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“Hoje eu me defino como bicha, não por ato político, (mas) por resistência política”, diz jovem afro-indígena do Pará (2017)


Jovem bicha afro-indígena não binário nortista. Muito grande e complexo? Talvez. Mas é na essência e no (res)significado de cada um desses termos que o jovem universitário de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Andrey Chagas encontra a resistência – política e social – necessária para o seu empoderamento. Natural de Castanhal, no Pará, foi criado na maior parte de sua vida pela sua avó materna uma vez que sua mãe deslocou-se quando tinha apenas três anos para tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro. Mal sabia ele que, tempos depois, ele faria o mesmo caminho. Porém, sob estradas diferentes.

Aos 25 anos, atualmente, Chagas mora numa comunidade (que no Pará só conhecia como periferia) em Santa Teresa, no morro do Coroado, “uma comunidade que é composta basicamente por pessoas do Nordeste” e que lhe impõe desafios diários: tanto pela cultura local quanto pela “impacto” que seu “corpo-vivência” causa nos demais. Politizado e com opiniões que dividem-se entre o conhecimento adquirido na academia e o conhecimento das experiências que a vida lhe impôs, na entrevista abaixo, o estudante relata como a descoberta de sua sexualidade relaciona-se com a sua ancestralidade e o reconecta com suas raízes. Além disso, fala sobre o corpo como instrumentalização política, vida no RJ, movimentos sociais, a teoria queer, família, relacionamentos, prevenção entre outros.

Vinda para o Rio de Janeiro

Aqui no Rio eu tô (sic), atualmente, tem três anos e quando eu vim pro Rio de Janeiro eu morei no bairro de Laranjeiras e eu estou há seis meses morando agora no Coroado, em cima de Santa Teresa. (Me mudei) principalmente por conta do preço de aluguel, eu moro hoje em dia num flat alugado, então, a diferença na disparidade dos preços foi o principal fator que fez eu me mudar. Eu tenho uma formação em Administração e assim que eu terminei a minha graduação, a minha mãe mora aqui por muito tempo, então a minha vinda pra cá coincide com a vida dela aqui no Rio de Janeiro – mas eu não moro com minha mãe. A minha vinda mesmo pro RJ foi relacionado a uma perspectiva de questão profissional, de ascensão profissional, pelos limites que o estado do Pará – por si só – ainda tem. Eu morei esse tempo todo lá, aí eu me formo em Administração e venho para o Rio de Janeiro fazer esse “intercâmbio”. Não é um intercâmbio, porque eu vim pra cá atrás de tentar arranjar uma carreira profissional, dentro da Administração ou qualquer área. Pelo fato de aqui ser uma capital que ferve de negócios e por aqui está concentrada as riquezas do país, então aqui as oportunidades de desenvolvimento são bem maiores do que no Norte, no Pará, no Nordeste. As oportunidades tanto em questão de negócios, pessoal, cultural, intelectual tá (sic) centrado ainda – infelizmente – todo aqui no Sudeste. Não que no Pará não tenha desenvolvimento nessas áreas, mas em menor proporção do que se dá aqui. Tem uma diferença em todos os níveis.

Nas primeiras semanas foi muito tortuoso no sentido de estar só, de não ter ninguém, de adaptação. De chegar o fim de semana e você saber que não vai mais encontrar os seus amigos, que sua família não vai estar mais com você, então isso também é uma barreira psicológica. Me abalou no sentido de me ver só, mas de voltar não. Mas depois de fazer um ano eu sentei pra fazer ver se eu tinha que ficar ou tinha que voltar. Pra mim soava tipo que se eu voltasse depois de um ano, é como se eu tivesse passando férias. Eu não queria que se voltasse pra minha avó soasse isso pra ela, de que eu estava no Rio de Janeiro passando férias e estava voltando. Então aqui um dos processos que foi muito importante também para eu estar aqui fortalecido foram os encontros que eu acabo tendo com outras figuras do Pará. Então hoje eu tenho uma rede de contatos de afetividades e de amigos que são do Pará, a gente criou uma rede de afetividades e isso é muito importante porque são figuras que, querendo ou não, você se identifica e então elas sabem mais ou menos da sua vivência. Vivência é uma coisa meio subjetiva, mas que elas sabem como é que as coisas funcionam no seu território. Então acaba pegando certos apegos sentimentais.”

Choque Cultural

“A principal diferença do impacto que eu senti é em relação à cultura mesmo. Eu vivia numa cultura que era completamente diferente da cultura do Rio de Janeiro em relação a culinária, em relação ao lazer, em relação a questão de artes (teatro, cinema) e até de movimentos sociais. Acho que esse foi um dos principais choques, não choques, mas um dos principais abismos que eu vi que existia. O levante dos movimentos sociais aqui se dá muito rápido, mas também é muito rápido que eles se desfazem. (Sempre quis vir para o RJ) Teve por causa da minha mãe, porque se minha mãe não morasse aqui eu não teria saído do Pará. Tem essa questão. Eu só vim pra cá porque eu tinha um suporte pra eu vir pra cá. Tenho exemplos de amigos que vieram pra cá, vieram só, tentaram, mas depois voltaram. Eu vir pro RJ surge assim que eu me formo e minha mãe faz o convite pra mim vir pro Rio de Janeiro buscar algo melhor, por ver que eu não teria uma oportunidade de ganhar um desenvolvimento lá como se daria aqui. Só que aí eu chego no Rio de Janeiro e mudo totalmente o meu foco.

Principalmente porque quando eu chego no Rio de Janeiro eu entro em uma outra faculdade, eu passo no vestibular pra fazer Ciências da Natureza que é um curso de formação de professores pra nível básico, na Unirio. Aí eu entro e descubro todo um movimento acadêmico acontecendo, todo um outro debate circulando dentro dessas construções na academia. Então eu entro, fico um semestre, faço o ENEM de novo e aí eu passo pra UFRJ, aí que eu vou fazer a segunda graduação de verdade que é Relações Internacionais. Mas é nesse um semestre que acontece pra mim toda uma mudança de foco, tanto profissional quanto de militância. Não tem essa cultura disseminada como tem aqui, em São Paulo, no eixo Sudeste. Não existe essa cultura disseminada ainda no Pará, tá (sic) acontecendo aos poucos, essa cultura de se criar coletivos, de se criar movimentos sociais mesmo em prol de causas. E até pelo fato de cenário aqui no RJ ele é um palco nacional”.

Família

“Teve e não teve uma boa reação por querer vir pro RJ, foi mais por causa da minha avó por uma questão de afetividade mesmo né (sic), porque foi ela que me criou. Eu tenho mais dois irmãos, que são mais velhos do que eu, uma irmã e um irmão, mas eles continuam lá. Eu fui o único que saiu desse rolê muito novo. Eu tinha 22 anos quando eu vim pro Rio de Janeiro e aí minha avó teve um enfrentamento, porque ela queria e não queria. Por um lado ela sabia a importância da minha vinda pro Rio que naquele momento era pra buscar uma carreira profissional, me especializar porque esse era o único objetivo também que eu tinha em mente, porque eu vim pra cá pra também tentar fazer uma especialização na minha área”.

Relacionamento com a Mãe

“Assim, ela veio pra cá quando eu tinha três anos de idade então, às vezes, ela ia no Pará em determinados períodos. Então às vezes ia de ano em ano, de dois em dois anos, quando dava. Mas assim, eu só tive contato por telefone mas não é a mesma coisa de uma mãe estar presente, afetivamente, ali com você. Eu tenho pra mim hoje que o nosso afeto em relação ao desenvolvimento pessoal eu atribuo muito mais a minha avó do que a minha mãe. Mas sempre foi uma coisa muito tranqüila, acho que também por causa dessa distância então eu acho que se hoje eu for considerar minha mãe, como se diz no popular que mãe é quem cuida, quem cria, então é minha avó. Mas aí quando eu venho pro Rio de Janeiro, como eu posso dizer, tem uma coisa esvaziada de sentimento. Não de sentimento, mas de relação e aí acaba que eu e minha mãe a gente acaba e vai tentando se conhecer, não há grandes choques. Às vezes eu penso que ela não entra em determinados assuntos ou temáticas de discussão comigo, por exemplo, em questões de sexualidade porque ela nunca viveu comigo, então eu fico imaginado isso por exemplo que é um dos fatores que disparam nela pra não entrar nesse determinado assunto. Então hoje eu colocaria meu relacionamento com a minha mãe como muito tranqüilo. Então nesse sentido de cobrança, em relação ao passado, nunca houve. Até porque também eu sou filho de mãe solteira, então eu também nunca quis saber quem era a figura de meu pai. Pra mim nunca foi (um problema), mas já pra minha irmã isso foi. Ela teve uma reação totalmente diferente da minha. Ela sentiu falta, tanto que depois ela veio cobrar, mas pra mim eu nunca quis e não interessa, pra mim não faz falta realmente uma figura paterna de pai”.

Sexualidade

“Assim, primeiro, nunca teve um diálogo com a minha família sobre sexualidade em relação a mim. Nunca teve, talvez e um dos principais fatores que eu coloco de não haver uma discussão sobre sexualidade foi pelas responsabilidades que eu tive quando eu era muito novo. Eu fui demandado de muita responsabilidade desde pequeno então, tipo, desde pequeno minha avó me ensinou a cozinhar, a cuidar da casa, a cuidar dos meus primos que eram mais novos. Minha avó cuidou de mim mais meus dois irmãos e mais três netos, então eram seis crianças numa casa. Então tipo, como eu era mais velho em relação aos outros três primos eu tomava conta deles. E aí nesse sentido eu ainda tinha que fazer as tarefas de casa, mas pra mim foi meio que uma via de duas mãos: ao mesmo tempo em que eu criei muita responsabilidade, eu alcancei muita liberdade. Pra mim a responsabilidade veio carregada de muita liberdade. Por eu ter essas responsabilidades eu conseguia ter essa liberdade de poder ir pra casa de amigos, brincar na rua. Aí quando eu fui alcançando a adolescência eu tive a liberdade de ir pra festas quando eu fiz 17 anos, então essas pequenas coisas foram acontecendo.

E pra mim esse peso do compromisso da responsabilidade foi uma das questões de eu não ser questionado sobre a sexualidade. E pra mim também minha família sempre(…) porque assim, eu também divido a minha sexualidade  em dois momentos: eu estando no Pará e eu estando no Rio de Janeiro. No Pará, assim, minha família sempre quis tapar o sol com a peneira, é isso. Não sei, eu também não gosto de generalizar nada, mas no sentido de que “eu aceito desde que não seja afetado” ou “eu aceito desde que não traga um namorado pra dentro de casa ou que nunca converso com um namoradinho aqui na minha frente”. Então com a minha família sempre foi isso assim. Eu tive muitas responsabilidades, nunca fui questionado sobre minha sexualidade, então quando teve o despertar de minha sexualidade e que eu tive realmente (certeza) e eu acho que foi com uns 15, 16 anos de sentir atração e de me relacionar ativamente sexualmente, no sentido de ter relações sexuais mesmo.

Na verdade, por um bom tempo no Pará todo, minha vivência no Pará toda, é numa vivência de dupla face. Eu sentia falta de ter uma liberdade no sentido de querer me vestir na forma que eu queria me vestir, de me portar da forma que eu queria me portar, de ir pra tal lugar que eu ia me sentir confortável, até porque na minha cidade só tinha um lugar LGBT pra ir e tinha na época uma fama de má reputação, de quem ia pra lá não prestava. Então eu acabei criando essa dupla face de me comportar conforme a minha família queria pra eu ter acesso a determinados lugares, determinadas liberdades. Então nesse sentido eu freqüentava muita festa de heterossexuais, me vestia conforme minha família queria, mas no fundo, no fundo, eu queria romper com essas questões. Acho que o único problema que eu tive com relação a minha sexualidade foi o medo: o medo de ser pego, o medo de alguém descobrir. Porque pra mim minha família sempre soube que eu era gay, mas eu tinha medo dela descobrir, de me ver com outro homem. E meus amigos mesmo eu morria de medo, eu não gostava de me assumir. Eu só me assumi mesmo como gay no terceiro ano do ensino médio quando eu já estava indo pra faculdade, porque o meu medo era reprovação. E aí, de novo, a reprovação tangendo o caminho da solidão.

(Era) Muito (difícil ser gay no Pará), tanto que um dos motivos de eu não freqüentar lugares LGBT’s na minha cidade era de não querer ser visto porque era uma cidade pequena. Você ser visto, era você ser visado, é um carimbo que a sociedade vai colocar na sua cabeça: aquela pessoa foi vista em determinado lugar, portanto, ela é gay. E até porque a cidade é pequena e os boatos correm muito rápidos. Então meu medo era esse de ser pego e ser “carimbado”, no sentido de “o gay”. Meu medo mesmo era a reprovação, acho que foi o maior obstáculo mesmo que eu tive e que quando eu fui adolescente, tipo ensino médio, foi pior ainda porque eu já tinha noção das coisas, já tinha noção de muita coisa, e eu já tava nesse momento de me conter. Essa reprovação ainda tava me perseguindo, então pra mim no momento da adolescência, do ensino médio foi o pior em relação a esse debate. Em relação a sexualidade e medo. Medo de reprovação social. E aí quando eu chego no RJ, que eu entro na universidade e eu vejo que tem outras figuras gays, outras figuras lésbicas, aí outras figuras trans e aí eu vejo que isso é possível, outro fator que colabora com o que eu sou hoje é também o fato de eu estar longe do Pará. De eu não ser mais visto e eles não verem. Um dos principais fatores que faz eu ser o Andrey que eu sou aqui no RJ, é principalmente por causa da leitura. Então eu vou ler muita coisa de gênero, vou ler muita coisa de sexualidade que até então nunca tinha lido na minha vida e aí eu vou começar a me descobrir e a me identificar em determinados textos. Então, eu vou conseguir absorver muita coisa na universidade, então não vou dizer que só a universidade me proporcionou isso, mas as figuras que eu conheci na universidade que me apresentam essas literaturas de gênero e sexualidade, são realmente as questões que alavancam e cutuca esse ser que queria sair. Que era realmente quem eu queria ser, que era realmente a forma como eu queria me vestir, porque até então no Pará eu fui me escondendo e ainda era julgada por determinadas pessoas como aquela bicha afeminada, com traços femininos e tal. E isso pra mim não era um terror, passar na rua e alguém gritar ou me xingar, eu não ligo, mas no fundo, no fundo é muito recorrente aqui no RJ ainda”.

Identidade Não-Binária

“Assim, primeiro, eu tenho muito problema com a palavra Queer. Eu entendo totalmente, já estudei pra caralho o termo queer, e quando eu me deparei com a literatura queer eu falei “nossa, eu sou queer. Eu descobri quem eu sou”, só que por trás eu fui conhecendo várias figuras do rolê LGBT que já estavam muito frenéticas estudando isso e quando eu tenho acesso a essas discussões, eu meio que abandono todas essas questões por algumas oposições que eu acabo tendo a própria teoria né. Porque hoje em dia a teoria queer ela é reformulada de uma certa forma, ela não tem mais aquele caráter de um grupo de jovens negros gays quando tudo aconteceu. Então seriam aquelas bichas que já estavam agindo, especialmente as bichas pretas dos EUA, que já estavam agindo de forma política a ressignificar essa temática do queer. Então até nesse momento eu era queer. Quando pra mim o movimento começa a ter uma nova cara que é, principalmente, em relação a vestimenta eu me afasto desse movimento. Pra mim, não que perca sentido, tem sentido para aquelas pessoas, mas para mim não faz mais sentido pra eu estar me rotulando e me definir enquanto pessoa queer. E até mesmo porque o queer ele se torna um gênero, ele não se torna mais uma expressão de sexualidade, não mais meio que um comportamento. É mais uma questão de gênero e aí é um lugar que pra mim não se encaixa. Hoje eu me defino como bicha, acho que muito pelo caráter da teoria queer no começo, que é mais (um posicionamento) político do que corporal e comportamental. Pra mim é muito mais político porque quando você é gay, jovem e afeminado você é a figura bicha, você é a figura viado, você é a figura afeminada. Então eu tenho uma consciência do que isso tudo era, pejorativamente e socialmente, e eu assumi isso e pra mim é mais um posicionamento político do que mesmo de questão sexual. Então hoje eu me defino como bicha, não por ato político, por resistência política de esvaziar toda essa questão política-social atribuída ao meu corpo, abraçar essa questão pejorativa e ressignificar tudo isso de forma a lutar por um espaço de sobrevivência.

Mas aí, um outro momento em que eu me pego me definindo, é bicha não binária. Que é também uma vertente do movimento queer de qualquer forma, porque é um movimento que transita entre gêneros, que não se identifica como gênero, mas se você for botar na mesa existem outros gêneros “gender fluid” que também está em transição. Mas eu coloco gênero e, hoje, como as pessoas me vêem da forma como eu me visto, eu sou essa bicha não binária. Que é aquela pessoa que, eu tenho um gênero biologicamente falando, mas eu não me prendo as questões políticas que foram atribuídas a esse gênero. Essas construções sociais que foram atribuídas para esse gênero. Tipo, a mulher tem que usar saia, homem só tem que usar calça. Homem tem que gostar de azul, mulher tem que gostar de rosa. Pra mim são construções sociais pra atribuir a determinados gêneros pra construir aí uma sociedade que é onde a gente vive heterocentrada. Então eu me identifico hoje como bicha não binária, que vem dessa questão de política, de atuação, de ativismo, de quem eu sou e que foi atribuído pra mim antes de eu ser bicha, porque eu já era bicha porque me falaram que eu era bicha, e não binária porque eu também realmente depois de um tempo eu fui ver que era isso que eu queria ser quando eu estava lá no Pará me escondendo, quando eu cheguei aqui eu ainda estava me escondendo, porque “ah eu tenho que me vestir assim, porque só assim que eu vou ser aceito, eu tenho que colocar uma calça social, uma camisa social”. Lógico que, eu sei que infelizmente, socialmente falando, em determinados momentos eu vou ter que me utilizar desses mecanismos porque, infelizmente, é assim que a sociedade ainda funciona.

E aí uma outra questão também – são várias questões – mas que faz eu ser essa figura que você falou que eu sou hoje é uma recuperação, principalmente, acho que aí é uma questão muito mais forte que é a minha relação identitária. E eu também só consegui ver isso saindo do Pará. O Pará é um território que ninguém quer ser preto, que ninguém quer ser índio, o Pará é um lugar que todo mundo quer ser pardo, todo mundo quer ser mestiço e eu, por exemplo, não gosto da construção que foi feito em cima de ser mestiço. Então isso é um processo bem mais violento pra mim, no sentido de recuperação identitária, eu tive que sair e ter um olhar de fora pra dentro. Então eu saio do Pará, eu olho pra quem eu era, como é que se configurou o Pará e aí é assim que eu vou me enxergar como bicha não binária afro-indígena”.

Bixa Não Binária Afro-indígena na academia e na comunidade

“Os dois tem enfrentamentos, porque na academia pra mim rolou uma deslegitimação. Tudo que eu falo, eu tenho que reforçar com embasamento teórico, pras pessoas terem certeza daquilo. Então rola muito. Pra mim o enfrentamento maior, são vários enfrentamentos, mas o maior pra mim é ser deslegitimado na minha fala, principalmente, na minha fala e na minha escrita. Mas outros enfrentamentos são justamente em relação a eles estarem na universidade. Eu estou num lugar que é super elitista, eu não sou fluente em inglês, tenho pouquíssimo conhecimento em inglês e aí você entra num curso que já requer que você fale inglês. Então todos esses mecanismos pra mim são mecanismos pra fazer com que determinados corpos abandonem esses espaços. Não é feito à toa, não é feito “ah eu vou colocar aqui inglês porque todo mundo sabe inglês”, não. Foi construído assim porque eles sabem que determinados corpos não vão alcançar aquilo. Podem alcançar com muito perrengue que eu e vários amigos estamos fazendo mas quando eu ando, por exemplo, no campus universitário eu sou afligido violentamente por milhares de olhares. E de novo, uma universidade como um campo que não foi construído pra determinados tipos de corpos estarem habitando aquilo ali. Na universidade, na UFRJ em si, eu coloco como preconceito porque olhar, dar risadas, cochichos, pra mim é sinônimo de intolerância e pra mim é sim sinônimo de preconceito. Porque assim eu vou passar, a pessoa vai rir, então pra mim é sim formas minuciosas de discriminações que vão acontecendo.

E na comunidade que eu moro agora, faz seis meses, no Coroado pra mim é um risco. É um risco, é um desafio porque no Coroado ele é uma comunidade que ela é composta basicamente por pessoas do Nordeste e aí é um outro fundamento. Então, da saída do portão de casa, que eu vou pegar ônibus e que eu vou entrar em casa são olhares, são risadas, mas que pra mim qualquer rua é perigosa. Lógico que em determinados lugares eu vou estar mais propício à violência do que outros, a gente tem que fala isso. Na Zona Sul eu corro o risco de tomar uma pedrada, sei lá, ser perseguido. Mas na comunidade existem outros códigos, outras linguagens e eu não conheço essa linguagem. Eu não sou do Rio de Janeiro. A configuração de favela no RJ é diferente da configuração de periferia no Pará. A gente não utiliza a palavra favela ou comunidade, porque favela e comunidade no Pará remete a Rio de Janeiro. Pra gente é centro e periferia. Então é totalmente diferente e é totalmente diferente porque eu já vi outras figuras de gays lá do Coroado, mas é isso: eles já nasceram lá. O processo dele de vivência com a comunidade é totalmente de mim que acabei de chegar e sou visado a todo o momento. Eu estou há seis meses e há seis meses as pessoas sempre param, estão conversando e param pra eu passar. É quase uma atração, uma sátira né. É um grande circo passando, é isso né, viram os pescoços até eu entrar na vila onde eu moro e desaparecer pra dentro. Lógico que, eu tenho um cuidado redobrado quando eu saio de autovigilância constante porque eu não sei de onde pode vir o ataque. Não que venha, mas a gente tem que estar preparado. Porque, infelizmente, a sociedade é LGBTfóbica. Mas hoje em dia eu classifico bem mais tranqüilo, mas tem um outro fator pra mim que eu coloco como destaque que é do que foi construído sobre o público gay. De ser uma figura que dá o cu pra mim, por exemplo, é nesse sentido”.

Descoberta da Vivência Afro-Indígena

“Pra mim isso é muito recente feita de sei lá, um ano de identificação como afro-indígena e aí vem muito do processo de encontrar figuras do Pará e ver que a gente, de uma certa forma, tá (sic) com as mesmas questões atravessadas no sentido de identidade racial. E aí, por exemplo, eu conversando com uma amiga minha que é do RJ eu falei pra ela: se eu me identificar como negro tem uma questão aí muito de regionalidade. O Pará vai me ver como negro. Aqui no RJ pode ser que em alguns momentos eles não me vejam como negro, que acontece muito dentro de coletivos, por exemplo. Tem coletivos que não aceitam determinados tons de pele, então aí tem também o outro lado indígena. Aí isso é um problema pra mim que é: será que eu sou negro? Será que realmente o Andrey é negro? E aí conhecendo essas outras figuras do Pará que também estão morando aqui, que também estão fazendo seus cortes e suas vivências e também tem os mesmos sentimentos que eu, eu vejo que isso não é um problema só meu. Isso é um problema de apagamento histórico de nossa região. Aí quando eu fico com todas essa dúvidas, esses questionamentos, eu vou começar a ler, vou começar a procurar. todas essa dúvidas, esses questionamentos, eu vou começar a ler, vou começar a procurar. Então um dos materiais que eu encontro é uma entrevista, por exemplo, do Norte e Nordeste onde a entrevistadora sai perguntando as pessoas o que elas são. E aí, tipo assim, claramente você vê na leitura visual que as pessoas são negras e se afirmando como pardas. E é isso né (sic) . São esses processos de vivência, de violência e embranquecimento no Pará, onde infelizmente o Norte e Nordeste ainda enfrentam e estão enfrentando. É o que está acontecendo agora e ainda tem esse processo de duvidar.

Em várias situações as pessoas chegaram a me perguntar se eu era colombiano, se eu era peruano, se eu era de um outro país por causa dos meus traços dessa descendência indígena. Mas nunca, nunca, ninguém me perguntou se eu era indígena ou se eu era do Norte do Brasil, por exemplo. E aí eu comecei a ver que isso também é um problema social, porque ninguém queria ser indígena e aí no Pará também tem isso. Porque até então no imaginário da população brasileira ou ainda é e tem que ser aquela figura isolada do mato, que tá (sic) ali na sua tribo, na sua aldeia. Aí eu comecei a ver então o que é que eu sou. Então isso aí pra mim eu começo fazer um papel parecido com bicha. Que eu estava sendo carregado e dizimado por determinadas simbologias e eu começo a abraçar tudo isso. Mas lógico que há um esgotamento de absorver isso. Então aí é um momento que eu começo a refletir sobre as questões de onde eu venho, de como é que se dá o processo de vivência no Pará que são totalmente diferentes de como se dá os processos de vivência, nem digo LGBT só, mas dos corpos daqui em relação a nossa culinária, em relação a nossa afetividade, em relação a questão cultural, em relação a questão familiar, em relação ao nosso próprio território. Então eu começo a rever isso e me questionar sobre várias questões e aí eu chego na nomenclatura afro-indígena que é de um antropólogo que vem usando muito ela. E aí eu começo a conhecer algumas figuras indígenas e negras do Pará que não tem aquela influência de aldeia ou que tá (sic) num questionamento étnico-racial e lá no Pará já se colocam como afro-indígena.

Aí eu começo a ver o que está por trás desse afro-indígena, dessa relação do negro com o indígena e que pra mim é diferente do processo de mestiçagem, por exemplo. Aí eu vejo alguns amigos falando que são frutos de um processo de mestiçagem, aí eu vou ver a concepção do processo de mestiçagem, não o que é, mas o que era o processo de mestiçagem, aquela mistura de sangue entre o branco e o preto. Mas aí depois com mais afinco eu vou atrás de leituras de onde é que vem a mestiçagem, aí eu começo a ver um processo de colonização, de mestiçagem, de estupro das mulheres indígenas e aí eu quero me afastar disso tudo, eu não quero ser fruto de um estupro, eu não quero ser fruto de uma relação de embranquecimento. Mas isso também é uma questão política querendo ou não. Além de uma questão identitária, de se posicionar em determinadas coisas, e aí eu começo a me identificar como afro-indígena, eu não sou fruto de uma mestiçagem. Eu tenho um lado negro e um lado indígena”.

Relacionamentos

“Nem precisava ir tão longe pra falar das minhas questões afetivas como bicha no sentido de solidão, por exemplo. E aí um medo que eu tinha era quando via meus amigos mais velhos, solteiros ainda, fazendo caçada com pessoas mais novas eu pensava “gente, quando eu tiver 40 anos, eu quero ter alguém”. Então pra mim esse era o medo da solidão. Mas o que eu vejo é que é recorrente a gente pensar isso porque, por exemplo, quando eu vou numa festa eu sei que determinados corpos – e eu não falo nem de “Barbies”, os estereótipos – nunca vão olhar pra mim ou pro meu corpo, porque eu não faço o tipo deles. Aí que entra a questão de se posicionar também né sobre o seu corpo para além de ser gay, de ser bicha. Mas também indígena. Quem é que quer se relacionar com uma bicha preta ou uma bicha afro-indígena? Tipo, eu só tive um relacionamento sério e que durou seis meses.

Mas o maior enfrentamento afetivo de ser bicha e afro-indígena é que eu vejo é que uma pessoa padrão, socialmente magro, branco, loirinho nunca vai tentar alguma coisa afetiva comigo, sabe?! O que acontece muito forte hoje é as bichas ficando com as bichas. A gente tá (sic) vendo que a gente tá (sic) ficando de lado, pro descarte. Então quando eu vou pra uma festa e quando tá (sic) dando seis horas da manhã e tá (sic) clareando e vem alguém querer ficar comigo, isso é sintomático pra mim porque eu vejo que eu sou a última opção. Às vezes não é nem o padrão, é outra bicha que viu que não ficou com ninguém e aí começa a disparar para todos os lugares. Pra conseguir um sexo com aquele outro ou pelo menos beijar alguém no fim de festa. O enfrentamento em ser gay, essa bicha, é com relação a solidão que acompanha a gente. No sentido sexual e no sentido afetivo, afetivo que eu falo é de namoro. Eu conto nos dedos quantas bichas amigas minhas estão num relacionamento sério. E a gente não pega ninguém não é porque a gente não queira, mas porque ninguém quer a gente. Então é basicamente isso da gente.

Com certeza também (acontece) uma hipersexualização do corpo, uma fetichização pelo corpo, sei lá, outros atravessamentos sociais mesmos de só fuder com a bicha, transar com ela e acabou. E aí, querendo ou não, a gente acaba se entregando a essas relações porque não resta outra saída, não resta outra solução, então você se entrega a relações. Acho também que com o tempo a gente vai cansando de fazer determinados trajetos então quando eu vou pra festa e não pego ninguém, vou pra balada e ninguém fica comigo, você vai lá e pega um homem casado pra resolver também suas questões sexuais e afetivas. Como não?”

Prevenção

“Tudo é a maneira como o acesso à prevenção chega a gente. Lá no Pará quando eu comecei a ter minhas relações sexuais, por exemplo, era bem mais difícil você ir num posto que disponibiliza camisinha porque a maioria fica em lugares que fazem testagem, por exemplo, e ainda há uma carga enorme de preconceito em cima desses centros. Quem é a figura de LGBT, principalmente os G’s, não querem ser visto nesses centros. Porque não quer ser associado ao HIV e a AIDS, por exemplo. Então é muito comum “eu vi determinado fulaninho no posto tal, então ele deve estar com HIV”. Lá a gente usa a expressão que tá com a “tia”.

Quando aparecia um boyzinho, um gay lá, que queria transar comigo eu estava sujeito a ele ter a camisinha, porque eu não tinha acesso a camisinha (no Pará). Já me relacionei sim com homens sem camisinha e tal, mas também rola a questão de acesso a informação. Se a informação não chega pra mim, eu não sei dela. E se eu não sei dela, eu não vou viver daquilo que ela fala. Então quando eu tava lá no Norte eu não tinha acesso ao preservativo e aí já não chega no meu território: como eu vou saber que tenho que usar aquilo se a informação não chegou? A informação que poderia acionar em você o gatilho de que tem que usar, não acontece. Eu só vim ter informação mesmo e usar quando eu cheguei no RJ. E as únicas vezes que tinha distribuição de camisinha sem ter a taxação de alguma coisa era nas paradas LGBT’s. Então a minha preservação de auto-cuidado vai começar com afinco quando eu entro na faculdade e vou fazer reflexões das coisas que afetam o meu corpo.

Hoje, atualmente, eu não ando (com camisinha) e não ando porque já saio pensando que vou transar. Eu sei que é complicado isso. Algumas pessoas falam “mas você tem que ser prevenido porque não sabe o que vai acontecer”. Eu sou muito controlado sobre isso, sobre meu tesão, desejo. Sei lá, parece que eu envelheci milhares de anos, envelheci pra caralho por tudo que eu passei. Então se passar um boy agora querendo transar eu vou dizer que não, mesmo se eu tiver com camisinha na bolsa. Eu tenho camisinha em casa. Mas pra mim não é mais interessante fazer isso de sair, caçar e transar com um cara e voltar pra casa. Hoje eu não tenho mais aquele tesão, aquele desejo da adolescência. Então tem aquela coisa de entregar pra quem você quer o desejo. Hoje não estou mais tão disposto a uma transa rápida, por exemplo. Meu viés de sexualidade hoje está mais ligada a afetividade do que o sexo”.

“Eu, atualmente, tenho alguns planos e projetos que, por exemplo, é entrar numa pós-graduação, num mestrado. Eu tô(sic) tentando porque eu cheguei num ponto de absorver tanta literatura que hoje em dia eu quero esvaziar. Eu cheguei a um ponto que eu quero escrever sobre as minhas vivências e não ser capturado por autoras famosas como a (Judith) Butler, por exemplo. Hoje, um dos meus planos é: entrar no mestrado e escrever sobre esse termo bicha afro-indígena, então esse é um dos planos que eu tenho. Porque uma certeza que eu tenho também é que eu não vou ficar no RJ, eu não quero ficar no RJ, eu vou voltar. Eu vim buscar uma coisa aqui e quando eu conseguir eu vou voltar pro Pará. Eu quero fazer determinada coisa e quando eu tiver essa determinada coisa eu vou voltar.

Eu tô (sic) numa zona de acesso e de privilégios de tanta coisa que eu preciso aproveitar tudo que eu peguei aqui e levar tudo de volta pro Pará. Eu tenho que levar isso pros meus amigos. Eu não vim passar férias. Se eu tivesse acesso a essas coisas lá, eu não teria vendo pra cá. Eu sei que meus amigos no Pará também têm desejo de ter acesso a essas coisas que eu tenho aqui. Então é como aproveitar, sugar, absorver tudo aquilo que eu aprendi e peguei aqui e desenvolver lá. Eu não quero seguir uma carreira acadêmica, eu preciso da academia pra escrever sobre meu corpo vivência, eu preciso estar lá dentro mesmo com esse confronto com as estruturas da academia, porque eu sei que há um maquinário perverso que não quer a gente chegue. Então quando um corpo negro, quando um corpo indígena chega a faculdade isso não é privilégio. Isso é um direito dele. Porque o que eu escrevo não é pra um hetero. O hetero vai ter acesso, mas é pra uma bicha como eu, pra uma trans e uma “sapatão”. Porque eu sei que elas lerão e eu quero que elas saibam que isso existe pra ler. Ou mesmo que não queiram ler, mas saibam que há essa possibilidade e oportunidade se quiserem”.

 

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