.”
A HQ contou com a anuência de Sousa. Para ele, o tempo fez com que o tema se impusesse com mais força hoje. “Nossas histórias sempre procuraram relatar, com um aspecto lúdico, o que acontece na nossa sociedade. Foi assim, por exemplo, com personagens com deficiências. Em diferentes momentos da nossa trajetória, ficou evidente a necessidade de incluí-los”, observa. “Nossas histórias sempre difundiram o respeito ao próximo, e isso vale para todo mundo, sem distinção.”
Hora de crescer
A ruptura em “Steven Universo” vai muito além da diversidade. Através de suas relações, o personagem principal vai naturalmente se sobrepondo aos padrões tradicionais de masculinidade. Criado por três mulheres, Steven chora, usa um escudo rosa, canta e prefere sempre pensar no cuidado e proteção, contra a perspectiva da força e violência comuns entre os personagens masculinos — inclusive os infantis.
“O Steven vai lançar mão das boas conversas, das narrativas e vai tentar sempre entender o outro lado. O desenho rompe com a ideia de que o cuidado está associado ao feminino. Ele é aproveitado na dimensão do masculino”, explica de Christo.
Para a criadora Rebecca Sugar, há apenas um tema na série: “É sobre crescer”. O desenvolvimento dos personagens acontece de forma natural quando se tem diversidade entre os criadores.
“Para muita gente no time, estamos escrevendo sobre nós mesmos, nossos amigos, nossas famílias. E muitos de nós não são héteros, não são brancos, não são gênero-normativos. Então é muito natural escrever sobre nossa infância, do jeito como vivemos, e escrever um tipo de programa que gostaríamos de ter visto como jovens, mas não conseguimos”, disse, em um vídeo gravado para o público brasileiro no início de 2019. “Quebra tabus só pelo fato de falar que éramos crianças. Porque nós éramos e gostávamos de desenhos animados.”
A psicanalista Eliane de Christo observa que as novas possibilidades de narrativa criam conexão, mesmo pela chave da ficção. É o trampolim necessário para alcançarmos e enxergarmos o outro “num contexto de realidade”.
Fonte: TAB/UOL