Há três anos, o jornal de oposição russo Novaya Gazeta revelou para o mundo que prisões, torturas e assassinatos de LGBTs estavam acontecendo de forma extrajudicial, acobertada pelo governo, na Chechênia, parte da Rússia.
Como resposta às alegações, o presidente checheno, Ramzan Kadyrov, não só disse que a perseguição ao grupo era mentira, como também afirmou que não existiam homossexuais em sua república. O assunto ganhou manchetes do mundo todo, mas pouco aconteceu —a onda de violência continuou e se estendeu até mesmo a jornalistas que escreviam sobre as perseguições.
Diante da inação das autoridades locais e da falta de pressão internacional, o cineasta David France fez as malas e decidiu viajar para a região, para filmar e mostrar, não só relatar, o que de fato estava acontecendo. Ex-repórter investigativo, ele já havia se debruçado sobre o ativismo LGBT antes, em “How to Survive a Plague” e “A Morte e Vida de Marsha P. Johnson”.
Foram 18 meses de trabalho, convertidos no documentário “Welcome to Chechnya”, que integra a programação da 44ª Mostra de Cinema de São Paulo. Depois, no dia 18 de novembro, ele entra em cartaz em diversas plataformas de streaming.
“O que acontece lá é um genocídio diabólico, um crime contra a humanidade. Surgiram histórias horríveis sobre isso e quase nada aconteceu. Eu imaginei, como muitos outros, que depois das reportagens o maquinário da civilidade havia entrado em cena e que haviam parado o que estava acontecendo. Mas não, a perseguição continuou”, diz France por videoconferência.
“Na ausência de ação ou de pressão política fora do país, eu descobri que um grupo de civis tomou para si a tarefa de salvar as vidas dos LGBTs da Chechênia. Eu queria descobrir quem eles eram, se eu podia ajudar a mostrar seu trabalho. Então eu me convidei para os visitar.”
“Welcome to Chechnya” acompanha uma organização com sede em Moscou que ajuda LGBTs da Chechênia a fugirem do país, escondendo as vítimas e pedindo asilo político a outras nações. O documentário abre com um dos membros do grupo recebendo a ligação da filha de uma autoridade chechena, que estava sendo chantageada pelo próprio tio —ou ela aceitava fazer sexo com ele, ou ele contaria aos pais que ela é lésbica.
A homofobia está tão enraizada na cultura da região, diz France, que os perpetradores estimulam as próprias famílias a matarem os parentes homossexuais —isso quando eles também não são perseguidos.
“Quando fui à Rússia, eu não estive sozinho em nenhum local público, eu estive sempre entre os ativistas e os sobreviventes desses crimes. Eu acompanhava os resgates dessas pessoas, eu atravessava as fronteiras com elas, então eu não posso falar sobre minha experiência pessoal com a homofobia do país”, diz o cineasta, que é gay.
“Mas o que eu posso dizer é que eu conheci muitos russos que me contaram histórias confirmando que o que acontece lá é horrível, está destruindo famílias e jogando pessoas no exílio —não porque elas querem viver em outro país, mas simplesmente porque elas querem viver.”
Para dar suporte às acusações, já que os crimes são encobertos, quando não patrocinados, pelo próprio governo, France espalhou pelo filme vídeos interceptados por ativistas. Fortes, as imagens mostram agressões, torturas e até mesmo estupros.
As atrocidades às quais os personagens de “Welcome to Chechnya” –e sua própria equipe– estavam sujeitos fez com que France buscasse maneiras de contar aquelas histórias da forma mais segura possível. Ao rodar o mundo em festivais —em Berlim, venceu três prêmios—, o documentário chamou atenção por uma solução criativa que encontrou.
Diferentemente de outros documentários ancorados em depoimentos de gente que precisa se esconder, France não borrou os rostos de seus entrevistados. Ele recorreu à inteligência artificial, sobrepondo a face de voluntários nos Estados Unidos sobre a de 23 chechenos perseguidos.
A técnica é popularmente conhecida como deepfake, mas o cineasta rejeita o termo. “A inteligência artificial tem sido usada de maneiras muito interessantes nos filmes ultimamente. Mas também tem sido usada por criminosos e propagandistas. Então eu gosto de dizer que deepfake é o crime, não a tecnologia”, diz.
“Eu recorri à inteligência artificial porque eu achava que outras técnicas usadas por documentaristas para esconder identidades não eram bem-sucedidas em permitir que o público se envolvesse emocionalmente. Então nós recrutamos voluntários, inserimos seus rostos sobre o dos entrevistados e tivemos um ótimo resultado, que nos permitiu enxergar lágrimas, alegria, medo, tristeza, risada e qualquer outra microexpressão.”
Outras medidas de segurança foram tomadas. France filmou todas as ações do grupo ativista de forma quase clandestina, com pequenas câmeras e celulares escondidos. Para dentro do abrigo que acolhe as vítimas, o cineasta não levou equipamentos tradicionais, já que qualquer movimentação estranha poderia pôr vizinhos em alerta.
“Eu comecei a filmar sem nem saber como esconderia a identidade das pessoas e mesmo assim muita gente concordou em aparecer e dar depoimentos. Foi um ato de bravura muito grande.”
France agora espera que “Welcome to Chechnya” possa impulsionar autoridades mundiais a voltar os olhos para os horrores e os crimes contra a humanidade que acontecem sob o governo de Kadyrov e de Vladimir Putin. Mas ele ressalta que a Chechênia é apenas uma fração do problema.
“Eu batizei o filme de ‘Welcome to Chechnya’ [bem-vindo à Chechênia] porque o que acontece lá é o extremo de algo que acontece em muitos lugares, como a Polônia, por exemplo. Nós sabemos que, de certa forma, também acontece no Brasil ou nos Estados Unidos”, diz o americano.
“Há uma ascensão do populismo de direita no mundo, que está criando uma estrutura de poder ao pôr as pessoas contra a comunidade queer, ensinando ódio a uma nova geração. Eu acho que esse filme é um alerta para o resto do globo, dizendo que nós precisamos agir. Esse é um problema do mundo todo, mesmo que esteja acontecendo em uma parte pequena e isolada da Rússia.”