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“Eu sabia que era negra, mas não me colocava como negra. Mas quando eu entrei na universidade eu passei a compreender a questão étnico-racial”, revela jovem capixaba radicada no Rio


Foto: Jean Pierry Oliveira

A pequeneza do estado do Espírito Santo na cartografia brasileira não representa a grandeza de sua importância e da grandeza de seus moradores. Pelo menos é essa a impressão refletida durante o bate-papo com a entrevistada do mês de novembro do Fala Jovem, do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens Ana Paula Lyra.

Aos 25 anos, a capixaba de Serra bateu as asas para voos maiores e aportou na cidade do Rio de Janeiro em busca de mais um sonho: o título de Mestre. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a jovem buscou dar continuidade em sua imersão pela cultura e historicidade das comunidades quilombolas e veio parar no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicos-Raciais (PPRER), do Centro Federal de Tecnologia Celso Suckow da Fonseca (CEFET).

Filha de um pastor evangélico e uma mãe católica, a tímida Ana Paula superou seu reservismo e abriu seu coração para compartilhar um pouco de suas experiências e vivências acerca de sua sexualidade, família, relacionamento, universidade, racismo, religião, prevenção, HIV/AIDS e outros assuntos. Confira a entrevista a seguir:

Vida no Rio de Janeiro x Vida no Espírito Santo

“Eu moro em Madureira, mas vim pra cá pra fazer o mestrado. Sou do estado do Espírito Santo. Assim, o pessoal diz muito que capixaba é bicho solto, que não tá apegado ao estado. Então, eu sempre tive isso em mente que qualquer oportunidade que surgisse, onde fosse – perto ou longe – que eu iria agarrar.

Vai fazer três meses (que tô no Rio). Parece que eu tô em casa, normal. A única diferença que eu vejo aqui é que o lugar que eu tô ficando é mais próximo do Centro. E o local que eu morava lá no Espírito Santo é um pouquinho mais afastado, por ser periferia, da região do centro da cidade. (Eu) morava na região de Serra no Espírito Santo. Assim, é longe porque a gente tem que pegar duas conduções pra chegar lá (no centro da cidade). Aqui eu vejo que tem (ônibus) direto e vários outros meios. Lá só tem ônibus, não tem trem, não tem metrô, não tem nada.

Na questão da cultura a questão aqui é mais – não sei se é a palavra certa – impregnada. As pessoas participam muito mais das coisas aqui. As pessoas são mais ativas. Já lá, quem mora mais afastado, a gente não tem esse costume de participar tanto. Já assim, em Madureira, por exemplo o pessoal da Baixada (Fluminense) vai de longe participar de um evento lá. O primeiro local que eu conheci (no Rio) foi Madureira, que é conhecido pelo samba e essa questão toda. Então foi ali que eu me encontrei. (A questão da representatividade) foi totalmente (importante). Foi mais isso, esse costume das festas, do povo.

(Sobre a violência assustar antes de vir pra cá) eu acho que nem tanto porque o lugar que eu moro (no ES) também é marcado pela questão do tráfico, então desde quando eu era pequena eu sempre vi essa questão de tiroteio e essas coisas assim. E o local que eu moro em Madureira eu vejo que não é assim também. Tipo assim, é muito diferente do lugar que eu morava. Eu não vejo questão de tiroteio assim, de assalto na rua. Já no meu bairro tinha toda essa questão de assalto, de gente matando gente por conta de assalto também”.

Família e Sexualidade

“ (A relação com meus pais) é marcada por ser boa e ao mesmo tempo ruim. Meu pai é pastor evangélico e minha mãe é católica. A questão de eu me relacionar com uma mulher, pra eles, é muito difícil. . E meu pai tem 66 anos e minha mãe tem 64 anos. Eu não pensei nessas questões todas de idade e joguei a bomba. Falei e meu pai meio que não acreditou em relação a isso e minha mãe também ficou em dúvida. Mas aí depois que eles viram que era realmente isso meu pai disse “você faz suas coisas pra lá no lugar em que você esteja porque aqui na minha frente não”. Minha mãe falou a mesma coisa e ficou falando em relação à Deus, que Deus não quer isso, pra mim orar. Falou um montão de coisas assim.

Só ficava me falando ‘vamos pra igreja’. Obrigar não, mas ‘vamos orar’, ‘vai rezar’. Mas só minha mãe. Meu pai ele sempre ficou calado. E minha mãe já falou coisas terríveis, já falou assim: ‘isso é um demônio que está em você’. E aí a minha reação (é) que eu fiquei um tempo fora de casa, uns dias. Porque eu não conseguia (me deixou triste). Eu fiquei na casa da pessoa com que me relacionava. E nesse época eu até comecei a fazer terapia em relação a isso e falei com a psicóloga o que tava acontecendo.

Foi meio uma loucura assim. Eu tive meu primeiro namorado, quando comecei nessa questão de conhecer pessoas e me relacionar. Aí eu conversando com ele essas questões todas e ele falou também que era bissexual, que já tinha ficado com homens. Porque até então eu já admirava uma pessoa, só que eu ficava com medo de falar por conta do relacionamento. E a partir disso eu tive eu acabar com meu relacionamento porque eu gostei de ficar com meninas (risos).

Eu não consigo (me definir), mas quando me perguntam eu digo que sou bissexual. Eu acho que tinha 22 anos (quando me descobri). Eu acho que eles, pelo menos minha mãe, como ela é super protetora ela tenta meio que deixar fluir assim. Porque quando eu falo com ela essa questão tipo ‘vou pra casa da minha namorada’ e essas coisas ela fala ‘ah minha filha, meu Deus, vai orar’. Ela só fala isso. Mas antes ela falava várias coisas que doíam. Já viram (minha namorada) porque na minha formatura eu falei pra eles que ela ia tá. Aí ela foi e minha mãe não teve uma reação boa nessa época, ela ficou (falando) ‘ah vamos embora logo porque eu não quero ficar aqui’. E se retirou do local”.

Religião

“Sim, desde criança (ia pra igreja). Já fui pra igreja católica, depois fui da igreja evangélica do meu pai. Até uns 22 anos antes de entrar na universidade eu era da igreja. Eu acho que (a saída da igreja) foi muito a questão de eu querer, porque eu era uma pessoa muito certinha. Eu era isso ou é isso. E como eu vi que eu não estava fazendo as coisas certinhas por conta da religião, aí foi nisso que eu peguei e saí porque eu não conseguia mais (seguir) as regras. Era (igreja) Batista, porém não podia se relacionar sexualmente com as pessoas”.

Jovem, Negra e bissexual

“Eu acho que sim (traz mais peso) porque, por exemplo, quando eu estava conhecendo a minha namorada a gente estava saindo nos primeiros dias, aí a gente estava se despedindo num ponto e um cara lá começou a xingar e falar um monte de coisas, ficou de cara feia. Eu fiquei até com medo dela pegar o ônibus, mas ela conseguiu pegar e chegou em casa.

Como a gente é mais feminina, porque tem lésbicas que se vestem (mais masculinizadas) as pessoas olham assim e (por conta do machismo) os homens até gostam de ver. Mas a gente fica com medo em relação a isso também de o cara ficar olhando pra gente e fazer várias coisas. Eu acho que o ataque foi mais bifobia, porque se a gente tivesse lá sentada e eu desse tchau pra ela normal, não ia acontecer nada. Mas como a gente estava se abraçando, aí foi por isso.

Depois disso a gente não anda de mãos dadas porque a gente tem medo. Sim (sentimos falta de fazer isso). Quando ela veio aqui ela até falou ‘ah meu pai falou assim que não é pra gente andar de mãos dadas’. Aí ela não encostou em mim em nenhum momento quando a gente saiu pra passear no Rio de Janeiro, porque ele tem essa questão de violência. Eu não sei dizer (se tem mais violência LGBT aqui no RJ do que no ES). Eu acho que é a mesma coisa”.

Universidade e Mestrado

“Eu fiz Serviço Social. Até então era só Biologia, mas eu pensei em relação de salário, de emprego e achei o Serviço Social mais acessível. Foi pública (na UFES). O tema (que marcou) foi sobre as comunidades quilombolas, a comissão das comunidades quilombolas. Até então a questão de ser negra, eu sabia que era negra, mas não me colocava como negra. Então quando eu entro na universidade e começo a participar de coletivos e depois grupos de estudos sobre a questão étnico-racial e de um núcleo também sobre Direitos Humanos, eu começo a me inserir nessa questão.

Mas foi a questão étnico-racial que me tocou bastante também, pra me posicionar enquanto mulher, enquanto negra. Eu acho que na minha época assim de juventude e adolescente não tinha tanto essa questão das pessoas, eu acho, pelo menos na questão da periferia de se colocar como negra. Era moreninha e essa questão toda. Aí depois eu passei a compreender essa questão e passei a me colocar como negra. Faço (mestrado em) Relações Étnico-raciais no CEFET.

A questão das comunidades quilombolas foi uma das experiências que marcaram a minha trajetória acadêmica. Até então eu não sabia que existia e que, na verdade, lá (no ES) é muito difícil as pessoas saberem dessas comunidades. Mas as quilombolas eu não sabia e numa dessas visitas, foi bem interessante. Eu acho bastante importante a gente conhecer a história dessas comunidades que até então foram apagadas. Pelo menos no ES não tem tanto conhecimento ou nem sabe que existe”.

Ataque às universidades

“Ah, me afeta totalmente. Ontem eu participei de uma reunião lá no CEFET e eles falaram que até o mestrado corre o risco de ser cortado. Porque parece que é uma tentativa de como (se) o CEFET fosse um laboratório pro programa Future-se, aí eles estão tentando cortar. E a questão da bolsa nem eles sabem se a questão do orçamento vai poder utilizar pro próximo trimestre. Eles não sabem.

Sim, (me complica), porque a gente (eu e meus pais) estava pensando justamente isso. Eles me ajudariam inicialmente e depois eu conseguiria bolsa e continuava tranquilamente, porém com isso eu não sei o que vai acontecer. Comecei a me inscrever em concursos e processos seletivos pra vê se sei lá, dá um jeito”.

Racismo

“Ah, na infância assim, nas séries iniciais eu ficava muito sozinha e foi uma coisa que me marcou muito e me marca até hoje. Na questão de eu ser muito fechada, não se comunicar tanto porque eu achava que as pessoas eram superiores a mim. Principalmente as pessoas brancas. Porque eu tinha essa imaginário que era inferior e eu sempre me colocava de cabeça pra baixo, não olhava nos olhos das pessoas, não falava nada.

E teve uma vez que um menino pegou – e eu não sei se porque – mas do nada ele me escolheu, no meio de um monte de gente, e cuspiu água na minha cara. Aí no dia eu comecei a chorar, chorar, não consegui parar de chorar. Até que a professora perguntou o que aconteceu e eu falei que ele tinha jogado água na minha cara. Não tem outra justificativa. Porque eu era uma pessoa que não brigava com ninguém, quieta no meu canto, conversava com uma pessoa da sala. Eu acho que consigo (reagir hoje em dia), eu acho que consigo ter alguma ação, alguma conversa, levar alguma palavra pra essa pessoa”.

Prevenção

“Olha, a gente conversa sim. Sobre ir no médico, fazer exames, essas questões assim voltadas pra questão de exames. Porque quando a gente começou a se relacionar eu falei pra ela que eu já tinha feito exames e essas coisas assim. E ela também falou a mesma coisa. Mas até então só em relação a isso mesmo.

Eu nunca vi nada em relação a isso (prevenção entre duas mulheres). Nunca vi nada. A gente vai mais, assim, em questão de mulher de se cuidar. Essas coisas assim. Mas para a população LGBT não. Na internet (é onde tiro dúvidas sobre isso). Se eu vejo que é uma coisa muito ruim eu vou no médico. Porque, às vezes, tipo assim tá escrito coisas muito ruins (na internet), aí eu fico preocupada e vou no médico”.

HIV/AIDS

“Já tive medo, mas nunca pensei muito nisso.  Eu acho que em relação a isso tem também (o jovem não querer usar mais camisinha). Eu acho que (é porque) atrapalha. Eu tinha alergia (na época que namorava homens), então era muito difícil (usar camisinha). Aí às vezes eu tomava o remédio pra não usar.

Eu acho que (o jovem) perdeu (o medo do HIV). Eu acho que se fala menos (do assunto e o jovem) confia muito no outro parceiro, na questão só da palavra mesmo. Eu acho porque a pessoa fica muito acomodada (sobre o uso da PEP e da PrEP) também em relação a isso”.

Futuro

“No lado profissional eu pretendo continuar estudando e fazer um Doutorado e tentar fazer um concurso pra professor em alguma universidade. Eu pretendo dar aula, apesar da timidez. Mas é isso. Qualquer lugar que eu consiga uma oportunidade eu espero ir. Não sou muito apegada ao lugar em que esteja não.

No lado pessoal pretendo casar com a pessoa que estou hoje”.

Texto: Jean Pierry Oliveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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