Sobre a calçada caminham travestis supermaquiadas em looks bafônicos, minas com seus bonés virados para trás, pessoas trans e muitos gays. O que não falta nesse casting tão diverso é a troca de afetos.
Os encontros são regados a goles de cachaça, vinho químico e cerveja. E muito cigarro. Aquela conferida nos aplicativos de paquera em busca do match perfeito a poucos metros de distância também é lei.
Sejam bem-vindos às noitadas ao ar livre no Largo do Arouche, na região central de São Paulo.
É essa atmosfera do reduto LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros) mais famoso da metrópole que enche as páginas de “Arouche –uma Fotobiografia” (Coletivo Transverso, 64 páginas).
O livro, que será lançado nesta quarta-feira (30) na capital paulista, sai do forno no momento em que o Arouche passa por uma grande reforma criticada pelos LGBTs. Mesmo sendo muitos na paisagem, os grupos afirmam não terem sido consultados a respeito das mudanças propostas.
A reforma, iniciada em maio, planeja erguer uma “pequena Paris” no largo, que se estende entre as avenidas Vieira de Carvalho e Duque de Caxias.
Paralisadas por três meses após riscos de descaracterização, além de possíveis danos urbanísticos e ambientais, as obras acabam de ser reiniciadas e vão consumir cerca de R$ 2,3 milhões, captados com a iniciativa privada pela Câmara de Comércio França-Brasil.
Nesse cenário, a chegada do livro marca uma posição, diz Zeca Caldeira, fotógrafo responsável pelos retratos. “Esse trabalho funciona como um manifesto contra a tentativa de invisibilização desse público”, diz.
“Quando eu mostrei o trabalho, muitos me perguntaram: você está fotografando o Arouche, mas só tem pessoas nessas fotos. Cadê a praça em si?”.
Esqueçam a escultura “Banho de Sol”, do artista ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955), os bustos de bronze, as árvores de copas frondosas que proporcionam sombra para quem decide fazer uma pausa na hora do almoço e o mercadinho de flores —todos ícones do largo.
O Arouche já é tombado em nível municipal, pelo Conpresp, e a sua preservação também é avaliada no âmbito estadual, pelo Condephaat.
Um dos que buscam essa chancela é Helcio Beuclair, fundador e coordenador geral e político do Arouchianos, grupo LGBT com forte atuação no espaço.
“Nunca na história da cidade de São Paulo foi levantada a questão sobre a territorialidade LGBT. Queremos que o estado reconheça esse espaço histórico de resistência”, diz.
Beuclair e outros representantes de entidades da sociedade civil, como o Instituto Polis e a Repep (Rede Paulista de Educação Patrimonial) planejam um dossiê com fatos históricos que associam o Largo do Arouche a um espaço de resistência LGBT. As pesquisas buscam informações dos últimos 50 anos.
“Os registros oficiais que nos levam a identificar essa ocupação partem das forças de segurança do Estado, que historicamente reprimiram, e ainda reprimem, a comunidade. Em 1987, a polícia deu início à Operação Tarântula, com objetivo de prender travestis que se prostituíam na região. E apesar de ela ter sido suspensa pouco tempo depois, travestis passaram a ser assassinadas misteriosamente a tiros”, segundo trecho escrito por Beuclair na publicação.
O fundador do Arouchianos também lembra que a região foi o palco de estreia das drag queens mais famosas da cena paulistana, como Silvetty Montilla, Salete Campari e Victoria Principal, só para citar algumas.
Entre as 90 fotos publicadas, o que se vê são rostos, abraços e poses da gente que fez do Arouche mais do que um cartão-postal da cidade.
Todo o ensaio fotográfico foi impresso em preto e branco, opção que, para Caldeira, capta com mais força “os sentimentos dos fotografados”. As fotos são acompanhadas por pequenos depoimentos dos anônimos do largo, como este: “Então, a gente só está querendo que vocês vão cuidar da vidinha rica e branca de vocês, longe!”
Caldeira faz parte do casadalapa, coletivo responsável pela publicação, que reúne artistas, designers, cineastas e arquitetos. O livro também traz pequenos textos assinados por coletivos, como Stronger e Arouchianos, que contam a história do largo e sua importância para a cena LGBT.
Ao longo dos últimos cinco anos, o fotógrafo se especializou em desestigmatizar espaços urbanos mostrando as pessoas que o habitam. Foi assim na Cracolândia, também no centro de São Paulo, quando clicou crianças perambulando em meio aos pais maltratados pelo vício em pedra de crack.
Levou a mesma expertise para o Arouche. No espaço, montou um miniestúdio com luz especial e um fundo de tecido preto. Sem precisar abordar ninguém, foi clicando quem procurava saber sobre o ensaio fotográfico. Quem topou participar ganhou de presente uma foto impressa.
A parafernália ocupou o Arouche ao longo dos três meses seguintes ao Carnaval deste ano –sempre aos domingos, dia em que o lugar é tomado por atividades culturais, esportivas e serviços de saúde, como a realização de exames para detecção do vírus HIV.
Julio Dojcsar, um dos fundadores da casadalapa, diz que o álbum só com anônimos do Arouche virou uma mostra viva “da resistência de pretos, pobres e periféricos que buscam o lugar para simplesmente ser”.
“Se não fossem essas pessoas, o Arouche seria mais um endereço morto em São Paulo, uma pracinha sem uso que só serve de banheiro para cachorro”, completa Dojcsar.
O recurso que tornou a publicação possível foi adquirido por meio do ProAC (Programa de Ação Cultural de São Paulo), da secretaria de Cultura e Economia Criativa, da gestão Doria (PSDB).
Com o inventário de seus frequentadores publicado, o passo seguinte será pressionar o poder público pelo tombamento do largo como patrimônio imaterial LGBT, algo ainda inédito no Brasil.
Arouche – uma Fotobiografia (Coletivo Transverso, 64 págs)
Quando 30.nov, a partir das 18h
Onde Galeria Lona – rua Brigadeiro Galvão, 990. Barra Funda
Quanto R$ 15
Fonte: Folha de São Paulo