Moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, Márcia Marci, 29, teve infância e adolescência agitadas. Quando tinha seis anos, a família se mudou para o interior do estado, onde morou em uma ocupação do MST (Movimento Sem Terra).
Voltou aos 12 para viver em Parelheiros, extremo sul da capital. Fez mochilão pelo país, antes de voltar ao Grajaú e se descobrir mulher transexual.
A trajetória ajudou Márcia a idealizar o Sarau Travas da Sul com amigos, para dar espaço à produção cultural LGBTQI+ do lugar onde vive: a periferia.
Inicialmente, a prioridade foi a população trans, mas ela percebeu ser necessária uma abordagem voltada para todos na sigla. Hoje, o coletivo conta com 20 pessoas, todas LGBTQI+, sendo metade transgênero e a outra cisgênero (cuja identidade de gênero corresponde ao sexo atribuído no nascimento).
“[Queremos] aproximar a população transexual daqui para a economia criativa e colaborativa, gerar renda através das travestis e mulheres transexuais, fazendo com que saiam da situação de vulnerabilidade em que estão inseridas”, afirma ela.
Os saraus ocorrem nos bairros com a ideia de propagar a poesia e trazem a expressão artística de diversos artistas das periferias, muitas vezes pela poesia e pela música.
As reuniões são semanais e cada pessoa propõe uma atividade dentro do sarau ou fora dele. Uma vez por mês, há um evento do grupo, como a festa Distrava, que terá a segunda edição no final do mês.
“A gente quer atingir e acolher LGBTs também em outros lugares do Grajaú”, diz. O distrito é um dos mais populosos de São Paulo, com quase 400 mil habitantes.
Márcia começou a se identificar com o tema na universidade. Hoje estuda a questão transfeminista e é agente de formação do Programa Jovem Monitor Cultural pelo Cieds (Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável).
Seu colega de coletivo Franklyn Araujo, 24, é promotor de vendas, mas no sarau se torna Tia Franny, personagem drag queen. “Antes eu era apenas uma bicha periférica. Hoje sou uma artista periférica. É uma diferença muito grande”, diz o morador de Parelheiros, extremo sul.
Nem sempre a recepção é calorosa. Em um dos saraus, um morador jogou uma pedra no grupo. “Você passa e é xingada e agredida. Continuo sendo, mas agora eu transformo isso na minha arte e trago para a periferia, esse meu corpo sendo usado para arte.”
As ações do coletivo ocorrem no Centro Cultural do Grajaú. Além disso, Márcia diz que o coletivo deve participar do Red Bull Amaphiko, programa global que apoia pessoas com soluções inovadoras para desafios sociais, e que em junho participou de um ato na Assembleia Legislativa organizado pela deputada Erica Malunguinho (PSOL).
No sarau, abrem-se oportunidades. A aluna de estética Aylee Monteiro, 18, teve ali a primeira chance de se apresentar: cantou e dançou “Bum Bum Dale Dale”, da mexicana Maite Perroni. “Nosso espaço não tem que ser só no centro. A gente tem que criar nosso espaço onde a gente vive.”
Tia Franny espera que o movimento faça com que outras artistas LGBT da quebrada ganhem espaço. “Precisamos de vocês que estão no beco, no escadão, que são fazedoras de arte. Vem somar com a gente.”
Há acenos também à comunidade como um todo. Na festa julina do coletivo, o programa de combate a doenças sexualmente transmissíveis e Aids do município, que já colabora com o grupo, compareceu. “Isso faz com que outra população, além da LGBTQI+, apareça, pois o teste é para todos”, diz Márcia. “Acaba não só conscientizando de políticas LGBTs, mas de saúde.”
Fonte: Folha de S. Paulo