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Para mulheres negras lésbicas e bissexuais, distanciamento social sempre existiu


Por Larissa Rios

Ilustração de Ana Clara Menezes (@anamenezesarte) – Divulgação

No dia 25 de fevereiro de 2020, a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo confirmou o primeiro caso de Covid-19 no Brasil, e, desde então, políticas de isolamento social foram adotadas para garantir o bem-estar da população.

O abraço, o beijo e até o simples aperto de mão passaram a ser temidos. É chegada a hora em que o seguro é não sair de casa. Contudo, essa mudança temporária para a maioria dos brasileiros é uma infeliz realidade para as mulheres negras lésbicas e bissexuais, que carregam diariamente o medo da simples demonstração de sua existência.

O único pensamento que me vem em mente quando leio que a rua seria um lugar onde a ousadia é despertada e a casa é o local da moralidade —trecho do livro “A Casa e a Rua”, de Roberto Damatta— é que essas palavras não foram escritas e pensadas na realidade de uma mulher negra, periférica e bissexual, como eu. As palavras de Damatta, referência na antropologia brasileira, vão ao oposto da minha vivência, em que a rua se caracteriza como um local de medo, onde o meu corpo preto e a minha individualidade passam a ser públicos, e até andar de mãos dadas com minha namorada pode ser considerado motivo para violência.

Segundo dados do Mapa da Violência de Gênero, da revista Gênero e Número, entre 2014 e 2017 16.777 mulheres negras —lésbicas ou bissexuais— de todo o país, registraram ter sofrido algum tipo de violência enquanto estavam fora de casa. Dentre mulheres negras, brancas, amarelas e indígenas, as negras representam 47% das ocorrências entre aquelas que se relacionam com outras mulheres. Em contrapartida, entre homens brancos heterossexuais, o número registrado é de 528 denúncias. É um abismo que ultrapassa a tão televisionada violência urbana —a vítima tem cor, gênero e orientação sexual.

Ver esses dados me causam muita revolta, pois eles revelam como podemos ser atingidas de diversas maneiras, e todas elas cruéis. Na leitura de algumas intelectuais negras, eu aprendi que existe uma articulação constante de invisibilizar a mulher negra na sociedade. Contudo, o que enxergo é que qualquer tentativa de invisibilizar a minha existência acaba no momento em que minha pele preta vai à rua acompanhada de outra mulher de pele preta.

Quando sou posta em posição de evidência dessa forma, me sinto como se eu fosse a portadora de um vírus extremamente contagioso e letal. Como se eu estivesse de maneira irresponsável em uma fila, na porta de um shopping, para comprar uma bolsa de grife que não usarei nos próximos seis meses. Entretanto, sabemos bem que essas não recebem olhares de desconforto.

Em contrapartida, enxergo o quanto o afeto é uma das maiores revoluções existentes. Um sentimento tão natural da humanidade, analisado desde a filosofia grega e capaz de fazer com que tenhamos coragem suficiente para enfrentar o preconceito estrutural. É por meio do afeto e da vontade de proteger quem amamos que textos como este são escritos, para que um dia não haja necessidade de reivindicar o direito de amar livremente qualquer pessoa que seja.

Nesses três meses longe da minha namorada, não tem um dia sequer que não nos falamos, mas não deixo de pensar em quem não tem o mesmo privilégio. Mal posso esperar pelo dia em que possamos ter novamente momentos como o dessa ilustração, criada a partir de um registro feito na praça XV, no centro do Rio de Janeiro. Sonho que quando esse vírus nos deixar, o decreto que encerre o isolamento social valerá para todas, e que todos os males que cercam a nossa sociedade poderão ter fim.

Para encerrar meu texto, não poderia deixar de citar Rincon Sapiência, que brilhantemente escreveu “Faço questão de botar no meu texto que pretas e pretos estão se amando”Lembrem-se sempre de se amarem e cuidarem umas das outras. Os dados são cruéis, mas precisamos continuar sendo fortes. Sobrevivemos nesta terra que tanto nos destratou há 500 anos, não será agora que irão nos derrubar. Força a todas. Feliz Mês do Orgulho.

Fonte: Folha de SP


Larissa Rios é uma mulher preta, bissexual, nascida em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Estudante de jornalismo na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é criadora de conteúdo, estagiária de comunicação na Globo, e co-criadora do projeto Afetividade Fora da Caixa, que aborda o afeto entre mulheres negras LGBTQIA+.

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