Passados já seis meses de pandemia da covid-19 no Brasil, tanto o uso de leitos em hospitais quanto a rotina de atendimentos médicos destinados a pacientes portadores de HIV finalmente começam a se estabilizar.
Quem afirma são especialistas no combate à aids, doença causada pelo HIV, segundo os quais a pandemia impôs ritmos distintos no tratamento, embora sem que tenha havido suspensões ou interrupções das medicações de uso contínuo.
Com quase 130 mil óbitos em seis meses, a covid-19 já matou quase metade do que mataram as doenças associadas à aids, só que em um período muito mais curto. Segundo o Datasus, sistema de vigilância em saúde do governo federal, o HIV e as doenças associadas a ele deixaram 270.591 mortos entre 1996 e 2018. Entretanto, o HIV levou nove anos para alcançar o número de mortos que a covid-19 já fez no país nesses últimos meses.
De acordo com o infectologista Igor Maia Marinho, preceptor de infectologia no HC-SP (Hospital das Clínicas de São Paulo), a curva descendente de casos no estado e na capital paulista tem possibilitado aos serviços hospitalares desobstruírem suas vagas —antes destinadas exclusivamente à pandemia — também para o tratamento de outras doenças.
“No início da pandemia, havia uma preocupação sobre dificuldades de abastecimento de remédios às pessoas com HIV, o que, no fim, não aconteceu. Outra dificuldade foi a mobilização de serviços hospitalares para reservar leitos a pacientes com covid: também pensamos que isso poderia afetar o tratamento, mas agora, felizmente, a situação está se regularizando à medida que esses leitos têm retornado aos pacientes [também os com HIV)], e as consultas vão, aos poucos, voltando ao ritmo normal”, completou.
Marinho atende no ambulatório do HC. Ele observou que, sobretudo no começo da pandemia, em março e abril, alguns pacientes com HIV adotaram cuidados redobrados por medo de se infectarem com o coronavírus —o que fez com que alguns, explica o médico, tivessem dificuldades de acesso a consultas. “Houve algum prejuízo nesse sentido, mas nada que implicasse em interrupção do tratamento”, definiu.
O infectologista conta que “houve uma mobilização do SUS [Sistema Único de Saúde]” a fim de que a medicação liberada aos pacientes com HIV fosse feita para um tempo maior que o de costume.
“Não observamos desabastecimento durante a pandemia, ainda que, em alguns casos, o paciente teve de ir buscar a medicação em uma unidade de saúde mais próxima de casa. Como a pessoa com o vírus controlado precisa se consultar só a cada seis meses, não houve exatamente um prejuízo”, analisou.
A infectologista Ana Beatriz Sampaio, do serviço de atendimento especializado às pessoas com HIV do Hospital Escola São Francisco de Assis, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), reforçou: as consultas de rotina e alguns exames “foram adiados” aos pacientes em boa condição; aos demais, foram mantidos só os casos mais delicados.
“Aos poucos estamos retomando tudo, à medida que a circulação está sendo liberada, e o fato é que a vida de todo mundo foi impactada pela pandemia, de alguma maneira, mas a ideia do Ministério da Saúde e também a nossa foi tornar a coisa mais simples a quem vive com o HIV e faz um tratamento que não pode ser interrompido: as receitas tiveram a validade estendida e, atualmente, o paciente pode pegar os remédios em qualquer farmácia dispensadora de antirretroviral, mas, para que ele não ficasse sem a dispensação do medicamento, emulamos a retirada perto de casa”, afirmou.
A médica admitiu que a retirada dos remédios em unidade de saúde próxima à residência do paciente afeta questões de privacidade de quem, em geral, prefere pegar em outras unidades. “Mas não teve jeito, pois a ideia foi não deixar essa pessoa interromper o medicamento por não ir buscá-lo. Além do mais, essa é uma questão temporária”, enfatizou.
“No nosso serviço, nos mantivemos ainda muito presentes por email e telefone, porque, embora com a telemedicina aprovada, ainda não a temos lá, com orientações. Isso também tranquilizou o paciente, sobretudo no começo da pandemia, quando o medo era muito maior.”
Infectologistas alertam para risco de interrupção do tratamento
Os dois infectologistas alertaram sobre os riscos de interrupção da medicação —no caso da pessoa com HIV, o tratamento é contínuo.
“A esses, sobretudo, frisamos que era muito importante seguir com o tratamento não apenas pela covid em si, mas para evitar algum problema de imunidade que pudesse atrapalhar inclusive suas defesas contra o coronavírus”, relatou. “Procuramos explicar que não tinha nenhuma evidência de maior risco [à covid], mas que era importante nesse período duas coisas: tomar o antirretroviral e se proteger usando máscara, mantendo o distanciamento social e higienizando as mãos.”
Ela explicou que parar o tratamento, simplesmente, pode fazer com que o vírus desenvolva resistência ao medicamento, que tem a rigidez de frequência e horários, por exemplo, de um antibiótico —com a ressalva de que, no caso do HIV, o consumo é pelo resto da vida. “Se a pessoa para, o remédio pode parar de funcionar no curto, médio ou longo prazo. Isso é um risco”.
O médico do HC em São Paulo reforça: “Interromper o tratamento com medicamentos de uso contínuo, no caso do HIV, pode causar progressão da deficiência imunológica e expor o paciente às infecções oportunistas; são implicações sérias, graves. Controlar a doença proporciona levar uma vida normal, ou muito próxima disso”, destacou Marinho.
“Tivemos casos de pacientes que estavam em abandono de tratamento e voltaram pedindo para recomeçar —não é a mesma resposta que se consegue, mas buscamos absorver a demanda porque, se essa pessoa pega o coronavírus e tem a forma grave de covid, tratar a doença de base, seja ela qual for —hipertensão, diabetes, por exemplo —, já ajuda”, complementou a infectologista Ana Beatriz.
Recém-detectados com o HIV na pré-pandemia: e agora?
E no caso de quem era recém-detectado com o HIV e começaria o tratamento, antes de a pandemia se instalar: atrasar o início do tratamento em uma etapa tão inicial gera impactos substanciais?
“Depende do estado da pessoa, o qual avaliamos pela taxa de imunidade, em um sentido grosseiro; se a contagem de CD4 [células de defesa] dela é muito alta, menos mal, mas o recomendado é que se comece o tratamento assim que for feita a detecção. Nesse caso, aliás, o Ministério da Saúde preconiza o início do tratamento no SUS pelas clínicas da família, e o acesso a elas não foi interrompido”, respondeu a infectologista do Hospital Escola São Francisco de Assis.
Já a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) orienta que quem vive com HIV com doença avançada, de CD4 baixo e alta carga viral, bem como os que não estão em tratamento antirretroviral, têm um risco aumentado de infecções e complicações relacionadas à covid-19.
“Não se sabe se a imunossupressão causada pelo HIV colocará uma pessoa em maior risco para a covid-19. Portanto, até que se saiba mais, devem ser tomadas precauções adicionais para todas as pessoas com HIV avançado ou pouco controlado”, define o órgão, que pede ainda a quem vive com o HIV e esteja tomando medicamentos antirretrovirais que garanta um suprimento de ao menos 30 dias a seis meses de remédios, bem como que suas vacinas estejam em dia.
“Metas globais para o HIV estabelecidas para 2020 não serão atingidas”, diz Unaids
A agência Unaids, da ONU (Organizações das Nações Unidas), é o programa das Nações Unidas criado em 1996 para buscar soluções e ajudar nações no combate à aids. Em abril passado, a agência recomendou que os serviços deveriam continuar disponíveis para pessoas que vivem com o vírus HIV ou que estivessem em risco de infecção pelo vírus HIV —com entrega de preservativos, ações de redução de danos e profilaxia e testagem, por exemplo.
“Para impedir que as pessoas fiquem sem medicamentos e reduzir a necessidade de acesso ao sistema de saúde, os países devem adotar a implementação completa da dispensação de três meses ou mais de tratamento contra o HIV”, diz uma cartilha de orientações lançada pelo órgão com informações sobre HIV e a covid-19.
“O acesso aos serviços de covid-19 devem ser garantidos para pessoas vulneráveis, incluindo uma abordagem direcionada para alcançar aquelas que são mais marginalizadas e deixadas para trás, removendo barreiras financeiras, como taxas de serviços, entre outras”, defende a publicação.
Em julho, a agência alertou para o fato de que, mesmo com mortes causadas pela aids em queda e com o acesso aos tratamentos em processo gradual de melhora, o avanço poderia estar comprometido devido à pandemia.
“As metas globais para o HIV estabelecidas para 2020 não serão atingidas”, aponta o relatório. “Até os ganhos obtidos podem ser perdidos e o progresso pode estagnar ainda mais se não agirmos”.
Outo aspecto revelado pelo documento é que o mundo não vai conseguir cumprir metas críticas para 2020, incluindo a redução de 50% das mortes relacionadas ao HIV entre 2015 e o final de 2020. Este objetivo, entre outros, foi acordado por todos os Estados Membros da ONU na Declaração Política de 2016 sobre HIV e Aids.
Números de infectados com HIV no Brasil e no mundo
No Brasil, país em que a epidemia de aids é considerada estabilizada, o Ministério da Saúde estimava em 2019 um total de 866 mil pessoas que vivem com o HIV.
Também ano passado, o relatório da Unaids estimou haver 38 milhões de pessoas no mundo infectadas com o vírus — um milhão a mais do que em 2018.
Fonte: UOL