Para Jair Bolsonaro, pessoas vivendo com o vírus HIV são “uma despesa para todos no Brasil”. A declaração foi feita na última quarta-feira (5) enquanto o presidente defendia a abstinência sexual como política pública contra a gravidez na adolescência, proposta por Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. No momento, ele citava a história de uma paciente que, supostamente, aos 15 anos havia tido três filhos e contraído HIV.
A fala foi amplamente repudiada por setores da sociedade civil e gerou a hashtag #EuNãoSouDespesa, que circulou amplamente nas redes sociais nesta quinta (6). A campanha foi promovida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Beto Volpe, ativista e escritor que vive com HIV há mais de 30 anos, também se manifestou em suas redes. “Eu me senti profundamente ofendido. Não bastasse ele ter dito anteriormente que o Estado não deveria arcar com o tratamento de quem contrai o vírus ‘na bandalheira’, agora ele nos taxa como meras despesas de governo”, disse Volpe em referência à declaração anterior de Bolsonaro.
Em 2010, o então deputado federal afirmou em entrevista ao programa CQC que “a pessoa [com HIV] vive na vida mundana depois vai querer cobrar do poder público um tratamento que é caro”.
Segundo Veriano Terto Jr., vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), a declaração do capitão reformado é mais uma manifestação do discurso de ódio contra minorias, postura que, segundo ele, marca a presidência desde a campanha eleitoral.
“Nós sabemos que o estigma ainda é o grande obstáculo para o enfrentamento da Aids. A declaração do presidente reforça o estigma e o preconceito. [Bolsonaro] consente e vai ajudar a justificar atitudes de discriminação. Imagine um paciente há dias em uma cama de hospital e se depara com isso. É cruel. É desumano. Para família e para o paciente”, afirma Terto.
O ativista define que a declaração de Bolsonaro representa a “morte civil” das pessoas soropositivas e explícita como o estigma é prevalente na sociedade brasileira. O conceito foi cunhado há 30 anos pelo escritor e jornalista Herbert Daniel.
“É um atentado contra a cidadania das pessoas vivendo com HIV e com Aids. Afinal, elas pagam impostos, contribuem com a Previdência, com a saúde, cumprem seus deveres como cidadão e não podem ser tratadas assim”, reitera Terto.
Ele acrescenta que, ao preferir falas preconceituosas, Bolsonaro atropela o sistema de atendimento implementado no Brasil para pessoas com HIV nas últimas décadas, gestado por pesquisadores, médicos e ativistas a partir dos princípios da solidariedade e da valorização da vida.
Em nota, o Movimento de Luta contra a Aids, que reúne diversas organizações de pessoas vivendo com HIV, também reprovou a postura de Bolsonaro e reforçou a importância do sistema estabelecido na saúde pública do país.
“A resposta brasileira à epidemia de Aids é uma política de Estado, não uma política de governos ou partidos, ancorada nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e na garantia dos direitos humanos, com reconhecimento e destaque internacional. Expressamos nossa repulsa para a abordagem desrespeitosa, superficial e preconceituosa dispensada às pessoas que vivem com HIV/Aids.”, diz o texto.
Marcela Vieira, médica residente do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), destaca que o atendimento à saúde é um dever do Estado e um direito de todos os cidadãos garantido pela Constituição Federal de 1988.
A especialista endossa que dizer que as pessoas com HIV dão despesa ao país é uma irresponsabilidade, já que milhões de pessoas com outras doenças também recebem atendimento e remédios do SUS.
“É um desrespeito profundo com essas pessoas. Se trata de um tratamento gratuito, assim como é o tratamento oferecido pelo SUS para pessoas que tem hipertensão, diabetes, que tem outras doenças crônicas. É terrível que um presidente da República emita uma declaração como essa diante de quase um milhão de pessoas que vivem no país com HIV”, avalia a integrante da Rede de Médicas e Médicos Populares.
Ainda segundo Vieira, o conservadorismo e o moralismo da fala de Bolsonaro é o que também baseia o discurso que a abstinência é a melhor política para prevenção de gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis.
“Isso não pode ser uma política de Estado. É um fracasso completo, não funcionou em nenhum lugar onde foi implementada. Não existe nenhum programa de abstinência sexual que tenha resultado em bons números. [A política de abstinência] traz mais desinformação, faz com que as pessoas desconheçam seus direitos reprodutivos, desconheçam seus corpos. Isso gera ainda mais taxas de infecções sexualmente transmissíveis, entre elas o HIV. É uma política de morte”, critica.
Desmonte
Além das declarações, as políticas da área também passaram por alterações desde que Bolsonaro chegou à Presidência. Em maio do ano passado, em despacho publicado pela Coordenadoria Geral de Saúde das Mulheres, o governo determinou a supressão do termo “Aids” na nomenclatura do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), do HIV/Aids.
O antigo departamento que era dedicado ao tratamento de HIV/Aids, hepatites e outras enfermidades sexualmente transmissíveis também foi reestruturado, agora abrange a tuberculose e hanseníase, doenças com abordagem e enfrentamento diferentes.
“A política de Aids do Brasil, que é uma das mais referenciadas no mundo, surge a partir dessa necessidade de ser contemplado pelo SUS e fornecer medicamentos gratuitamente. A interrupção do tratamento, o corte de verbas, a redução da disponibilidade desses medicamentos significa o extermínio dessa população. Isso é inaceitável”, desaprova Marcela Vieira.
A médica complementa que ao fazer uso regular dos retrovirais disponibilizados pelo SUS, uma pessoa vivendo com o HIV não apresenta mais carga viral detectável em exames de sangue periféricos. De acordo com ela, alguns estudos comprovam que esses indivíduos passam a não transmitir o vírus.
Exatamente por isso Vieira argumenta que é preciso assegurar que o atendimento não seja sucateado, já que os medicamentos ajudam a diminuir a transmissão, garantem uma melhor qualidade de vida e uma menor chance de desenvolver a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, sigla referente à Aids, doença que pode ser desenvolvida por pacientes com HIV.
Conforme informações do Ministério da Saúde, em 2018 foram registrados 43,9 mil novos casos de HIV no Brasil. Outras informações sobre o vírus também foram divulgas em boletim epidemiológico publicado ano passado, onde a pasta informou que de 2007 a junho de 2019 foram notificados 300.496 novos casos de infecção pelo HIV no país.
Fonte: Brasil de Fato