“Há uma passagem da minha infância da qual me lembro nitidamente até hoje, aos 27 anos. Ainda estava no colégio e tinha uma amiga muito querida com quem sempre brincava. Certa vez, a mãe dela conheceu a minha, na época, identificada como uma mulher lésbica, com traços considerados masculinos pela sociedade.
Tão logo reencontrei minha colega na escola no outro dia, ouvi a seguinte resposta ao cumprimentá-la: ‘Não posso mais falar com você’. Lembro-me de perceber que seus pais a vigiavam por entre as grades, certificando-se de que a garota não dirigiria mais a palavra a mim. Parecia cena de filme. Foi quando senti a maior dor que o preconceito pode causar e decidi que jamais provocaria algo semelhante em alguém.
Embora esse episódio tenha sido marcante, já trazia, antes disso, a bagagem de uma educação pautada no respeito à diversidade. Minha mãe já atuava como militante da causa LGBT em São Paulo, onde moramos, o que fez com que tivesse, desde cedo, um contato esclarecedor com essa pauta. Diante disso, recebi, sem ressentimentos, a notícia de que a pessoa que me gerou e me colocou no mundo se tornaria, paulatinamente, o meu pai — o meu outro pai, como contarei mais à frente, eu não conheci. Tinha 14 anos quando minha mãe me disse que entendera ser um homem trans e passaria a se chamar Alexandre.
Ele começou a transição pouco depois de descobrir que isso era possível. Antes, só se identificava como uma mulher lésbica por achar que existiam apenas mulheres trans. Na época, praticamente não havia casos semelhantes no Brasil. Ele lia sobre episódios ocorridos no exterior e comentava tudo comigo. Começamos a descobrir juntos todos os procedimentos aos quais poderia se submeter, bem como os resultados.
Meu pai foi me falando o que era a transexualidade e me instruindo com o tempo, para que não tivesse nenhum conflito interno ou trauma. Conversávamos muito e demos um passo de cada vez. Para ser sincera, não me lembro muito das minhas reações quando soube da transição, mas não chorei nem questionei. Ficava muito feliz por meu pai compartilhar tudo comigo, inclusive. Lembro-me que, a cada nova informação, reagia com muita tranquilidade. Ele me dizia: ‘Estou no corpo de uma mulher, mas sinto que sou homem’.
Primeiro, veio o tratamento hormonal: a voz engrossou e cresceram os pelos, a barba. Ele também me pediu que o tratasse no masculino. Mas a única coisa que não consegui, logo de cara, foi chamá-lo de ‘pai’, algo que só fiz aos 20 anos. Antes disso, ainda enxergava traços femininos em sua face, e os termos ‘pãe’ e ‘amor’, me soaram, então, mais apropriados. Mas isso não significa que tenha vivido qualquer confusão com o que sentia em relação a ele. Não tinha um padrão de ‘pai’ ou ‘mãe’ dentro de casa, mas sim de uma pessoa que me amava e cuidava de mim. Com a transição, mudou a aparência, mas não a pessoa com quem sempre convivi.
Depois, veio a cirurgia de remoção dos seios, e acompanhei todo o processo, das visitas à psicóloga ao pós-cirúrgico.A ansiedade dele, nessa época, também é muito viva na minha memória. Os seios o incomodavam muito. A sensação que eu tinha era de que, quando a cirurgia fosse feita, ele realizaria vários sonhos, como conseguir um emprego e ser mais respeitado.
“Entendi, desde cedo, que existem diferentes configurações familiares, e está tudo certo com isso”
Acabei criando uma grande expectativa junto com ele. A gente se abraçava e comentava o quanto isso seria liberador. Logo depois da remoção, ele viajou com um amigo para a praia, onde viveu um dos momentos mais bonitos de sua vida. Tirar a camiseta e ficar só de sunga diante do mar foi mágico e libertador. A experiência que ele passou me emocionou muito. Acho que foi quando o vi mais feliz. Ele tinha uma nova vida e um olhar de esperança.
Durante grande parte da minha vida, meu pai optou por me poupar de uma dolorosa história e dizia que o meu outro pai vivia com uma segunda família. Aos 17 anos, descobri como havia sido concebida. Estávamos numa van, indo para a gravação de um documentário sobre pessoas trans, e ele, por um momento, se esqueceu de que eu também estava no veículo, deixando escapar que havia sofrido, aos 19 anos, um estupro coletivo e corretivo (violência sexual praticada contra mulheres lésbicas e homens trans em que os autores buscam ‘corrigir’ o que consideram um ‘desvio’) .
Tomei um susto na hora. Quando tivemos um momento a sós, ele me contou o que havia acontecido. Disse que não falou comigo sobre isso antes, por medo de que eu ficasse traumatizada. Fiquei muito emocionada e tomada por um forte sentimento de gratidão, ao pensar sobre como ele enfrentou tudo isso sozinho por mim. Minha única reação foi dizer que o amava ainda mais. Afinal, descobri ali o que é amor incondicional. Mesmo diante de tamanha maldade e agressão, ele optou por me dar à vida.
Meu pai sempre foi muito delicado e nunca me senti prejudicada pela sua história. Apenas entendi, desde cedo, que existem diferentes configurações familiares, e está tudo certo com isso. Uma coisa curiosa é que, mesmo quando ele ainda era minha mãe, não tinha paciência para atividades consideradas femininas, como ir ao shopping e fazer maquiagem. Mas, como sempre me relacionei muito bem com as namoradas dele, tive todo o suporte nesses quesitos. Já na hora de falar sobre assuntos como menstruação e sexo, conversávamos abertamente e sem neuras.
O nosso diálogo aberto também nunca influenciou sobre a minha sexualidade. Sou heterossexual e sempre me relacionei apenas com homens. De um desses relacionamentos, inclusive, veio a minha filha de 6 anos, a quem dou a mesma educação didática que recebi. Afinal, a forma como nossos filhos vão lidar com o mundo tem a ver com a maneira como satisfazemos as suas curiosidades e mostramos quanto o amor pode vencer o preconceito.
Ela já sabe, por exemplo, que o vovô é transexual, embora não entenda o que é isso. Moramos os três juntos por um período, e ela percebeu, certa vez, que diferente do pai, o avô faz xixi sentado. Quando ela veio me perguntar o motivo da diferença, apenas respondi que cada pessoa faz xixi do jeito que se sente mais confortável. ‘Tudo bem’, ela respondeu. Também houve uma ocasião em que me perguntou onde estava a minha mãe. Nesse dia respondi: ‘a mamãe é o meu papai’. Simples assim.”
Fonte: O Globo