Soropositivo há 15 anos, o publicitário paulista Rodrigo K., 55 anos, esteve apenas duas vezes em uma das farmácias públicas que disponibilizam o medicamento de combate ao vírus HIV, também conhecido como “coquetel”. Apesar de Rodrigo ter recursos para comprá-lo, o medicamento só está disponível nesses postos: raras importadoras o oferecem, a preços muito altos.
No estado de São Paulo, há 200 “unidades dispensadoras de medicamentos antirretrovirais”, como são chamadas essas farmácias. Para adquirir o coquetel, o paciente ou um portador autorizado deve estar munido da receita com CRM do médico.
Colega de trabalho
O receio de encontrar um vizinho ou colega de trabalho que o identifique como portador do HIV levou Rodrigo K., que usa o coquetel há dez anos, a pagar à secretária do infectologista que o atende para buscar para ele todos os meses os medicamentos.
“Assim que soube que havia contraído o vírus, três pesadelos me assustavam: primeiro, morrer; depois, começar a tomar o coquetel; e, por último, ter de buscar a medicação na farmácia. Cheguei a fazer quimioterapia no posto, por causa de um câncer de pele decorrente da doença, e lá convivi com alguns soropositivos que iam durante um tempo, para fazer o tratamento, e de repente não apareciam mais. Eu perguntava por eles, a enfermeira informava que haviam morrido. A possibilidade de enfrentar a decadência física me deixava muito mal psicologicamente.”
Pacientes com doenças oportunistas podem apresentar a fisionomia pálida, magra, ter manchas na pele e movimentarem-se com o auxílio de muletas ou em cadeira de rodas. Por sua vez, em muitos casos os medicamentos causam lipodistrofia — redistribuição da gordura corporal, com perda em regiões como face, membros superiores e nádegas, e acúmulo no abdômen, região cervical e mamas.
Presença indispensável
Nas duas vezes em que esteve na farmácia, Rodrigo só foi porque sua presença era indispensável. “Meu organismo havia rejeitado um dos medicamentos e, nessas ocasiões, quando é preciso trocar o antirretroviral, a pessoa tem de assinar um documento.”
Nem todos os soropositivos têm recursos para evitar a ida à farmácia. Rodrigo tem recursos para pagar R$ 480 de consulta no médico particular, mais R$ 60 que a secretária cobra pelo serviço informal.
Preconceito é geral
Apesar dos consideráveis avanços na prevenção ao vírus e no tratamento do HIV/Aids, o estigma sobre o paciente soropositivo permanece grande. Fabíola Lopes, diretora técnica de saúde do Centro de Treinamento e Referência (CRT-DST/Aids), da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, afirma que a discriminação acontece entre pessoas de todas as faixa etárias, classes sociais e gêneros.
“Não há um grupo onde o preconceito seja maior. Ele está em todos. Por outro lado, os mais discriminados têm cor, classe social e gênero. Respectivamente os negros, os pobres e os transexuais. Se a pessoa reunir as três coisas, piora.”
Combate à sorofobia
Segundo Fabíola, as principais vítimas da sorofobia (discriminação ao soropositivo) são pacientes da comunidade LGBTQ e HSH (homens que fazem sexo com homens). O CRT criou uma página no facebook chamada “Conversaria sem Tabu”, para tirar dúvidas a respeito de sexualidade.
“Um profissional está disponível diariamente, de 8h às 18h, ou pelo WhatsApp (11) 991303310, para dar esclarecimentos sobre práticas sexuais seguras, prevenção, contágio e transmissão de doenças”, informa ela. Embora os jovens sejam o público-alvo, por representar hoje a população mais vulnerável ao vírus, o serviço é extensivo a pessoas de todas as idades.
A secretária na farmácia
A secretária do médico de Rodrigo K. conta que busca o remédio na farmácia para “mais de dez pacientes”, incluindo uma minoria de mulheres. “Não pego tudo de uma vez, porque acho falta de respeito com quem está na fila”, diz ela.
A administradora de empresas Rosa U., 52, portadora do vírus há 20 anos, diz que esteve apenas duas vezes em um posto para pegar o medicamento, também porque sua presença era indispensável. Ela também precisou trocar o medicamento.
Rosa reconhece que não tem “condições emocionais de enfrentar aquele lugar”. “É um ambiente que reforça uma realidade da qual eu procurei não tomar conhecimento, desde o começo”, explica. Ela diz que optou por “viver em uma bolha” à qual só sua família tem acesso.
Sua recusa a ir ao posto se dá, principalmente, pelo receio de ser “percebida como alguém diferente”. Ela reconhece o martírio do “preconceito internalizado” (que está dentro de si). “É o mais difícil de a gente se livrar”, acredita.
Portadora do vírus desde os 32 anos, quando o contraiu de um ex-namorado, Rosa conta que a descoberta da condição soropositiva foi algo que modificou seu destino. Desde então, ela decidiu que não se casaria nem tentaria ter filhos. “Isso não significa que eu seja infeliz, que não consiga extrair momentos bons da vida. O lado positivo foi que saí fortalecida, passei a elaborar melhor minha própria situação.”
Ex-mulher compreensiva
Durante seis anos, o empresário João Carlos G., 56, soropositivo desde 2001, contou com a disposição da ex-mulher para buscar os medicamentos. A comerciária Cláudia F., 49, que não foi infectada pelo marido nem sabe como ele contraiu o vírus, afirma que se dispôs a ir à farmácia porque compreendia o constrangimento dele.
“Eu estava muito aliviada por não ter sido infectada, e por isso não me sentia tão abalada naquele ambiente. Ao contrário dele, eu pensava: ‘Não aconteceu comigo’, e encarava como se não me dissesse respeito”, lembra. Em meados de 2007, João Carlos passou a pagar à secretária de seu médico para pegar o coquetel.
Discriminação reforçada
Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “pessoas vivendo com HIV são uma despesa para todos no Brasil”. Os especialistas consideram a fala de Bolsonaro “infeliz”, uma vez que colabora para disseminar ainda mais o preconceito.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgou uma nota na qual esclarece que “todas as doenças geram custos para os cofres públicos, não somente o HIV”.
“Investir em prevenção com metodologia cientificamente comprovada custará muito menos ao país.”
Índice de estigma
Aplicada no Brasil pela primeira vez em 2019, uma pesquisa mundial realizada pela Unaids (organismo das Nações Unidas para Aids) para avaliar o “Índice de Estigma” revelou que 41% dos 1577 entrevistados evitaram, prorrogaram ou se sentiram impedidos de realizar tratamentos ou cuidados relativos ao HIV por “não estarem preparados para o fato de serem soropositivos”.
31% disseram ter preocupação que outras pessoas (além de família ou amigos) descobrissem que eram HIV+.
26,5% afirmaram sentir medo de ser maltratados por profissionais de saúde (médicos, enfermeiras e outros) e que esses profissionais lhes revelassem sem consentimento o resultado positivo para o teste de HIV.
26,5% revelaram preocupação em relação à descoberta do parceiro, família ou amigos de que era HIV+
1 a 4 anos de punição
Em 2014, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 12.984, que tornou crime discriminar pessoas que são portadoras do vírus HIV ou doentes de Aids.
A lei determina uma punição de 1 a 4 anos para quem recusar, procrastinar, cancelar ou impedir que permaneça como aluno em creche ou estabelecimento de ensino pessoas soropositivas; negar emprego ou trabalho; exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego; segregar no ambiente de trabalho ou escolar; divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de Aids, com intuito de ofender-lhe a dignidade; recusar ou retardar atendimento de saúde.
Sala de espera vazia
Não é só na farmácia que muitos soropositivos não querem ser vistos. De acordo com o infectologista José Valdez Madruga, pesquisador do CRT, há pacientes que pedem para ser atendidos quando não houver mais ninguém na sala de espera.
“Eles agendam consulta no último horário, e só sobem depois de se certificar com a secretária de que não há mais ninguém esperando”, diz. Valdez cita ainda o caso extremo de paciente que abandonou o tratamento para não ter de lidar com o estigma. “Eventualmente, é preciso o apoio de um terapeuta”, diz.
Fonte: UOL