Warning: Use of undefined constant php - assumed 'php' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/storage/d/d2/36/abianovo/public_html/site/hshjovem/wp-content/themes/ultrabootstrap/header.php on line 108

Jovem, desempregada e esperançosa: os desafios de uma transexual na busca pela garantia de direitos, espaço no mercado de trabalho, transfobia e os dilemas de viver em São Gonçalo, envolta pelo reduto das igrejas evangélicas


No dicionário dos nomes o significado é claro: Dafne significa “louro”, “loureiro”. De acordo com a mitologia, Dafne era uma ninfa pela qual Apolo, o deus do Sol, teria se apaixonado após ter sido atingido por uma flecha de Eros. Dafne também foi atingida, no entanto, por uma flecha de chumbo, motivo pelo qual recusava a paixão do deus. Como forma de fugir de Apolo, Dafne pediu a seu pai que a transformasse em um loureiro, pedido que foi aceito. Por isso, Apolo é representado com um ramo de louros, planta que passou a carregar para que pudesse se manter sempre próximo da sua paixão. O louro era oferecido aos atletas após conquistas alcançadas nos jogos olímpicos. Por extensão, o nome carrega o sentido de “vitoriosa”.

Entretanto, das belezas das histórias do Olimpo grego para a realidade da vida cotidiana no “Olimpo da Guanabara” a única flecha que Dafne Kora – que significa virgem – conhece em sua vida é o da resistência. Moradora do popular bairro de Alcântara, na gigantesca São Gonçalo, a jovem de 29 anos (sobre)vive no aguardo de dias melhores. Desde muito cedo, por sinal. Identidade é algo tão intríseco quanto viver. Mas para uma mulher transexual (assim como para um homem trans), a luta por reconhecimento começa dentro de casa. “Moro hoje em dia só com minha mãe. Minha irmã, às vezes, ela vai lá com minha sobrinha. Sou a (filha) mais nova. Hoje em dia a relação com minha irmã é boa. Eu tenho só ela e um primo meu que são, tipo assim, meus defensores. As (únicas) pessoas que tentam entender mais a situação trans, correm atrás de informação, estão abertos ao diálogo e tentando saber novidades de emprego e estudo pra tentar me inserir. Me incentivando a não ir para outros caminhos. Agora com minha mãe, a situação é mais complicada. Tipo assim: ela não me expulsa de casa, fala que me entende e me aceita, só que por eu estar desempregada há um tempinho, uns quatro ou cinco anos, eu só vivo através de projetos de ONGs, alguns ‘bicos’ de performance de drag e não consigo de carteira assinada, (tá difícil) porque ela já vai fazer quase dois anos que tá desempregada”, revela.

Apesar da irmã ajudar como pode, mediante os gastos com uma criança pequena e faculdade, não pode fazer muito. Seu pai ainda é vivo, mas segundo Dafne não se pode esperar muito dele porque “hoje em dia ele trabalha, vive com a mulher com quem ele traiu minha mãe, ele ajuda essa mulher, mora na casa que era minha, da minha mãe e da minha irmã – porque ele tomou da minha irmã. O máximo que acontece é ele entrar em contato com a gente até pra pedir dinheiro ou ajuda. Ele sabe que estou há cinco anos desempregada e em vez de ‘tá precisando de alguma coisa aí? De um arroz, um feijão? Vem aqui em casa que eu vou dar pra você e te ajudar’. Não”, reclama. Sentindo-se na responsabilidade de contribuir dentro de casa, mas sem oportunidades formais de emprego, Dafne se vê sem saída e parte para engrossar as estatísticas de vulnerabilidade social que afeta a maioria das pessoas transexuais: a prostituição.

“Eu caio no desespero e o que eu posso fazer pra conseguir um dinheiro assim rápido, é que eu sou obrigada a ir pra rua (se prostituir). Sinto a necessidade, às vezes”.

São Gonçalo e Empregabilidade

E não é por falta de esmero, capacidade ou força de vontade que a jovem gonçalense não consegue emprego. Resiliente e disposta, “joga currículo nas onze” e não escolhe trabalho. Com experiência em telemakerting e outros serviços comerciais e oriunda de um bairro com comércio popular ativo, Dafne afirma que apesar de ser bem conhecida no bairro e até bem quista por muitos comerciantes, o estigma e o preconceito causados por sua identidade de gênero fala mais alto do que suas atribuições.

Assim, por eu morar em Alcântara ali é até bem farto na questão de lojas, de vendas, de mercado e isso tudo. E eu chegava até mesmo a entregar o currículo, eles recolhiam, falavam que não tinham nenhum problema, que estavam precisando, mas quando chegava no gerente ou pessoa responsáveleles liam meu currículo, gostavam dele, me chamavam e quando chegava lá sempre rolava alguma coisa assim: ‘ah, não tem como porque a sede não é aqui, é em outro lugar, qualquer coisa a gente chama de novo etc’. E nunca acontece”, diz ela. E muitas das vezes nem sua mãe acredita. “Quando eu falava isso pra minha mãe, tipo assim, ela sempre achava que eu fazia corpo mole, que era frescura. Ela me culpa (por não arrumar trabalho). É muito difícil. Ela me culpa e fala que essa questão de eu querer ser trans é porque eu quero viver às custas dela, que eu não quero sair da barra da saia dela, que eu só quero mole, que eu não gosto de trabalho. Aí ela fala ‘você ainda não conseguiu mudar sua documentação, então tem que aceitar as pessoas te chamar pelo seu nome civil, porque você é homem’.

“Porque minha mãe é assim: ela entende minha situação, só que nisso aí ela tem colegas e vizinhos. Esses colegas vizinhos não entende a realidade de uma pessoa trans.  Não tem, às vezes, nem um filho ou ninguém gay. Então, as amigas dela vem falar pra ela assim ‘Fátima quem tem agora que sustentar a casa é ela. Ela que tem que ir atrás e se ela não tem a documentação como menina, peito de silicone, essas coisas todas, ela tem que baixar a cabeça, engolir sapo e aceitar ser chamada como homem’. Aí os vizinhos ficam falando isso e quando ela chega em casa ela desconta tudo em cima de mim. Ela desconta porque ela também tem a frustração de não estar conseguindo emprego. Aí eu entro em desespero também. Eu tento não entrar em desespero porque, tipo assim, tento sempre estar interagindo com as pessoas pra saber se está precisando de alguma coisa, se pode me ajudar. Aí ela também acha que eu não exponho o meu problema e a minha situação financeira para os lugares que eu vou. E pra mim fica muito difícil, porque o que acontece: em São Gonçalo nada acontece. Tudo que eu preciso eu tenho que vir pro Rio. Toda a questão burocrática de questão de mudança de documentação, questão de emprego, questão de movimento LGBT onde acontece é no Centro do Rio ou, no máximo, é no centro de Niterói que tem um movimento forte ali”, expõe com pesar.

Como falar muitas das vezes não adianta, Dafne foi com sua mãe procurar emprego em uma dada oportunidade. E pela primeira vez a face do preconceito + transfobia se anuviou diante dos olhos de sua progenitora, que pôde ver com mais clareza a forma como sua filha é tratada no dia a dia. “Nós fomos num mercado pequeno e nesse mercado tinha um menino no caixa e ele era gay. Ele era todo afeminado, mas não deixava de ser gay. Ele não se identificava como uma mulher trans, mesmo ele tendo a voz fina e trejeitos. E estavam precisando de alguém para uma vaga. Minha mãe tinha falado com o pessoal dali e disseram que estavam precisando. Aí ela chegou em casa e falou para irmos logo. Fui com ela. Quando chega lá no cara e o cara viu que era eu, ele falou assim: ‘ah poxa, a gente tava (sic) com uma vaga, mas a gente acabou de preencher a vaga’. Aí a outra menina, que era tipo uma fiscal de loja, ela até interrompeu o cara e falou, ‘mas a gente tá com vaga’. E minha mãe percebeu porque ele cutucou a menina como se ela tivesse dando gafe (sic) e não era pra abrir a boca. E minha mãe viu. Ficou bem claro. Aí eu ‘viu mãe, agora a senhora viu na pele como a questão é complicada’. E completa: “Até em padaria e lojas eles vem com um papo ‘eu já contratei gay, já contratei lésbica, mas deram dor de cabeça e eles espantaram clientes. Eu conheço você, sei que é uma pessoa educada, tem postura, mas por causa dos outros que eu tive dor de cabeça eu fico com receio de dar uma chance’. E fica nisso”.

 

Identidade de Gênero

Uma estranha no ninho. Era mais ou menos esse o sentimento de Kora em relação a sua identidade de gênero quando adolescente – época que as referências mais próximas de diversidade sexual e companhia eram seus primos gays e a transexualidade sequer era falada como atualmente. O que em muito explica sua dificuldade em reconhecer-se como tal e “sair do casulo”. “A minha transição, na questão de uso de hormônios e usar o nome feminino, foi meio tardia. Mas desde muita pequena, por eu ter dois primos gays, eu já tinha um exemplo deles e eu vi que eu era muito diferente deles. E até entre amigos gays, (quando) eu saia com eles pra balada ou uma boate, eu não me sentia muito a vontade. Não me sentia pertencente aquele ambiente. Eu era muito taxada, sofria um pouquinho de bullying porque os gays, na época quando eu era mais nova, não me definia como uma mulher trans (porque) sempre tive uma imagem meio andrógina”, conta.

E, curiosamente, foi por meio do Rock – um estilo não tão usualmente identificado como sendo o preferencial entre LGBTs – que ela encontrou a liberdade necessária para começar a dar vazão a sua feminilidade. “Eu era rockeira, então vivia muito na questão do Rock que (me) dava uma liberdade de expressão, de maquiagem e roupas sem causar um choque. Foi na questão do rock que comecei a expressar minha feminilidade e transexualidade. Porque foi até uma forma de eu chegar na minha mãe e não, tipo assim, chocar logo. Porque quando eu chegava lá em casa com algum olho pintado de preto, um cabelo grande eu logo já pegava cantores de Rock e bandas e falava ‘tá vendo aqui, eles também têm cabelo grande, fulano também usa maquiagem e isso não faz deles gay’. Eu tinha um receio (de me revelar) por conta desses meus primos que quando foram descobertos, a família rachou”, explica ela sobre o porque do estilo musical ter servido como escudo nessa questão.

Mas daí em diante, conforme a questão foi ficando cada vez mais forte – e difícil de esconder – o que Dafne menos esperava aconteceu: num dado momento sua preferência por rapazes chegou aos ouvidos de sua mãe. Segundo ela, “naquela época, falaram que eu era gay porque era uma coisa mais fácil de alegar. Minha mãe me abraçou e chorou muito e falou assim: ‘vamos orar pra Deus te libertar’. E nisso aí eu fui me autocondenando”. Sentindo-se culpada, a jovem acreditava que precisava se libertar desse malefício e passou a frequentar a igreja como uma espécie de “salvação” para seu “problema”.

Na igreja essa questão de gostar de homem ou de outra mulher era coisa do capeta, uma coisa que era um espírito que estava te possuindo. Nem era considerada filha de Deus. Então eu ficava me questionando se não era filha de Deus, ‘será que eu sou filha do capeta? Mas tudo que eu peço a Deus Ele me dá. Como que é isso?’. Então eu ficava me automutilando. Eu ficava tipo assim evitando coisas que me levavam a tentação. Eu não via novelas. Teve uma época que eu fiquei praticamente maluca porque eu só via programas evangélicos, só ouvia rádios evangélicas, só ia pra igreja tentando me fechar. E eu pensava assim ‘se não posso ter prazer gostando de homem e eu não gosto de mulher, então eu sou assexuado. Eu vou entregar minha vida e meu sexo todo à Deus’. E nessa época também eu fiquei sem uma expectativa de vida e eu já tinha uns 15 anos”, recorda.

Até que num domingo derradeiro na tradicional televisão brasileira, ergue-se no Programa Sílvio Santos a até então onipresente modelo e atriz Roberta Close. Imediatamente Dafne se identifica com a história e peculiaridade daquela mulher – outrora taxada de hermafrodita (atualmente o termo caiu em desuso e usa-se intersexual) – e acredita ser como ela: alguém com características masculinas e femininas fundidas num corpo só. “Eu lembro disso muito bem. Então aquilo ali pra na época foi assim: “eu não sou gay”. Aí chegava os meus amigos gays e diziam que eu era travesti, mas a imagem que eu tinha das travestis era uma imagem muito ruim, era negativa. Então quando meus amigos brincavam dizendo ‘quando você crescer será travesti’ eu falava ‘tá repreendido, em nome do Senhor’. E nisso aí da Roberta Close, quando veio essa questão que eu nunca tinha ouvido falar de hermafrodita, eu pensei ‘ah então eu devo ser isso’. Então nas minhas orações pra Deus eu pedia ‘se eu sou hermafrodita então eu não sou contra Deus, essa é minha natureza. Eu tô com dois sexos e posso escolher’. Então eu ficava pra Deus pedindo o tempo todo que eu fosse hermafrodita. Eu pegava livros de Biologia que tinha a questão de corpo e anatomia e de pessoas que tinham tendência a serem hermafroditas (e buscava) alguns sinais que (me) pudesse levar a isso.  Com 15 anos eu falava que ia virar (menina), que minha mãe ia me levar no médico e ele ia falar ‘dona Fátima seu filho na verdade é hermafrodita e ele pode escolher’. Aí seria meu passe de mágica”, diz ela.

Só que na vida real as coisas não são tão mágicas assim e Dafne acabou entrando em depressão, porque “quando fui no médico fiquei esperando ouvir que era hermafrodita e nada de ouvir. Tive depressão e engordei muito por conta da frustração”. Porém a questão era cada vez mais latente e por mais que quisesse fugir disso, não conseguia. E mais uma vez o entretenimento foi o espelho, o ponto focal de referência para sua autodescoberta e autoafirmação. “Na época tinha aquela novela As Filhas da Mãe, com a Claudia Raia como Ramona, e aquilo também me despertou e eu disse: ‘gente sou eu’. Só que eu não tinha amigos. Meus amigos eram meus primos e eu só vivia com eles, minha mãe. Então eu não tinha diálogo. Não tinha acesso a computador e quando fui ter acesso já tinha meus 16 anos. E nisso aí eu vi a Ramona e falei ‘eu tenho que ser ela’ e foi com 20 anos (que comecei me hormonizar e me assumir). Eu já tava (sic) comprando roupas de menina, maquiagem, meu cabelo já estava enorme”.

Daí por diante, foi um pulo para abrir o jogo com sua mãe. “Assim, à princípio (me apresentei) como gay, mas com três dias eu falei que era trans. Porque logo também veio a questão da Ariadna, do Big Brother, e naquele momento com a Ariadna é que começou a falar da questão trans aqui no Brasil e gerou mídia na internet. Ela não se assustou muito, mas foi difícil pra ela entender. Porque depois que eu falei pra ela, como já tenho meus primos e eles são gays é mais fácil, só que aí eu expliquei que era diferente, que eu queria ser uma menina”. Mas a legitimação enquanto mulher é diária dentro de casa. “Aí hoje em dia, já realizada como mulher independente dos padrões, às vezes ela joga tudo isso na minha cara: ‘mas a sua amiga parece mais mulher que você’, ‘você não tem nada de mulher. Não sei como os homens gostam’. Ela quer que agrade ela, mas é quase impossível de agradar. Eu acho que ela faz isso por achar que eu não vou chegar nisso e é melhor eu viver e me aceitar como um homem. Porque eu tenho que viver como um gay”, afirma.

Transfobia

A experiência de uma pessoa trans, dificilmente, será percorrida sem as agruras que o estigma, o preconceito e a discriminação causam. Segundos dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) somente no primeiro semestre de 2018, foram assassinadas  86 travestis e transexuais, sendo estas, a maioria do gênero feminino, negras e prostitutas atuando na rua. Isso significa que crimes de ódio e outros tipos de violência motivados por transfobia são diárias e limita a vida de pessoas trans a 34 anos no Brasil, colocando o país em primeiro lugar no mundo nesse tipo de violência.

E Dafne tem conhecimento de causa sobre o assunto. “É, isso aí é muito complicado. Porque assim, os maiores números de mortes entre a população LGBT é de pessoas trans. Mas as pessoas esquecem também que as maiores taxas de suicídio também são de pessoas trans. E eu já passei por dois episódios de suicídio. Então acho que foi por causa desses dois episódios que minha mãe e minha irmã me acolherem de fato. Então minha mãe no princípio, entre aspas, me “acolheu” e não me expulsou de casa – até porque na época eu trabalhava, então dava um sustento lá em casa – mas minha irmã foi radicalmente contra essa situação. Achava que isso era sem vergonhice, putaria, frescura, que não era certo etc. E estimulava minha mãe para (me) expulsar de casa. Era horrível. E não sei se você sabe: São Gonçalo tem o maior índice do Brasil de população evangélica, de pessoas que se declaram evangélicas e mesmo aquelas que não frequentam, mas foram batizadas. E onde eu moro o que você mais vê é o crescimento de igrejas: três, quatro, cinco igrejas. A (Igreja) Universal ali reina. A igreja cumpre o movimento social. Então todo dia quando eu ando ali parece que é uma caça às bruxas. Eu fico muito amedrontada, com muito receio”, declara.

A partir dessa realidade, a gonçalense busca outros mecanismos possíveis para poder se “defender” de um achaque público. Segundo ela, a noite e a escuridão são suas maiores companheiras pois “chama menos atenção na rua”. Mas nem sempre dá certo. “Eu ainda sinto a noite, o escuro, como minha proteção. Às vezes eu demoro um pouco e me atraso nos compromissos à luz do dia porque esse momento tem muito movimento, tem muita locomoção de pessoas e eu tenho medo de não conseguir passar despercebida. (Prefiro a noite) porque passo despercebida ou porque tô ali, passam e me vêem como objeto de desejo. Uma das violências físicas foi a noite na questão de fazer programa. Até questão de ser estuprada, que é outro caso que não se fala, não se relata e é como se não existisse. E isso existe, é sim, faz parte da nossa vivência trans. As pessoas pensam ‘ah por vocês trabalharem com sexo, serem trans, todo tipo de sexo é aceitável’. Não é bem assim. Muitas vezes o que me fez parar de querer ir pra rua foi isso. São as violências de estupro, as violências de bater. Uma vez eu andando perto da pista, veio dois caras de moto e armados com metralhadora, eles fizeram questão de passar por perto (pra me assustar) e, tipo assim, tudo que eu faço é de autoproteção à minha vivência. E às vezes, como qualquer outra mulher, como uma mulher feminista dá vontade de eu ir pra rua peluda, sem querer me raspar. Sem passar nenhum tipo de maquiagem. Só que pra mim isso não é tão fácil como uma mulher cis(gênero) (que se identifica com o corpo que nasceu) que tem liberdade de poder ir pra rua sem maquiagem, despida de qualquer coisa. Porque pode ser que quando eu não estou com nada disso, fique mais gritante os meus traços masculinos. E nisso aí eu posso sofrer uma transfobia ou uma agressão ali na frente”.

Prostituição

Sim, por causa do desemprego se torna regular. Mas qual é a questão: hoje em dia, por eu ter um bom convívio com minha irmã e ter uma sobrinha de dois anos, minha irmã é totalmente radical com isso. Minha família sabe (que realiza programas) porque eu não escondo nada, todo mundo sabe. Tipo assim, eles no início recriminavam e minha mãe falava ‘você sabe que é violento’. Minha mãe sempre pregou a questão do medo. Só que foi (sic) passando os anos e eles foram vendo que mesmo sendo inteligente, tendo experiência e eu não conseguindo emprego viram que não é questão de escolha: eu realmente preciso daquilo”.

Essas duras palavras são ditas com a firmeza de quem resiste. De quem (sobre)vive. E de quem com sinceridade expõe que outro motivo também a leva para a rua. “eu sou uma pessoa carente. Acho que toda a população LGBT é carente. É mito falar que a gente não tem carência. A gente tem que esconder às vezes a nossa sexualidade que é muito aflorada, a questão de ser barraqueira, de usar drogras etc. Esconder a nossa sensibilidade, as nossas carências e a gente tem muito necessidade de atenção e carência. E onde eu moro em SG tudo é da igreja. Já me relacionei até com pastor da igreja evangélica. Eu vou hoje raramente (fazer programa) por causa da minha irmã, porque eu tenho uma sobrinha de dois aninhos, e tenho medo de cair nos ouvidos dela, porque eu sou tia. Eu sou a tia dela o tempo todo. Tudo que eu faço ela faz, brinco com ela. Quando eu tô com ela até me chama de mãe Dafne. Então eu fico pensando”, reflete.

Relacionamentos e Sexo

Hipersexualização faz parte de sua vivência e a afetividade é algo raro entre as pessoas trans. Ser vista como objeto sexual é um carma que Dafne reconhece e lamenta existir entre homens que se relacionam com mulheres trans. Questionadora, ela não deixa por menos, questiona os motivos e compartilha de maneira franca suas apreensões sobre isso.

“Essa questão também é engraçada. Eu já reparei que em aplicativos que se fala que é pra namoro, e até aplicativo de hétero ou LGBT, os caras falam que quer namoro mas não quer namoro. Sempre é sexo. Eu mesma fico inculcada quem são esses homens que querem ficar comigo.  O que leva eles a ficar comigo? A maioria dos caras que ficam comigo são caras casados e muitas vezes eles não escondem. Pega o celular e tem a foto da mulher dele, às vezes mostram e eu vejo uma mulher linda. Um corpo perfeito que até eu penso que se fosse homem não trairia ela”, revela.

E continua: “ eles falam que o sexo com a trans é melhor. É mais visceral, mais quente, (tem) mais desejo. Porque normalmente eles falam que com as mulheres eles gostam delas, da periquita (sic) só que parece que o sexo é meio “planejado”. É negociado tipo assim “hoje eu vou dar o rabo”,”hoje eu não vou” por exemplo. E com a gente não existe isso. Porque vê que as mulheres na maioria fazem pra agradar. Tipo assim, “minha namorada dá o rabo, mas ela reclama”. Ou então “minha mulher chupa porra, mas tem nojo”. E quando eles vêm ate a gente eles falam que a gente é muito puta, que não tem frescura. Me sinto mais como um objeto (sexual). Num relacionamento, o que acontece, eu não posso generalizar, mas na minha vivência e de outras amigas trans que a gente coleta informações eu fico reparando que, no final das contas, não existe “romance”. Esse padrão hetero romântico normativo que você vai encontrar o seu parceiro, vai pro shopping, vai pro cinema, isso aí não existe. O negócio normalmente na população trans que eu reparo é que no primeiro ato, o primeiro contato nosso vai logo pelo sexo. E se a gente faz ou garantimos um bom sexo, aí sim, abre a oportunidade de ele enxergar a gente com outros olhos. Então eu vejo que é mais normalmente isso. (O sexo) é porta de entrada para outros questões. Às vezes pra conseguir um beijo na boca é incrível. Eles chupam teu rabo, faz o beijo grego, chupam pau, chupam tudo mas não querem beijo na boca. Curioso né. Uns relatam que porque não enxergam a gente como mulher, acham que é muito afeto e como não nos veem como mulher isso não rola. E outros falam que não podem também porque tem namorada e beijo só com namorada e com a gente é só pau, cu, gozar e rala”, relata com veemência.

Ainda sobre o assunto, a jovem revela que sempre preza pelo uso do preservativo em suas relações ocasionais e, mesmo com a relutância de muitos rapazes em aderirem a camisinha, com um pouco de erotização e sabedoria ela consegue convencê-los na hora do ato. “Sempre (usei camisinha). Sempre fiz questão de estar por dentro dos métodos. Tudo que pudesse me prevenir, me proteger e me dar prazer eu buscava e tava por dentro. Então tipo assim, normalmente, muitos caras reclamam da camisinha porque não são lubrificadas, perdem a sensibilidade etc. Então, no início, eu sempre fazia questão de eu ir na farmácia – porque esses caras nunca andam com camisinha- sem vergonha nenhuma e fazia questão de procurar as novidades das camisinhas. Então aquelas camisinhas que esquentam, que tem texturação, que é mais fina e tal eu ia comprando e na hora, quando o cara vinha com o papo de ‘quando tô com camisinha não sinto muito a temperatura’, então toma isso aqui. E eu não colocava tipo uma obrigação, era como se fosse um acessório pra mim e pra ele. Erotizava (a camisinha). Só que eu sabia falar de um jeito pra ele colocar aquela camisinha. Porque eu vejo (que) muitas mulheres cis mandam os homens abrirem a camisinha, mas muitos não sabem manusear a camisinha. E as meninas trans também com pressa não querem abrir a camisinha pra dar pro cara e o cara não sabe. E muitas vezes, já reparei também, mais de 50% num programa (as meninas) ficam só no boquete. Porque boquete é facilidade, é prático, rápido e dá prazer pra eles. Então tipo assim, estão com pressa, o boquete é mais barato, eles não estão com camisinha, não estão afim de abrir a camisinha, em “qualquer lugar” você pode fazer boquete. Então no final das contas, seu eu fiz 10 programas numa noite, seis vão ser boquete e só quatro vão ser sexo”, analisa.

PEP e PrEP

Com o advento de novas tecnologias de prevenção, algumas possibilidades tornaram-se mais eficazes no combate aos riscos pelos quais muitas mulheres trans, profissionais do sexo, homossexuais e homens que fazem sexo com homens (HSH) e outros grupos vulnerabilizados ficam expostos, como o HIV e a AIDS. Dois deles hoje são mais comumente conhecidos: a PEP (Profilaxia pós-exposição), disponível no Brasil desde o fim dos anos 90, e recentemente a PrEP (Profilaxia pré-exposição) ainda disponível somente para alguns perfis. Para Dafne, os métodos – especialmente a PrEP – são ótimos dispositivos para uma vida sexual mais saudável.

Eu uso a PrEP (Profilaxia Pré-exposição) e, tipo assim, ela dá um poder libertador, uma independência sexual muito grande. Principalmente pra minha pessoa que tinha uma neura de pegar doença. Claro que a PrEP só protege contra o HIV, as outras não. As outras (IST) tem cura. São menos agravantes. E tipo assim, até na questão mesmo da gente fazer programa a PrEP ajuda. Eu já tô (usando PrEP) 1 ano e dois meses. Pra mim ela trouxe muito benefício”, ressalta.

HIV/AIDS

Apesar de todos os avanços conquistados na questão da epidemia de AIDS no Brasil, os números mais recentes dos boletins epidemiológicos atestam um recrudescimento das taxas, principalmente entre a população mais jovem. Rumando para a quarta década da epidemia, os desafios ainda continuam visíveis para toda a comunidade científica e movimento social. Questionada sobre o porque as pessoas continuam se infectando, mesmo com tanta informação e novas tecnologias disponíveis, Dafne é categórica.

“Quando você não vivencia, não tem uma lembrança do medo, do que foi a epidemia de AIDS. Na época (do boom da AIDS) as pessoas viam de perto seus parentes, seus amigos, vizinhos e artistas morrendo. Eu acho que por você não ter essa vivência a juventude de hoje vai vendo esperanças de cura pra AIDS. E os avanços e melhorias dos coquetéis faz com que as pessoas deixem de lado o medo, a preocupação de se preservar”, acredita. E categoriza: “então é como se fosse mais uma coisa. Não é mais o fim do mundo. Não é algo mais agravante. E a população jovem hoje em dia, como eu tô falando, como tá muito avançado tem jovens que acham que nunca vão pegar nenhum tipo de doença. Os jovens gostam de arriscar, de aventurar. Eles não vivenciaram de perto o medo. Só que toda a juventude sabe o grau que foi os anos 80. Até hoje muitas pessoas lembram do Cazuza, do Freddy Mercury, dos outros artistas que morreram. Mas levam pra um lado meio poético”, contemporiza.

 

Construção do Guia de Sexo Mais Seguro para Mulheres Trans

Envolvida com o movimento social, na retomada de ações e intervenções que retomem o protagonismo da AIDS como política pública – principalmente para pessoas trans, jovens e outros – Dafne Kora ressalta que uma das grandes iniciativas que teve a oportunidade e o prazer de participar foi da construção do Guia de Sexo Mais Seguro para Mulheres Trans, produzido na Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, via Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens.

O material, com previsão de lançamento para o primeiro semestre de 2019, tem o objetivo de elucidar as práticas sexuais dessa população, bem como evidenciar as melhoras opções e possibilidades para se prevenir de acordo com sua vida sexual, o perigo das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s) e do HIV/AIDS. Tudo dentro de uma linguagem acessível, popular e com referências ao Pajubá – dialeto com expressões tipicamente faladas por travestis, transexuais e LGB’s (Lésbicas, Gays e Bissexuais).

A experiência pra mim foi ótima. Não é questão só da minha experiência, eu acho que a experiência maior é a de passar e como conseguir alcançar, de fato, o público alvo. Porque o movimento não pode ficar parado. Eu vi anos que o movimento LGBT ficou parado na pauta trans. Quando surgia uma coisinha pra pauta trans, rolava um burburinho ali, mas logo depois deixava cair e se acomodava. Não tinha questão de gritar, buscar mais, informar mais. E hoje em dia eu vejo como a juventude está com sede de informação, de luta, de militância, de empoderamento. E isso nós que viemos de uma geração – eu não sou tão velha – anterior temos que caminhar juntos e temos que mostrar pra eles que a gente não se acomodou, não vai se acomodar. Que sempre queremos mais, que sempre estamos na ativa. Porque se a gente não tá ativo nossos direitos são esquecidos, nossos direitos são apagados. Silenciados e apagados.

Então o projeto Guia de Sexo Mais Seguro só faz a gente ter mais independência da nossa saúde, com mais autonomia e até mesmo de preservar a nossa população trans para não cair na furada. Nossa expectativa de vida é de só 34 anos e a gente precisa dar um tapa na sociedade”, pontua.

Importância do Projeto Diversidade

Quando não tem a família pra dar o suporte as ONGs tem o papel de poder te auxiliar nos momentos mais difíceis. Poder te informar, te empoderar, na internet você fica perdido porque tem muitas notícias falsas. E nas ONGs você, de fato, tem um embasamento que vai entender. Porque hoje em dias as pessoas estão muito descrentes, porque é tanta corrupção, tanta coisa errada que as pessoas pensam que até as ONGs que deveriam ajudar pode ser uma safada que não quer ajudar.  Quando tem uma ONG que pode sempre estar ajudando, que está de portas abertas, e mostrando que a qualquer momento você pode contar com uma ajuda, seja psicológico, emocional, financeiro você de fato consegue enxergar não só o seu mundo, mas uma coisa mais abrangente. Você consegue enxergar algo a mais e consegue também perceber que você achava que estava sozinho, mas dentro de uma ONG pode fazer algo maior”, discursa ela quando perguntada sobre de que maneira vê a atuação do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens através de suas ações.

Futuro

Num país assassino, que sequer oportuniza direitos iguais e o direito de viver para todos e todas, Dafne inicia sua resposta com o principal para sonhar com o futuro. “Me ver ainda viva, em primeiro lugar, com saúde”. Em seguida divide seus sonhos e projetos ainda não alcançados. “Eu estava há 10 anos afastada de estudos e estou entrando agora de novo nessa correria. Estou, praticamente, um ano estudando pra fazer a prova do ENEM e conseguir de fato entrar na faculdade que sempre foi um desejo que eu tinha. É um estímulo você acreditar que pode ser o que você quiser. Você pode construir uma carreira. E eu não tinha esse estímulo 10 anos atrás. Então muitos sonhos meus que eu ficava colocando no papel eu pensava que ia morrer junto, nunca ia ser realizado, não tenho como realizar. Só que hoje em dia eu já sei que posso bater de frente porque sei que sou uma mulher e bater de frente meus projetos”.

E completa: “agora eu estou pensando em fazer Geografia, que é uma matéria que eu adoro, sempre gostei e acho que isso é bom porque eu quero mais pra pesquisa, antropológica, comportamento da sociedade, estática e tal. Eu tô querendo pegar mais esse lado. Mais pra frente, se der, com um dinheirinho melhor (quero) fazer uma faculdade de Arquitetura. E eu creio também conseguir de fato fazer uma ONG ali em São Gonçalo, uma ONG forte. E até agora eu não consegui. Mas tenho fé que vou conseguir.

 

Texto: Jean Pierry Oliveira

 

%d blogueiros gostam disto: