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Mais de 2.000 pessoas trans já mudaram de nome em cartório em um ano


Bruno Santos/Folhapress

Abigaill Santos escolheu aos 41 anos de idade seu novo nome de registro, com a letra L duplicada, há pouco menos de um ano. “E foi um close só”, diz.

Travesti, mãe e militante pelos direitos da população LGBT, ela é uma das 2.033 pessoas que mudaram o nome e o gênero nos seus documentos pessoais.

Bernardo, Bruna, Maria, Pedro e Fernanda foram os cinco nomes mais escolhidos nas novas certidões de nascimento.

Essas pessoas foram contempladas por uma norma do Conselho Nacional de Justiça que completa um ano nesta sexta-feira (28), Dia do Orgulho LGBT, e tornou o processo mais célere —são cinco dias, da solicitação à emissão da nova certidão de nascimento.

Todo o trâmite passou a ser feito nos cartórios de registro civil do país. Antes do Provimento 73, quem desejasse alterar o próprio nome precisava entrar na Justiça e esperar anos por uma decisão favorável.

“É um novo nascimento pra gente. Não se tem dimensão da qualidade de vida que se ganha com o nome compatível à identidade de gênero nos documentos”, afirma.

Identidade de gênero representa a forma como a pessoa se reconhece: homem, mulher, ambos ou nenhum dos gêneros.

Das 2.033 pessoas beneficiadas, 1.162 optaram por trocar o nome masculino que receberam ao nascer por um feminino, segundo levantamento da Arpen Brasil (Associação Nacional de Registradores de Pessoas Naturais) elaborado a pedido da Folha.

Cerca de 64% do total de retificações em documentos de travestis e transexuais ocorreram no estado de São Paulo. Destas, 334 só na capital paulista. Para a Arpen, São Paulo aparece na dianteira do ranking por ter a maior população e uma forte atuação de grupos pró-LBGT.

Paraná (150 casos) e Minas Gerais (113) estão na sequência.

Carla Watanabe, 53, tabeliã concursada do 28º Tabelionato de Notas de São Paulo, no Tatuapé (zona leste), também integra essa estatística.

Mulher trans, mãe de uma adolescente de 16 anos e ainda dividindo o teto com a outra mãe de sua filha, Watanabe diz que ter o novo nome nos documentos pôs fim a um ciclo de preconceito que viveu desde que assumiu há sete anos sua identidade de gênero.

“Não interessa a classe social e nem a formação. A humilhação acontece contra a população trans em todos os lugares”, afirma. Watanabe é advogada e tem diploma em engenheira mecânica pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), em São José dos Campos (SP).

Entre os muitos rosários de preconceito que desfiou, Watanabe conta que quase foi presa numa loja de um shopping em São Paulo por conta da inadequação de seus documentos. “O segurança da loja achou que eu tinha roubado alguém. Só consegui sair de lá quando ameacei processá-los por discriminação”, lembra.

Abigaill diz ter sido impedida de embarcar num avião também por problemas com sua documentação. “Havia feito o check-in com o meu nome social e quando apresentei meu RG, a companhia aérea não aceitou. Foi o maior constrangimento da minha vida”, conta.

Abigaill e Carla foram discriminadas em espaços privados. No serviço público federal, decreto de 2016 da ex-presidente Dilma Rousseff determina que travestis e transexuais sejam tratadas e atendidas pelo nome social que adotaram. Prefeituras e governos estaduais também têm implantado a mesma norma.

Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), avalia como baixa a adesão da população trans ao benefício até agora. “Estamos falando de pessoas que, na maioria dos casos, não têm estudo, informação, vivem da prostituição e não tem dinheiro para pagar pelo serviço”, diz.

Outro problema, diz ela, está na burocracia. “Esteja preparado para fazer uma via crúcis por órgãos e mais órgãos para provar que você é você.”

Para iniciar o processo de retificação do nome, o interessado precisa apresentar cópias de todos os documentos pessoais, como RG, certidão de nascimento atualizada, comprovante de endereço, entre outros.

Além disso, terá de reunir mais sete certidões que buscam saber se a pessoa possui pendências criminais, cíveis, eleitorais e se cumpriu as obrigações no serviço militar, se for o caso. Todas elas são gratuitas, mas são disponibilizadas por diferentes órgãos da Justiça.

A única certidão que exige pagamento de taxa é a emitida pelos tabelionatos de protesto. Ela mostra se a pessoa possui dívidas ativas. Segundo norma do CNJ, é preciso reunir o documento em todos os tabelionatos da cidade onde a pessoa trans mora.

Na capital paulista, por exemplo, são 10 tabelionatos de protestos que cobram R$ 13,17 por documento. O custo final sai a R$ 131,70. Ações judiciais em andamento ou débitos pendentes não impedem a averbação da nova documentação.

Reunida a papelada, basta ir ao cartório e pagar mais uma taxa pelo serviço. Na cidade de São Paulo, o valor é de R$ 135,03, e inclui a mudança do registro original e mais a nova certidão de nascimento. É partir dela que os demais documentos são trocados, como o passaporte e o RG.

Segundo Karine Boselli, diretora da Arpen Brasil, o calhamaço de documentos exigido se justifica para evitar fraudes. “A sociedade precisa entender que quando uma pessoa troca de nome ela deixa de ser João e vira Maria. É uma outra pessoa. A mudança exige uma operação para comunicar diferentes órgãos”, explica.

Boselli diz ainda que o solicitante sem renda ou desempregado pode ter acesso ao serviço de forma gratuita nos cartórios. Para isso, o interessado precisa provar que se encontra nesta situação.

Abigaill, hoje gestora do Transcidadania, programa da gestão Covas (PSDB) que capacita e insere pessoas trans no mercado de trabalho, diz que apenas 20% de 200 participantes da iniciativa têm nomes retificados.

“A boa notícia é que conseguimos uma verba de uma emenda parlamentar para cobrir os custos. Todos os nossos beneficiados terão seus nomes sociais em seus documentos a partir do segundo semestre”, comemora.

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