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O retorno do vírus ideológico


Por Fábio Grotz * e Richard Parker**

 

As mais de três décadas da epidemia do HIV e da AIDS estiveram atravessadas por um obstáculo aos esforços de prevenção: o estigma que atinge de um modo geral as pessoas soropositivas, e de maneira ainda mais perversa, as pessoas cujas experiências são afetadas pelos efeitos das hierarquias de classe, raça, gênero e orientação sexual que determinam contextos de maior ou menor vulnerabilidade à epidemia, e dificulta o acesso à prevenção e ao tratamento. No início da epidemia, nos anos 1980, o estigma e o preconceito recaíam sistematicamente sobre os homossexuais, e a AIDS foi associada à noção de desvio, sendo a doença muitas vezes interpretada social e moralmente como um castigo. Ainda hoje no Brasil, como temos percebido de forma muito nítida nos últimos meses através de reportagens que relatam o chamado “Clube do Carimbo”, pessoas vivendo com HIV e AIDS são objeto de representações negativas e vistas como sujeitos que devem ser segregados ou punidos.

Já nos anos 1980, o sociólogo Herbert Daniel dizia que o vírus ideológico é muito mais difícil de enfrentar que o vírus biológico. Ele fazia, portanto, um apelo para que o combate à epidemia fosse estruturado a partir dos princípios de solidariedade, acolhimento e inclusão. Estas premissas estão na base da resposta brasileira inicial à epidemia, desde muito cedo ancorada no paradigma dos direitos humanos e aberta à participação da sociedade civil na construção das políticas de prevenção do HIV e da AIDS. Esta orientação forjou vínculos virtuosos entre gestores e movimentos sociais que permitiram construir uma resposta à epidemia pensada em termos de determinantes sociais e caracterizada por relações complexas de cooperação e conflito entre Estado e sociedade civil. Um exemplo disso foram as ações de distribuição de camisinhas em saunas do Rio de Janeiro nos anos 1990, que criaram conexões importantes com as pessoas que frequentavam esses espaços, sem julgamentos morais quanto a seus desejos e práticas sexuais. Tal lógica estrutura-se na noção de redução de danos, também utilizada para lidar com usuários de drogas injetáveis – pensada e executada como maneira de diminuir prejuízos. Tem como objetivo ampliar as possibilidades de cuidado, privilegiando a prevenção, o cuidado e a proteção, sobretudo em situações de vulnerabilidade.

As premissas de diálogo e inclusão foram também importantes mais à frente na implementação da oferta gratuita de antirretrovirais (ARVs) pelo sistema público de saúde. Desde então, contudo, em função de fatores diversos, a resposta brasileira perdeu vigor, sobretudo no âmbito da prevenção. Houve afastamento entre gestores e movimentos sociais e muitas vezes o diálogo foi silenciado. Nos últimos anos, campanhas de prevenção voltadas para populações vivendo contextos de maior vulnerabilidade – como os homossexuais, as prostitutas, os usuários de drogas e as pessoas trans – assim como ações de educação pública de combate ao estigma – como a distribuição do kit anti-homofobia em escolas e de cartilhas para campanha de televisão – foram suspensas por efeito da influência das visões religiosas dogmáticas na implementação de políticas públicas. O fechamento dos programas de redução de danos para usuários de drogas injetáveis tem seguido a mesma lógica, e quase não há debate público sobre isto no enfretamento da epidemia no Brasil. Essas visões acarretam danos à resposta ao HIV e à AIDS, pois difundem concepções morais restritivas que se distanciam radicalmente das virtuosidades que um dia consagraram a resposta brasileira como uma das melhores do mundo. Ao enfatizar parâmetros morais, essas visões acentuam as fissuras sociais que, nas palavras de Herbert Daniel, são os caminhos através dos quais a epidemia se alastra.

É urgente, portanto, uma retomada das perspectivas de prevenção que marcaram historicamente a resposta brasileira. De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil tem 734 mil pessoas vivendo com o HIV e a AIDS. Embora se verifique estabilização no número de pessoas soropositivas, o vírus se espalha com mais incidência entre os jovens gays ou HSH. Nessa população, especificamente, 10,5% das pessoas estão infectadas com o HIV. Os dados do Boletim Epidemiológico de 2014 são claros em apontar que as políticas de prevenção não estão funcionando. Isto se dá porque o vírus ideológico ganhou espaço, ampliando as fissuras por onde transita o vírus biológico.

Esse alastramento ideológico é ilustrado pelo pânico moral que se reinstalou na sociedade brasileira recentemente em função de notícias veiculadas pela imprensa sobre casos de transmissão intencional do vírus – os chamados “Clubes do Carimbo”. Entre outras repercussões, esse clima de pânico serviu de cenário para a apresentação do PL 198/2015, que retoma projeto do ano de 1999 e busca tornar crime hediondo a transmissão deliberada do HIV. A proposta de criminalização, apresentada como solução fácil para esses episódios isolados de transmissão deliberada, é problemática, tendo em vista ser difícil comprovar a transmissão do vírus, mesmo quando se possa ”provar intenção”. Torna-se ainda mais problemática porque a substituição de estratégias de prevenção por medidas penais é contraproducente, uma vez que ações punitivas excluem e fomentam o estigma, tal como apontam, de maneira contundente, documentos internacionais, como o Relatório da Comissão Global sobre o HIV e a Lei (

http://www.hivlawcommission.org/resources/

report/FinalReport-Risks,Rights&Health-PT.pdf) e o Protocolo de Oslo (

http://www.hivjustice.

net/oslo/). Ambos os documentos destacam que leis criminalizantes desumanizam as populações com maior risco de infecção, colocando as pessoas em situação de clandestinidade e afastando-as dos serviços de saúde, da prevenção e do tratamento. Dessa forma, recomendam que leis deste tipo sequer sejam adotadas.

O clima de pânico contradiz, inclusive, medidas recentes tomadas pelo governo federal. No ano passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 12.984, que criminaliza a discriminação contra pessoas soropositivas. O texto prevê que casos como a divulgação da condição de portador do vírus com o intuito de ofensa, a recusa de escolas em matricular alunos soropositivos, a demissão ou a segregação no ambiente de trabalho e a demora ou a recusa de atendimento de saúde passam a ser punidos com multa e prisão de um a quatro anos. A lei foi fruto de anos de mobilização e surgiu em face dos sistemáticos casos de discriminação contra indivíduos soropositivos.

Biomedicalização

No contexto atual de avanço da epidemia, outro aspecto a ser considerado são as novas possibilidades de recursos biomédicos de prevenção do HIV. A infecção pelo HIV tornou-se administrável, mesmo quando se ignorem os efeitos colaterais decorrentes do tratamento. Em 2013, o Ministério da Saúde estabeleceu novas diretrizes no Protocolo Clínico para o manejo da infecção segundo as quais o acesso à testagem deve ser ampliado e todas as pessoas diagnosticadas positivas para o HIV devem ter acesso imediato aos ARVs, independente da manifestação da AIDS e de marcadores clínicos – como a contagem de células CD4 e da carga viral. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também passou a recomendar – desde o ano passado para populações específicas, como “homens que fazem sexo com homens”, presidiários, usuários de drogas, trabalhadores do sexo e indivíduos trans – o uso precoce dos ARVs como medida de prevenção da transmissão do vírus. Estas novas estratégias são conhecidas como profilaxia pré-exposição (PrEP), mas ainda não foram incorporadas nem debatidas adequadamente no plano de prevenção do Brasil, que começa a ficar atrasado em vez de ser pioneiro na inovação no campo da prevenção.

A despeito desse arsenal – ampliado, sofisticado e eficiente do ponto de vista clínico – a epidemia de HIV e AIDS não está contida. Isto implica, entre outras coisas, interrogar a eficácia da estratégia “testar e tratar”. Não se trata de desconsiderar a importância das ferramentas da biomedicina, mas sim de refletir sobre suas limitações e buscar caminhos para que seja articulada, de maneira sólida, aos parâmetros de diálogo, solidariedade e não discriminação que, um dia, foram a base da resposta brasileira. É crucial não perder de vista a dimensão social da epidemia, as fissuras por onde se alastra, as desigualdades estruturais do Brasil. É também vital reconhecer e respeitar a heterogeneidade de desejos, práticas, sensibilidades e expectativas sexuais, bem como a autonomia dos indivíduos como parâmetro inegociável de um modelo de prevenção baseado no paradigma dos direitos humanos. O Brasil tem muita expertise nesse campo.

Outros aspectos a serem considerados no contexto atual são a dificuldade em relação à adesão ao tratamento e os problemas constantes no acesso ao cuidado e ao tratamento na rede de saúde. Isto porque estes obstáculos impedem de as pessoas terem de fato acesso às novas ferramentas biomédicas de prevenção. Além disso, é preciso lembrar que medicamentos produzem efeitos colaterais. Os ARVs podem trazer marcas corporais e sintomas indesejáveis que afetam o cotidiano das pessoas, o trabalho e suas relações sociais. Nesse sentido, o diálogo e o respeito às escolhas do paciente são fundamentais. Isto significa ressaltar que a soropositividade e a AIDS são vividas de várias formas, e todas devem ser levadas em conta para que a solidariedade seja uma construção constante.

Paradoxalmente, as formas de combate ao vírus biológico – cada vez mais sofisticadas e eficientes – não têm sido acompanhadas da luta contra o vírus ideológico. É urgente rechaçar medidas criminalizantes como parâmetro inegociável de enfrentamento à epidemia. Além disso, a prevenção precisa ser pensada e realizada de forma integral, em um processo de diálogo constante e franco entre pacientes, profissionais de saúde, gestores, autoridades e movimentos sociais. É necessário, ademais, ir além das competentes – mas nem por isso “salvadoras” – tecnologias biomédicas e planejar a prevenção levando em conta as particularidades dos indivíduos e das comunidades, os contextos que envolvem a epidemia, as desigualdades estruturais que tornam grupos sociais mais vulneráveis ao HIV e à AIDS, e acompanhar e monitorar a oferta do tratamento nos serviços de saúde. Também é crucial o combate a todas as formas de dogmatismo e intolerância, religiosa ou moral, que apareçam como obstáculo à prevenção.

Embora as notícias mais recentes sejam desalentadoras no campo da resposta ao HIV no Brasil, discursos moralistas e punitivos não são absolutos. O pânico moral em torno do “Clube do Carimbo” pode se constituir num momento de inflexão que revigore a reflexão crítica sobre o enfrentamento ao alastramento do HIV e reative, na sociedade e no Estado, as premissas de solidariedade e dos direitos humanos como referências inegociáveis de resposta à epidemia. A inquietação expressa por Herbert Daniel é hoje tão atual quanto o foi nos anos 1980.

*Jornalista do Centro Latino-Ame­ricano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) e do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês) e doutorando em Comunicação na Faculdade de Comunicação Social (FCS/UERJ).
**Diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA).
Fonte: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
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