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Mau uso do dinheiro público atrasa produção de remédios gratuitos contra câncer e aids


O Brasil está perdendo uma matéria-prima preciosa usada na produção de remédios contra o câncer e a aids. É que o plasma do sangue doado nos hemocentros do país inteiro não tem onde ser processado, porque a fábrica que o governo começou a construir há dez anos ainda não está pronta.

A construção do complexo farmacêutico era o passo mais importante de um plano estratégico: reduzir a dependência do Brasil na compra de hemoderivados, os remédios feitos a partir do sangue humano. As obras em Goiana, a 63 quilômetros do Recife, começaram em 2010 e deveriam durar quatro anos.

Mas, em 2015, a Polícia Federal apontou um desvio milionário nas contas da Hemobrás, a estatal responsável pelo projeto. Durante a Operação Pulso, até maços de dinheiro foram arremessados do prédio onde morava o então diretor-presidente da empresa. O escândalo levou à paralisação das obras em 2016.

“Havia questões de sobrepreço e havia questões mesmo de problemas técnicos na construção da obra. Ou seja, o próprio projeto não estava sendo levado a contento. Tentou-se aquela solução intermediaria de se tentar corrigir, mas, ao final, não deu mais, teve que paralisar a obra mesmo, terminar o consórcio que estava fazendo a obra e simplesmente fazer outra licitação”, conta Marinus Marsico, procurador de contas do TCU.

Um único setor da fábrica que já estava pronto continuou funcionando: a câmara fria recebia, fazia a triagem e armazenava o plasma doado pelos bancos de sangue do Brasil inteiro. Uma tarefa que é controlada pelo estado, já que a Constituição proíbe o comércio de sangue e derivados no país.

Como não tinha capacidade de processar o plasma que recebia, a Hemobrás buscou uma alternativa no exterior. O plasma recolhido seguia para um laboratório na França e retornava na forma de medicamentos, como albumina e imunoglobulina, que depois eram distribuídos gratuitamente ao SUS para serem usados no tratamento de doenças graves como câncer, Aids e hemofilia.

O Theo, de 1 ano, é hemofílico e precisa desses medicamentos.

“Ele depende da medicação, porque os sangramentos acontecem em lugares perigosos. E sangramentos nas articulações vão deformando e a criança vai ficando limitada, o adulto vai ficando limitado de andar e de muitas outras coisas”, defende a mãe de Theo, a gestora comercial Diandra Ziele.

Em julho, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal descobriram que a matéria-prima desse produto precioso estava estragando nas geladeiras da Hemobrás depois que a Anvisa descredenciou o laboratório francês.

“A câmara fria da Hemobrás estava abarrotada de plasma. Então o Ministério da Saúde diz: ‘vamos assumir esse problema’, só que não assumiu nada. Simplesmente deixou o plasma estragar, deixou quase 3 milhões de bolsas de plasma estragarem. E nós, com todo o cuidado para evitar esse, digamos, esse fato que eu diria até vexaminoso e que poderia desestimular o cidadão de comparecer aos hemocentros para doar sangue, nós fomos, fizemos uma série de tratativas como para resolver esse assunto, alertando ao Ministério da Saúde. Até que chegou um ponto que não foi mais possível”, conta Marinus Marsico, procurador de contas do TCU.

Só na Hemobrás, mais de 156 mil bolsas perderam a validade em um período de quase três anos. Sem ter para onde mandar o plasma, a estatal também deixou de receber o material dos bancos de sangue.

Segundo o procurador, no total, mais de 2,7 milhões de bolsas de plasma se tornaram inviáveis para a produção de medicamentos, uma perda estimada que varia de R$ 820 milhões a R$ 1,3 bilhão nos últimos seis anos, em derivados de plasma que deixaram de ser produzidos. É praticamente o mesmo valor gasto pelo Ministério da Saúde para importar hemoderivados. E a mesma quantia investida, até agora, na construção da Hemobrás.

“Bilhões já foram gastos nessa fábrica que não produziu absolutamente nada. Esse dinheiro vem da onde? Esse dinheiro vem do contribuinte. Esse dinheiro um pouco é meu, um pouco é seu, do imposto que pagamos”, avalia Dante Langhi, presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular.

A história de atrasos e acusações de mau uso do dinheiro público se reproduziu, em menor escala, em São Paulo. Em 2008, o Instituto Butantan e o governo do estado também começaram a construir uma fábrica de hemoderivados. Mas, assim como a da Hemobrás, essa nunca produziu nenhuma gota de medicamento. Agora, o projeto que já consumiu quase R$ 250 milhões vai ser engavetado. O futuro da fábrica que nasceu para processar o plasma do sangue deve ser produzir a vacina da Covid-19.

Uma auditoria feita em 2017 apontou uma série de razões para o fracasso da fábrica paulista.

Entre elas, a falta de um item básico: a matéria-prima. O Instituto Butantan firmou acordo com a Hemobrás, em 2011, para ter acesso ao plasma. Mas, como a estatal nunca produziu, o Butantan diz que ficou sem o plasma e a construção da fábrica foi paralisada.

Depois de tantos anos, ainda faz sentido ter uma fábrica de hemoderivados no país? O presidente da Associação Brasileira de Hematologia diz que a decisão deve levar em conta aspectos comerciais e científicos.

“A escolha melhor, sem dúvida é a mais eficiente e a mais econômica e a que garanta o atendimento a demanda. É isso, a resposta é essa. Se for melhor ter uma fábrica que seja suficiente, com tecnologia moderna, a um custo aceitável, óbvio que seria bom ter a fábrica, mas não foi isso que aconteceu até agora no país”, afirmou Dante Langhi, presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular.

A Hemobrás declarou que, ainda em 2020, vai retomar o envio do plasma para beneficiamento, que quase 80% das obras da fábrica estão prontos e que a previsão é de que ela seja entregue em 2023. A Hemobrás afirmou que não transferiu o plasma para o Instituto Butantan porque a fábrica não chegou à fase de produção.

O Ministério da Saúde declarou que vai apurar as informações sobre a remessa do excedente de plasma da Hemobrás desde 2016 e que prestará esclarecimentos aos órgãos de controle, que o objetivo é alcançar a autonomia no fracionamento do plasma por meio da Hemobrás, que o domínio dessa tecnologia é uma questão estratégica e de soberania do país e que não houve prejuízo para os pacientes.

Fonte: Jornal Nacional

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