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Família: casais homoafetivos encontram dificuldade para terem dupla maternidade ou paternidade reconhecidas


Em 2017, o Conselho Nacional de Justiça decidiu que todos os cartórios deveriam trocar os termos ‘mãe’ e ‘pai’ por ‘filiação’. Apesar da decisão favorável às famílias, casais homoafetivos encontram inúmeros entraves para terem sua dupla maternidade ou dupla paternidade reconhecidas Foto: Ana Luiza Costa

“Para a Receita Federal, meu marido é a ‘mãe’ da minha filha”, conta o administrador de empresas de São Paulo, Betho Fers, de 39 anos. Ele e o psicólogo Erick Silva, de 36, estão juntos desde 2008 e são pais da pequena Stephanie, de 3 anos, adotada por eles quando tinha apenas seis meses de vida. Desde que se tornaram pais, Betho e Erick enfrentam uma série de desafios para terem suas paternidades reconhecidas. Recentemente, descobriram que, no sistema de dados usado pela Receita Federal, Erick está cadastrado como ‘mãe’ de Stephanie.

— O primeiro momento vexatório é ter que colocar o seu nome no campo ‘mãe’. Eu não sou mãe da Stephanie e também não sou pai ‘como se fosse mãe’. Minha filha não tem mãe. Ela tem dois pais —  afirma Betho

Em 2017, o Conselho Nacional de Justiça decidiu que todos os cartórios deveriam trocar os termos ‘mãe’ e ‘pai’ por ‘filiação’. Apesar da decisão favorável às famílias, casais do mesmo sexo encontram inúmeros entraves para terem sua dupla maternidade ou dupla paternidade reconhecidas.

No caso específico da Receita Federal, a instituição permite consultas relacionadas ao CPF de qualquer pessoa em seu site. Para isso é necessário preencher, obrigatoriamente, o campo “mãe”. Nas famílias formadas por dois pais, por exemplo, um deles acaba ocupando o campo materno.

A família de Betho e Erick não é a única a encontrar problemas com os sistemas de dados da Receita Federal. A questão começou a chamar atenção após uma publicação da escritora e ativista lésbica Marcela Tiboni, de 38 anos, em sua conta no Instagram.

— Demorei dois anos para descobrir que no sistema do governo federal eu não consto como mãe dos meus filhos.

Marcela é casada com a arquiteta Melanie Graille, de 31 anos, e juntas são as mães dos gêmeos Bernardo e Iolanda, de 2. A escritora criou um manifesto pedindo visibilidade às famílias homotransafetivas após descobrir que o seu nome não está vinculado ao CPF dos filhos.

— No momento que você tem um papel impresso que diz ‘Marcela e Melanie’ no campo ‘filiação de Bernardo e Iolanda’, você acredita que, de fato, está resolvido. Acredita que esta informação consta no sistema. Mas, na verdade, não consta. Ali eu percebi que a certidão é um fake, uma alegoria, uma fantasia que não serve para nada em um mundo cada vez mais digital —  conta Marcela.

Ela relembra ainda que, no dia em que as crianças nasceram, teve que “escolher” com a companheira quem ocuparia o campo “pai” na Declaração de Nascido Vivo (DNV) dos bebês, que é entregue pelo hospital.

— O Ministério da Saúde já emite a DNV com o campo “mãe” e “pai”, e não tem como rasurar. Então, foi ali o primeiro documento que saiu sem que eu constasse como mãe dos meus filhos —  afirma Marcela.

O mesmo aconteceu há um ano com a autônoma Melisa Smelstein, de 36 anos. Ela foi registrar a filha Carmen, fruto do seu casamento com a servidora pública Luana Naomi Ueki, de 37, em um cartório de São Paulo. A certidão de nascimento da menina não foi emitida porque faltava uma carta de próprio punho das duas mães afirmando que não iriam abandonar a própria filha.

—  Fui com toda a documentação obrigatória, que inclui uma carta do diretor médico da clínica onde fizemos a fertilização in vitro, com firma reconhecida, atestando que somos as mães da Carmen. Depois de ver todos os documentos que levei, a pessoa do cartório me disse que faltava uma carta escrita pelas duas mães, de próprio punho e com firma reconhecida, afirmando que vamos cuidar da nossa filha e não abandoná-la. Perguntei se os casais héteros cis também têm que fazer essa carta e, obviamente, a resposta foi não.

De acordo com o Ministério da Saúde, a declaração de nascido vivo é um documento recebido por todo bebê que nasce com vida para poder ser registrado em cartório e, assim, ser reconhecido como cidadão brasileiro e residente da cidade onde nasceu.

O advogado e presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, Saulo Amorim, afirma que é necessário uma atuação do poder legislativo para criar leis que, de fato, assegurem os direitos das famílias LGBTQIA+.

— O legislativo é de matriz conservadora predominante há décadas e todos os projetos de lei que beneficiam nossas famílias são sumariamente engavetados ou descaracterizados.

Para o advogado, o modelo de cadastro de dados usado pela Receita Federal invisibiliza uma série de famílias e, por isso, é necessário uma articulação coletiva.

— Nós temos incentivado as famílias LGBTQIA+ para que busquem seus direitos individualmente. Porque o número de ações, o número de provocações que a União Federal possa vir a receber, vai fazer com que ela perceba que não se trata do aborrecimento de uma família, mas sim de um tanto de famílias, que estão incomodadas com a situação. A ação pretende pressionar também deputados federais e senadores para que a pressão venha de dentro e não seja preciso chegar ao Supremo Tribunal Federal.

Mesmo com as decisões favoráveis do Conselho Nacional de Justiça, que, em 2017, garantiu o direito às pessoas LGBTQIA+ de terem seus filhos registrados com o nome dos dois pais ou das duas mães, e do Supremo Tribunal Federal, que em 2012, garantiu a união de pessoas do mesmo sexo, famílias homotransafetivas vivem mais um obstáculo junto à Receita Federal.

O professor doutor do departamento de Sistemas e Computação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), João Araújo, explica que é preciso cautela para a adequação de um sistema de dados como o da Receita Federal.

— Não existe dificuldade técnica, mas o custo disso é grande. Além do mais, como são vários sistemas que se comunicam, seria preciso que fosse feita uma revisão de todos eles, para não haver incongruências. O risco de dar um problema mudando bases de dados estabelecidas há anos é muito grande. Tem que ser feito com muito cuidado para não provocar danos enormes ao pagamento de benefícios. Precisa ser bem planejado, com regras claras para não provocar um colapso nas bases de dados que se comunicam com a receita. Não é coisa simples de ser feita e nem pode ser feita de um dia para outro. Precisa de planejamento e vontade política —  afirma.

Para o especialista, o pontapé deve ser dado pela Receita Federal já que muitos órgãos públicos municipais, estaduais e federais utilizam o sistema.

—  Deve começar por lá, com proposta e discussão com todos os órgãos públicos que usam os dados da receita. Tem que ser um esforço técnico coordenado para não causar mais problemas do que já temos —  acrescenta.

Procurada pela reportagem, a Receita Federal disse que não vai comentar o assunto.

Fonte: O Globo

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