Grace e Frankie ou Robert e Sol?
Quem conhece a história de Grace e Frankie, personagens de Jane Fonda e Lily Tomlin na série da Netflix, também conhece o drama de seus respectivos maridos, Robert e Sol, que decidem pedir o divórcio de suas esposas para casar um com o outro.
Num exemplo clássico da “vida imitando a arte”, entender o porquê de eles terem demorado tanto tempo para “sair do armário” pode ajudar a compreender a atual geração de idosos LGBT.
Assumindo então que Robert e Sol teriam 80 anos hoje, em 1973 eles tinham 34 anos, quando a Associação Americana de Psiquiatria deixou de considerar a homossexualidade como doença. Além disso, aos 40 anos começaram a ouvir sobre a aids e aos 50 anos muitos de seus amigos começaram a morrer por essa doença.
Para esses dois, e para muitos de seus contemporâneos LGBT, a invisibilidade foi uma maneira encontrada para fugir da discriminação, e, em alguns casos, para sobreviver. Porém, permanecer invisível na terceira idade pode ter consequências danosas em todas as dimensões biopsicossociais relacionadas à saúde.
Por um lado, esses indivíduos têm maiores chances de estarem morando sozinhos, de não terem filhos e de não apresentarem alguém para chamar em caso de uma emergência.
Por outro, pessoas que “saem do armário” e falam com seus médicos sobre sua orientação sexual e sua identidade de gênero expõem maiores níveis de satisfação.
Inclusive apresentam um melhor acesso aos serviços de saúde, um melhor controle de suas doenças crônicas e uma maior adesão às orientações de promoção da saúde.
Dados do Canadá mostram que as idosas lésbicas expressam riscos superiores aos das heterossexuais por não realizarem exames preventivos como a mamografia ou o papanicolau, além de uma chance elevada de não disporem de um médico de confiança.
Até mesmo a depressão e o suicídio são mais comuns nesse grupo, expressando taxas ainda mais chocantes entre os idosos trans.
O que são “famílias de escolha”?
Como muitos desses indivíduos viveram contextos de violência estrutural, cerceados pela hétero-cis-normatividade ao longo da vida, não é incomum que o apoio social deles seja feito por pessoas com quem não apresentam relações consanguíneas, as chamadas “famílias de escolha”.
Essas famílias podem ser representadas por um amigo, um companheiro, um vizinho ou até mesmo por um líder religioso ou comunitário.
Tal noção ganhou mais destaque a partir dos estudos da antropóloga norte-americana Kath Weston (1991), em seu livro “Families we choose: Lesbians, Gays, Kinnship”. A autora discute, nessa publicação, sobre uma análise de parentesco feita com grupos de gays e de lésbicas em São Francisco (EUA) na década de 1980.
Weston mostrou que jovens expulsos de casa ao assumirem sua sexualidade ou que rompiam relações com suas famílias biológicas construíam laços profundos e duradouros com outros amigos homossexuais ou com pessoas que aceitassem sua identidade sexual.
Assim, ao invés de um paradigma que reconhecia apenas a consanguinidade como noção de parentesco, essas pessoas compreendiam relações familiares baseadas em outros pressupostos, como a concepção de amizade. E, em muitas ocasiões, essas relações tornam-se mais importantes do que as desempenhadas por aqueles com relações consanguíneas.
Entretanto, mesmo sabendo que essa é a realidade de muitas pessoas, infelizmente alguns podem experimentar dificuldades de ter a sua vontade e a voz da sua “família de escolha” respeitadas.
Por isso, é tão importante a discussão sobre a criação de documentos que registrem a vontade do indivíduo ou que garantam alguém como o responsável por tomar decisões caso seja necessário.
Nesse sentido, cabe aos profissionais que assistem essa população a orientação sobre a existência desses manuscritos, como o Testamento Vital e a Procuração para cuidados de saúde. Dependendo da biografia do indivíduo, de suas relações e de suas expectativas, talvez algum registro como esses seja interessante.
Uma família para lésbicas, gays, bissexuais e trans pode não ser só um conceito biológico de “papai, mamãe e titia”, como na música dos Titãs, mas sim uma percepção muito mais ampla, contendo aqueles mais próximos e escolhidos ao longo de suas vidas. E essas relações merecem ser respeitadas e valorizadas.
As memórias e os afetos
A população idosa LGBT encontra-se sob maior risco de desenvolver doenças crônicas como diabetes e hipertensão devido às maiores disparidades de acesso aos serviços de saúde, tanto por questões institucionais quanto sociais e individuais, e é sabido que esses fatores podem aumentar o risco para demências, como a doença de Alzheimer.
Os idosos LGBT que recebem um diagnóstico de algum tipo de demência enfrentam desafios singulares já que a vulnerabilidade associada à estigmatização da idade, da sexualidade e, por vezes, o baixo suporte familiar e a falta de segurança econômica acentuam o impacto das manifestações dos problemas de memória e dificultam a busca por apoio.
Conforme os problemas de memória avançam, a pessoa pode, por exemplo, se esquecer com quem ela se sente confortável em falar sobre sua sexualidade e isso pode ser causa de angústia. Além disso, caso você seja uma pessoa trans, você pode se esquecer de tomar as terapias hormonais habituais ou pode ter memórias apenas do período antes da transição, levantando questões relacionadas à aceitação do próprio corpo.
Percebe-se que, apesar de existir uma demanda crescente de suporte para esse grupo por parte dos serviços de saúde, muitos idosos têm receio de buscar ajuda por experiências prévias marcadas por preconceito ou por baixa aceitação por parte dos profissionais.
As instituições de longa permanência poderiam ser uma alternativa de cuidado, no entanto, a maioria delas não está preparada para receber a população idosa LGBT, pois se revelam ambientes em que a violência contra essas pessoas e a intolerância é a regra.
Frequentemente, demonstrações de afeto homossexual são entendidas como assédio ou comportamento indevido e punidas com separação dos envolvidos ou com violência verbal por parte dos profissionais. Dessa forma, o processo de institucionalização é marcado pelo medo de “voltar ao armário”, ou seja, como mais uma ameaça à dignidade do idoso LGBT.
Logo, é importante que um idoso LGBT que se apresenta com problemas de memória converse com sua rede de apoio sobre essas questões, determine seus desejos sobre tipos de cuidados e arranjos domiciliares e pontue o que é importante para a sua saúde e bem-estar, sendo ainda mais importante a criação de documentos e mecanismos para que suas vontades sejam preservadas.
Desafios e perspectivas
Em 2017 formou-se em São Paulo o coletivo “Eternamente SOU”, que posteriormente assumiu a identidade de organização não-governamental (ONG), com objetivo de dar visibilidade às questões que norteiam esse segmento.
Com esse intuito, essa ONG foi pioneira no Brasil na realização de eventos específicos para dar visibilidade ao tema e para capacitar profissionais de saúde, tais como: Seminário Velhices LGBT, Curso de Introdução às Velhices LGBT e Papo Diversidade.
Concluindo, a velhice LGBT é marcada por uma dupla invisibilidade, relacionada à idade e à sexualidade, e por necessidades de saúde particulares. Pesquisas e discussões futuras, principalmente no Brasil, são necessárias para a criação de ambientes de saúde mais inclusivos e para combater a solidão e o isolamento social dessas pessoas, fazendo com que o seu cuidado geriátrico e gerontológico seja cada vez melhor.
Um desses estudos é a Pesquisa Nacional sobre Envelhecimento e Acesso à Saúde, realizada por meio de um questionário online anônimo e sigiloso. Ele questiona se a orientação sexual e a identidade de gênero podem ter algum papel nas vulnerabilidades que acompanham o envelhecimento. Por isso, essa pesquisa é direcionada a todos os brasileiros com mais de 50 anos, LGBTQI+ ou não.
Quem tiver interesse pode acessar a pesquisa neste link. Com dados mais representativos, será possível batalhar por melhorias nas políticas públicas.
Fonte: Carta Capital