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O acesso à testagem e ao tratamento na perspectiva dos direitos humanos


Richard Parker
Diretor – presidente da ABIA

 

Para entender o debate sobre o acesso à testagem e ao tratamento na perspectiva dos direitos humanos, é preciso resgatar alguns temas básicos. O primeiro deles é a ideia das três epidemias[1] (a epidemia do HIV, a epidemia da AIDS e a epidemia de estigma e discriminação), que surgiu no final dos anos 1980, quando o perfil do surto era bem diferente daquele dos dias atuais. Nessa época, havia tinha 25 casos registrados de AIDS em homens para um caso em mulheres. E desses 25 homens, provavelmente 90% deles eram homossexuais. Logo, tratava-se de uma epidemia com uma cara homossexual. Isso viria a mudar muito rapidamente ao longo do tempo.

A epidemia da AIDS não é um fato simples e muito menos um mero fenômeno biológico. É um fenômeno social complexo, que tem várias dimensões e se desenvolve historicamente em diferentes momentos. A primeira epidemia é a da infecção pelo HIV que, em geral, acontece sem que a gente perceba e vem antes do aparecimento de doenças associadas com a AIDS. E é somente com o surgimento de sintomas, quando fica mais visível, é que detectamos a segunda epidemia, ada AIDS. Isto pode ocorrer sete, oito ou mais anos depois da infecção pelo HIV. Mas há ainda uma terceira epidemia, que é tão perigosa quanto as duas primeiras: é a epidemia da resposta social, quase sempre com base no estigma e na discriminação.

Herbert Daniel costumava dizer que a terceira epidemia era mais perigosa do que as duas primeiras por ser a mais violenta. Era a epidemia não do vírus biológico, mas do vírus ideológico, que se instala em cima da realidade biológica e cria as respostas sociais historicamente negativas em todas as sociedades, não só na sociedade brasileira.

Em razão disso, naqueles primeiros momentos, Betinho colocou a AIDS e os direitos humanos como temas para suscitar o debate no Brasil. Ele fez isso aqui no Brasil antes de qualquer outra sociedade no mundo. Durante a palestra dada por Betinho na Faculdade de Direito da USP em 1987, foi a primeira vez em que o termo direitos humanos foi associado com a questão da AIDS. Betinho argumentava que não tínhamos ainda a cura, que algum dia ela surgiria e estamos muito perto disso. Mas enquanto não existira cura, a solidariedade deveria ser a principal resposta e teria que funcionar como uma vacina diante dessa terceira epidemia de estigma e discriminação[2].

Para construir uma resposta diante da AIDS com base nos direitos humanos, será preciso enfrentar as três epidemias. E entender que a terceira epidemia, a de estigma e discriminação, seja talvez a mais difícil de vencer. É justamente por causa disto que os direitos humanos surgem como uma arma tão importante na luta contra a AIDS. É claro que temos que argumentar e reconhecer que a AIDS não tem, em princípio, cara, cor, classe social ou orientação sexual. É fundamental tomar como base este entendimento na defesa dos direitos humanos de todas as pessoas. É somente por essa defesa que é possível vislumbrar a possibilidade de lutar contra a terceira epidemia. Ao mesmo tempo, e talvez este seja um dos desafios mais difíceis, é também preciso reconhecer que a AIDS não é uma epidemia “igualitária ou democrática”. As pessoas não enfrentam os mesmos riscos em face da epidemia de AIDS. Todos os grupos populacionais não estão na mesma situação. Ainda que tenhamos que rejeitar a classificação da epidemia como uma epidemia de classe (ou qualquer outra categoria), é preciso entender que há essa diferenciação quanto aos riscos que a epidemia oferece. Tanto o vírus biológico quanto o ideológico caminham por essas fissuras da sociedade[3].

Opressão

A segunda questão básica para compreender o debate sobre o acesso à testagem e ao tratamento na perspectiva dos direitos humanos é a violência estrutural. Se, por um lado, precisamos de dados precisos e epidemiológicos com números exatos,por outro lado, é necessário recuperar uma expressão genial de Naomar de Almeida Filho[4] ao afirmar que os números só colocam uma parte dessa história, ou seja, às vezes, os números podem também nos enganar. Como nos enganaram nos anos 1980 quando os registros sobre os“25 casos de AIDS em homens para cada um caso em mulher” sugeriram tratar-se de uma epidemia entre os homossexuais e, portanto, não era necessário fazer nada em relação a outras populações. Os números epidemiológicos podem ajudar, mas não podem resolver absolutamente tudo.

Além da observação de casos clínicos e dos números epidemiológicos construídos em cima desses casos clínicos, é imperativa a produção de teorias. Tanto de teorias sobre a doença quanto de teorias sobre como a doença se move socialmente. E, no caso da AIDS, os determinantes sociais da epidemia no Brasil e também em outros países, fundamentalmente, é a violência estrutural. A epidemia caminha via os eixos de desigualdade na sociedade. Caminha via pobreza e exclusão econômica. Caminha via discriminação racial e étnica. Caminha via diferenças de poder, de gênero entre homens e mulheres. Caminha via opressão sexual, via idade, via desigualdade de poder entre pessoas de diferentes idades. E caminha, também, em relação a questões de “deslocação” ou falta de moradia. São as desigualdades sociais que estruturam o caminho da epidemia. Em alguns momentos, há curvas no percurso, mas é bastante claro que o determinante social fundamental da epidemia da AIDS é a desigualdade. É onde a desigualdade é mais forte, ou seja, onde a epidemia cruza com eixos de desigualdades, tais como a pobreza, a desigualdade de gênero, entre outras, que é possível notar o maior impacto da epidemia. É neste cruzamento que se encontra a chamada sinergia. Em inglês, às vezes, a AIDS é classificada como uma sindemia e não como uma epidemia. Isto ocorre porque há uma sinergia entre as forças de desigualdades que cria a intersecção e também uma maior vulnerabilidade[5].

Ao percebermos a importância da violência estrutural, começamos a fazer uma mudança de paradigma. É fundamental modificar a ideia de risco e de grupos de risco para a ideia de vulnerabilidade. Isto não quer dizer que não existem práticas de risco. Obviamente, há práticas que são mais ou menos arriscadas e práticas que são mais ou menos protetoras. Mas a ideia de risco se instala com base na crença em um comportamento individual como ponto central do debate. Já a ideia de vulnerabilidade compreende os determinantes sociais e entende a situação social como a responsável pela maior vulnerabilidade experimentada pelas pessoas[6]. Portanto, é para este contexto social que temos que direcionar o nosso foco.

Enfrentamento

O terceiro tema básico para compreender o debate sobre o acesso à testagem e ao tratamento na perspectiva dos direitos humanos é entender a política como o campo fundamental no qual a prevenção pode ser construída. Isto não quer dizer que técnicas e tecnologias não são importantes. As técnicas do sexo seguro – inventadas ao longo da epidemia – as tecnologias tais como a camisinha, a camisinha feminina etc., ou as novas técnicas e tecnologias biomédicas são da maior importância. Contudo, adiantam muito pouco se não existir um enfrentamento das questões políticas. Um dos graves problemas dessas técnicas é que não se consegue distribuí-las efetivamente e, portanto, não chegam às pessoas que delas necessitam. Há barreiras de enfrentamento construídas pelo estigma e pela discriminação e, por isso, pouco importa quais tecnologias são oferecidas. É preciso criar as condições para que essas tecnologias sejam usadas pelas pessoas que precisam. E, para isto, é preciso fazer o enfretamento político.

A questão da política precisa ser compreendida em, pelo menos, dois sentidos: o primeiro é no sentido mais macro, ou seja, a política partidária, a política eleitoral, enfim, a política. Os maiores impedimentos ao enfrentamento da epidemia de AIDS ao longo de 30 anos e em todos os lugares do mundo estão na política. Aconteceu no governo Reagan (Estados Unidos), no governo Mbeki (África do Sul) e, mais recentemente, no governo Museveni (Uganda). Os piores impedimentos sempre têm sido impedimentos políticos que dificultaram a possibilidade de desenvolver ações em face da epidemia. Sem enfrentar isso, não vamos a lugar nenhum. Logo, é importante compreender que o que a presidenta Dilma faz e fala é importante.

No entanto, não são só as grandes lideranças políticas que merecem nossa atenção. É preciso também atribuir outro sentido à política, ou seja, compreendê-la no que tange às diretrizes para a ação programática, como as políticas de prevenção e assistência. É preciso também perceber como partidos se posicionam, analisar as práticas governamentais, as práticas dos ministérios e as ações programáticas que são implementadas e norteadas por visões políticas. É fundamental compreender de que maneira o jogo político coloca (ou não) a questão da AIDS como uma questão central para ser debatida publicamente e fazer parte da pauta política. Na maioria das discussões sobre HIV, tem faltado coragem para colocar este tema na mesa e debatê-lo muito claramente. Ao longo da história da epidemia, de certa maneira, o Brasil tem deixado este debate escapar.

Há ainda uma diferenciação entre duas abordagens fundamentais que guiaram as políticas de saúde no enfrentamento da epidemia no país. De um lado, a política que podemos classificar como detentora de uma ótica neoliberal, cujo foco é o cálculo de custos e benefícios, permitindo que a racionalidade econômica seja usada para guiar as ações. Este argumento sugere que não há dinheiro suficiente e, portanto, o dinheiro deve ser usado de uma maneira inteligente.  O problema é que não podemos parar nesta conclusão.

E isso nos leva para nossa próxima abordagem, ou seja, compreender a base dos direitos humanos. No Brasil, pelo menos desde meados dos anos 90, os direitos humanos têm sido a base da resposta brasileira diante da epidemia. Foi a construção de uma resposta, inspirada na visão de pessoas como Herbert Daniel e Betinho e adotada pelo Estado e pelos seus agentes de uma maneira muito importante, que guiou esse programa modelo que o Brasil construiu ao longo dos anos 1990 e o começo dos anos 2000[7]. Lamentavelmente, nos últimos anos, esse rumo vem sendo perdido. É preciso trazer de volta o debate sobre a política e sobre os direitos humanos a fim de pensar como re-politizar o enfrentamento da epidemia de uma maneira positiva e avançar de uma maneira que, pelo que parece neste momento, não estamos.

Desafios

Hoje o Brasil está implementando a política chamada testar e tratar, que tem a sua importância, principalmente, no contexto no qual existe a chamada epidemia concentrada, ou seja, naquele em que a epidemia não é ainda generalizada para a população como um todo. De fato, a epidemia no Brasil não é como em muitos países da África onde existe 25%a 30% da população soropositiva. Por aqui, ainda está concentrada em algumas populações vulneráveis, por causa de circunstâncias sociais e, portanto, alcançáveis. Com vontade política e com uma quantidade de dinheiro não tão absurda, há a possibilidade de enfrentar a epidemia e utilizar as tecnologias e as técnicas existentes no Brasil. Mas é preciso entender que há uma lógica guiando este tipo de ideação. A razão de se fazer esse esforço é porque, com a identificação da infecção, hoje em dia é possível transformar o HIV em uma condição crônica, porém manejável. E isto é fundamental. Há também o benefício da prevenção primária que ocorre quando as pessoas que necessitam de tratamento estão, de fato, sendo tratadas. E esse efeito é positivo para a prevenção primária. Além disso, ainda que em tese, existe a possibilidade de controlar de forma razoavelmente fácil uma epidemia concentrada.

Ao mesmo tempo, há os riscos. E quais são eles? O risco da intensificação do estigma e da discriminação(ou da volta do estigma e da discriminação),independente de todos os esforços feitos para eliminá-los até aqui. Não há dúvida de que incentivar pessoas a fazerem o teste pode estimular uma escolha consciente, desde que haja um acompanhamento, um aconselhamento adequado, apropriado e acessível para o público atingido.

Novamente estamos diante de uma questão política. Para implementar a política de testar e tratar de forma eficiente e capaz de dialogar com a perspectiva dos direitos humanos, é preciso criar as condições necessárias para a conscientização e a capacitação. E isto só vai acontecer com vontade política. É preciso ter mobilização coletiva e comunitária. E isso só vai acontecer com reforma política. É preciso fazer o enfrentamento constante do possível retorno do estigma e da discriminação e fortalecer a defesa constante dos direitos humanos. E isto só vai acontecer com vontade política. Outra vez, portanto, é no campo político que se trava uma nova batalha. Não é no campo técnico. Logo, não são os técnicos do Ministério da Saúde que podem fazer isto. Para vencermos esta nova fase da epidemia, é fundamental que haja um esforço político tecido na sociedade brasileira.

[1]DANIEL, Herbert; PARKER Richard. AIDS, a terceira epidemia: ensaios e tentativas. São Paulo, Editora Iglu, 1991.

[2]SOUZA, Herbert de. A Cura da AIDS, Rio de Janeiro :Ed.Relume-Dumará, 1994.

[3]PARKER, Richard. Na contramão da AIDS: sexualidade, intervenção política. São Paulo: editora 34, 2000.

[4] FILHO, Naomar Almeida. Epidemiologia sem números: uma introdução crítica à ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

[5]PARKER, Richard; DE CAMARGO, Kenneth. “Pobreza e HIV/AIDS: aspectos antropológicos e sociológicos”. Cadernos de Saúde Pública 16 (sup. 1), 89-102, 2000.

[6] AYRES, José Ricardo; PAIVA, Vera e FRANCA Jr, Ivan. “Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro de vulnerabilidade e direitos humanos”. JR Ayres, V. Polvo e CM Buchalla (Orgs.). Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I, 2012. p. 71-94.

[7] PARKER, Richard. “Estado e sociedade em redes: descentralização e sustentabilidade das ações de prevenção das DSTs/AIDS”. In: PARKER, R.; PIMENTA, M.C.; e TERTO Jr. V. (Orgs.). Solidariedade e cidadania: princípios possíveis para as respostas ao HIV/AIDS? Rio de Janeiro: ABIA, 2002. p. 31-36

 

Fonte: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS

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