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HIV: o vírus é menos mortal do que o preconceito


Mulher branca, hétero, cisgênero, casada, evangélica. Blenda Rodrigues tem 26 anos e foge de todos os padrões quando, geralmente, se pensa em uma pessoa vivendo com HIV. Ainda hoje, 37 anos após o primeiro caso registrado no Brasil, o vírus segue cercado de rótulos que sequer cabem mais na sigla de três letras. Aluna do 9º semestre de engenharia de energia na Universidade de Brasília (UnB), Blenda personifica essa desconstrução – que precisa ser feita com urgência.

A cada dia, mesmo sem querer, a universitária dá uma lição de vida a quem liga o HIV a homens gays, bissexuais, travestis, transexuais e profissionais do sexo. Comumente, definhando em cima de uma cama. Essa visão, para lá de ultrapassada, ainda faz parte do imaginário coletivo de milhares de brasileiros. Blenda, e outros tantos personagens, ilustra a desestigmatização do HIV no século 21.

Atualmente, 37,9 milhões de pessoas vivem com o vírus no mundo. No Brasil, o número chega a 966 mil, segundo o Boletim Epidemiológico de 2019, elaborado pelo Ministério da Saúde. Do total no país, 544 mil têm carga viral indetectável, ou seja, esse grupo não transmite o vírus. E essa é uma das informações que grande parte da sociedade ainda desconhece. Não existe “sobrevida”, e sim “expectativa de vida”, que pode ser tão grande – ou maior – quanto à de um indivíduo soronegativo. Não existem mais “coquetéis”. Paciente HIV+ faz a Terapia Antirretroviral (TARV) e toma apenas dois comprimidos, uma única vez ao dia.

O primeiro passo para a luta efetiva contra a desinformação é enfrentar a discriminação relacionada ao vírus. Falar sobre o assunto, identificar as lacunas no diagnóstico e no tratamento e dar um fim ao estigma podem livrar o mundo da epidemia que já matou milhões de pessoas. Neste especial, publicado no mês da luta Mundial Contra a Aids, o Metrópoles reúne personagens, dados, entidades e especialistas envolvidos diretamente com a temática.

Segundo o escritório do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids Brasil), o número de novas infecções aumentou em 21% nos últimos oito anos no país. O dado é preocupante e acendeu o alerta em autoridades, que têm reforçado a necessidade de prevenção, de diagnóstico precoce e tratamento. A meta é diminuir expressivamente o índice de novos casos de HIV no Brasil e no mundo.

Para além das estatísticas mencionadas, o Unaids elaborou, pela primeira vez no Brasil, estudo que mensurou os sentimentos de quem vive com HIV. Os medos, as situações de preconceito, de exclusão. Foram quase 1.800 entrevistados, em sete capitais brasileiras: Manaus (AM), Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Salvador (BA), Recife (PE), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ). O questionário é extenso e abordou, também, garantias previstas em lei – que, muitas vezes, são negadas a essas pessoas.

O estigma em números

Um dos principais medos de quem recebe o exame positivo para HIV é ser rejeitado pela família, por amigos, sofrer discriminação no ambiente de trabalho, na academia, na igreja… As pessoas diagnosticadas no Brasil vivem em uma realidade de tratamento extremamente eficaz, de pacientes com carga viral indetectável, logo, intransmissível. Mesmo assim, 64% dos entrevistados declararam já terem sido vítimas do preconceito que, infelizmente, ainda assombra os pacientes soropositivos.

O levantamento da ONU, feito anteriormente em outros 100 países, traz no nome o maior inimigo da atual luta dos soropositivos: “Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/aids”. Foram abordadas questões referentes à autoestima, à aceitabilidade da própria sorologia, à convivência com familiares e ao desemprego.

De acordo com o diretor do Unaids no Brasil, Cleiton Euzébio de Lima, o trabalho produzido traz elementos importantes sobre a necessidade de olhar para pacientes soropositivos de forma humanizada e empática. “O tratamento é importante, claro, mas a gente ainda tem um número elevado de mortes em decorrência de complicações da Aids. São aproximadamente 11 mil por ano. Esse estudo tem uma característica única, porque é feito por e para pessoas vivendo com HIV. A metodologia de pares é muito poderosa porque aproxima”, explica o dirigente do programa.

Um dos recortes que chama a atenção no Índice de Estigma é sobre a saúde mental. Com base na pesquisa, 47,9% dos entrevistados foram diagnosticados com algum problema nessa área. Ou seja, quase a metade precisaria passar por atendimento psicológico.

Esse tratamento combinado, conforme explica Cleiton, é imprescindível para a manutenção da saúde integral dessa população. Segundo o diretor, “81% dos pacientes, mesmo aqueles diagnosticados há mais de 10 anos com o vírus, acham difícil contar que é soropositivo. Desses, 20% não revelaram nem para os parceiros”.

O psicólogo Nilton Casaes é um dos nomes envolvidos na causa da saúde mental de pacientes HIV/Aids. Ele trabalha no Serviço de Atendimento Especializado (SAE), em Salvador, há seis anos, mas atua no tema desde 1996. De acordo com o especialista, em geral, as reações são muito negativas na hora do diagnóstico. “Por isso, é muito importante consultar um psicólogo após receber a notícia. Com calma, nós podemos explicar como funciona o tratamento hoje em dia e como é viver com o vírus”, detalha o profissional.

Nilton tem mestrado em psicologia social, com ênfase na estigmatização do HIV. “Hoje, eu atendo no ambulatório do SAE pacientes que tomaram recentemente conhecimento da sorologia. Também entro em contato com quem desistiu do tratamento para entender os motivos. A falta de informação é um dos fatores que mais contribui para alimentar o preconceito”, salienta.

O especialista chama ainda a atenção para a falta de profissionais envolvidos na temática. Tanto na área da psicologia quanto na psiquiatria. Há pacientes com quadros graves de saúde mental, esquizofrenias, por exemplo, e um infectologista não é autorizado a passar remédios desse tipo. “Os médicos precisam se envolver com a questão e também provocar o governo no sentido de criar campanhas sobre o HIV e saúde mental”, frisa Casaes.

Outro dado do Índice de Estigma elaborado pelo Unaids que chama a atenção diz respeito à invasão de privacidade. Apesar de as leis garantirem o sigilo e a proteção do paciente soropositivo para HIV, 6,3% dos entrevistados disseram já terem sido forçados a revelar a sorologia ou tiveram o diagnóstico divulgado sem seu consentimento.

“Muitos nem sabiam que estavam tendo um direito tirado. E isso é urgente. Precisamos proteger a legislação e a privacidade para garantir a essas pessoas uma vida digna, livre de preconceitos”, destaca Cleiton.

O diretor do Unaids defende que todas essas questões de autoestigma identificadas no estudo são fortes o suficiente para alertar autoridades em relação ao problema do atendimento de saúde mental – ainda tão minimizado no país. “O objetivo é usar esses números como uma ferramenta importante na luta por políticas de enfrentamento. A gente sempre esteve consciente do preconceito, mas não tínhamos dados. Agora, temos”, celebra.

A pesquisa da ONU também é fundamental para abrir o diálogo em todos os setores da sociedade. A infectologista e professora da Universidade de Brasília (UnB) Valéria Paes luta para que todos conversem de modo tranquilo e aberto sobre infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). “Infelizmente, o HIV ainda é associado a determinados tipos de comportamento e as pessoas ainda não perceberam que qualquer um pode adquirir o vírus. Não existe grupo de risco”, ressalta.

Na briga contra o estigma, diz a docente, é preciso, antes de mais nada, entender que a doença não é o fim do mundo. Não é uma sentença de morte. A médica cita a personagem do livro Depois Daquela Viagem que, mesmo não sendo promíscua, nem usuária de droga, adquiriu o HIV na primeira relação sexual. Assim como aconteceu com Blenda, a universitária já mencionada nesta reportagem.

Segundo Valéria, é rotina no consultório ouvir histórias de pacientes que contraíram o vírus de alguém conhecido ou de pessoa com que já se relacionavam. Nessas situações, o uso da camisinha acaba ficando de lado. E é aí onde o perigo mora.

“A gente pergunta se os pacientes estão usando preservativo e as respostas variam muito. Às vezes sim, outras não. Percebemos grande dificuldade de se proteger principalmente quando se vive uma relação sexual com vínculo afetivo. Parece que pedir para colocar a camisinha é uma desconfiança. E não é. A pessoa está cuidando da vida dela. Da saúde dela. E tudo bem, ela está certa”, comenta a especialista.

Valéria Paes afirma que a maneira mais eficaz de evitar uma infecção pelo HIV ainda continua sendo o uso de preservativo. Mas a professora lembra, também, um método batizado de prevenção combinada. Hoje, existem diferentes métodos de escapar do contágio, e dentro das possibilidades, cada um escolhe a melhor para sua rotina.

“Não basta falar ‘Use camisinha’. No dia a dia, não é simples assim. São muitas variáveis: o preservativo precisa estar disponível ali na hora; tem que estar dentro do prazo de validade; deve ter sido conservado de maneira adequada; e não pode estourar na hora do sexo. O mais complicado ainda é negociar com o parceiro. Isso já se torna uma barreira para muitas pessoas”, explica a médica.

Para quem acaba abrindo mão do preservativo na hora H, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza outras formas de prevenção: Profilaxia Pré-Exposição (PreP) e a profilaxia Pós-Exposição (PEP). E muita gente não sabe sequer da existência dessas medidas.

Fonte: Metrópoles

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