Seja na internet, nos dicionários, nos livros ou na faculdade. O significado de Sociologia será o mesmo e, geralmente, vai ser descrito como: “estudo científico da organização e do funcionamento das sociedades humanas e das leis fundamentais que regem as relações sociais, as instituições etc”. E foi justamente em busca dessa procura que o carioca Marlon* foi atrás. Mesmo sem saber que respostas a área o traria, paralelamente e talvez, seja justamente a partir dela que ele vêm apoiando-se em análises para lidar com todas as intempéries provocada pela descoberta de seu status positivo para o HIV há sete anos.
Filho único, morador da zona sul carioca, doutorando na área de Sociologia e aos 26 anos Marlon ainda não é totalmente assumido para seus pais e por isso vela sua homossexualidade como uma forma de defesa. Segundo ele, afinal “o senso comum compra a ideia de sorologia + homossexualidade. Isso é um pacote de senso comum. Pacote que hoje, empiricamente, não se sustenta. Só que nesse pacote familiar é muito complexo pra mim poder falar sobre homossexualidade, porque senão vou ter que reparar meus pais duas vezes. E é muito difícil falar de reparação porque parece que eu sou culpado. Parece que eu sou agente de vilania familiar, a famosa ‘ovelha desgarrada’’.
Obstante à isso, agente de vilania mesmo foi o que se deparou num famoso aplicativo de relacionamento. De maneira torpe, criminosa e fria o jovem sofreu um violento caso de sorofobia praticado por um anônimo travestido de calculismo que o ameaçou dizendo saber do ‘segredinho’ que ele escondia, inquirindo sobre ‘estar passando HIV para os outros’ e ameaçando contar para todos os seus conhecidos a sua sorologia. Um duro golpe em sua estabilidade emocional. “Eu eu fui em busca de justiça. Porque a lei penal que protege os soropositivos não é uma lei completa, não é uma lei rigorosa”. Mas que com muita altivez e consciência – do alto de sua vã sociologia – ganhou novos contornos no que tange ou entende-se pelo conceito de justiça. Isto é, Marlon tirou dessa (e de uma primeira sorofobia praticada até então por uma amiga) outros ensinamentos e aprendizados, que compartilhados abaixo te convidam para entender melhor sua vicissitude. Confira a entrevista na íntegra:
Vida e Formação Acadêmica
“Meu doutorado é em Sociologia. Eu sou formado em Sociologia, mestrado em Sociologia e doutorado em Sociologia. Fiz a Universidade de Brasília, depois a UFRJ com mestrado e agora a UERJ no doutorado. (Fui estudar em Brasília) através de um programada chamado PAS (Programa de Avaliação Seriada) – que eu nem sei mais se existe -, mas era um projeto que tinha com a escola em que você fazia três exames (do 1º ao 3º ano) e o saldo desses três exames deixaram você entrar no curso pré selecionado. Mas eu acho que na época eu tinha dúvidas de muitas coisas. Eu sempre tive um perfil muito caótico, mas eu sempre tive um perfil de comunicador e gostava muito naquela época, namorava com a questão de Relações Internacionais, mas por motivos de eu não ser uma pessoa que se dedica muito pros estudos – ainda mais quando envolve Matemática, Física e Química que eu não gosto – e precisava pra esses cursos maiores de Comunicação. E aí acabou que uma menina, que até hoje eu não sei o nome dela, ela foi fazer uma tutoria no meu colégio – que é quando o professor diz que aquela pessoa vai ficar na sala de aula observando vocês – e aí eu fui fazer xixi e falo que até hoje eu sou sociólogo por causa desse xixi e encontrei ela no corredor. Aí eu perguntei qual era a área dela, que é uma curiosidade meio ingênua, e ela disse ‘eu faço Sociologia’ e é isso. Aí eu perguntei ‘ah, me conta mais’, aí ela disse de Ciências Sociais, de suas pesquisas sobre fenômenos sociais, classe, gênero, violência e aquilo ficou na minha cabeça. Eu lembro que eu perguntei a ela se dava dinheiro e ela disse ‘ah tem uns cargos aí que consegue trabalhar na Petrobrás’. Até hoje eu estou esperando trabalhar na Petrobrás (risos). E eu não sei, ficou em mim. E desde então eu selecionei Sociologia, passei e é isso.
Até hoje eu não decidi onde me enquadro na Sociologia, porque minha graduação naquela época era Cultura. Eu gostava muito de Sociologia da Cultura, apesar de não saber muito bem o que que é issoa até hoje, e eu acabei fazendo uma monografia sobre Políticas Culturais. Eu busquei entender como o governo implementa políticas de ordem cultural ou políticas de ordem social, mas pensando no âmbito cultural e aí eu entrevistei vários gestores de cultura de bairros de Brasília pra sabser se a interpretação que eles tinham da agenda de cultura (se) diferenciavam e porque. E isso foi muito bom pra mim. Acabou que eu propus fazer um Mestrado nessa área, propus esse projeto no Rio de Janeiro e não consegui fazer, porque quando a gente conhece o orientador, o orientador muda tudo e ocasionou na minha vida que eu passei por um ógão de pesquisa e lá eu fiz muita pesquisa de análises de campos científicos. Por exemplo, onde estão os fonoaudiólgos do Brasil? O que eles estudam? Ou então, onde estão os pesquisadores em saúde?
E acaba que hoje eu estou ali na parte de Sociologia das competências. Sociologia de como se constrói pesquisa, pesquisa na saúde, agora tô fazendo pesquisa sobre como a pesquisa sociológica no Brasil tá sendo construída. É meu objeto de doutorado. Então eu faço essa pesquisa de doutorado, de quais são essas especializações, quais são os temas e as agendas que a Sociologia propõe nos tempos atuais. E divido meu tempo em quem são os pesquisadores em políticas culturais, onde eles estão, quais são as instituições, como se aproximam, como se afastam . É esse meu tempo”.
Juventude, Homossexualidade e Sorofobia
“Esse assunto da sorologia é um grande livrão que eu tenho que buscar qual capítulo estou pra poder falar: sorologia no dia a dia, sorologia no ambiente familiar, sociologia no ambiente sociológico. São muitos capítulos dessa história ainda não escrita que eu tenho que acessar, então é muito complexa essa pergunta. É uma pergunta muito livre sobre sorologia pra mim. Mas uma coisa que eu posso falar que atravessa esses capítulos e que eu tenho defrontado muito agora é a constância dos silenciamentos de tratar desse assunto em diversas instâncias da vida. E que, de certa forma, esse acúmulo de silenciamento uma hora volta pra você em termos de dúvidas, em termos de afeto, em termos de adequação.
Então, por exemplo, se a gente pega o capítulo família eu sempre tive um incômodo – no meu caso é até curioso, que é um caso errado – que minha família soube antes de mim (sobre a sorologia) em efeito cascata: minha mãe soube, meu pai soube, minha tia soube, minha avó soube, minha prima e até hoje eu tô descobrindo quem sabe. Mas mesmo que seja um ambiente muito acolhedor é uma construção, sabe. Assim, seus pais precisam entender também o que é a sorologia, te amar, entender que amam mais que qualquer preconceito e aprender com você ou mais que você porque eles tem que aprender o nível médico e aprender também um amparo psicológico pra lidar com essa pessoa, porque um soropositivo num primeito momento ele tá desamparado emocionalmente porque ele não sabe onde isso via levar. Então é uma carga muito difícil pra família.
Isso acaba na balança, eu passei por muitos anos achando que na balança entre prós e contras, a balança dessa busca de informação desse cuidado que meus pais tiveram era mais positivo do que qualquer outra coisa. Só que eu não consigo falar de HIV com meus pais. Isso é muito difícil porque todo soropositivo uma hora tem necessidade de falar. Às vezes falar num tom mais preocupado, às vezes falar num tom mais reflexivo, são várias formas de se falar sobre HIV. E no ambiente familiar é complexo porque quando eu digo pro meu pai que eu preciso falar sobre HIV, ele me responde ‘você está bem e ponto’. Eu acho que no meu caso é muito importante isso. Nesse caso, geralmente, o senso comum compra a ideia de sorologia + homossexualidade. Isso é um pacote de senso comum. Pacote que hoje, empiricamente, não se sustenta. Só que nesse pacote familiar é muito complexo pra mim poder falar sobre homossexualidade, porque senão vou ter que reparar meus pais duas vezes. E é muito difícil falar de reparação porque parece que eu sou culpado. Parece que eu sou agente de vilania familiar, a famosa ‘ovelha desgarrada’, porque – e eu tô parando pra pensar nisso agora – eu ser descoberto soropositivo pelos meus pais me colocou num terceiro armário depois da minha homossexualidade. Porque se eu estava num processo de descoberta homossexual, eu tenho 26 anos, e me descobri soropositivo aos 19 anos. Eu descobri que sou homossexual há muito tempo, mas eu comecei a exercer a minha homossexualidade com 18, 17. Então aquele processo de 17-18 anos, da porra loucagem, de você se encontrar – não necessariamente no caso de todo mundo -, mas no meu caso foi em um ambiente universitário, um ambiente muito aberto em que eu pude conviver e pude também entrar em contato com o mundo da bebida, com o mundo do cigarro, com o mundo das festas enfim.
Eu não tive tempo suficiente pra poder assentar essas minhas experiências e afetividades homossexuais pra lidar no âmbito familiar. Eu lidei com isso no âmbito universitário entre amigos. E eu acho que o que viria depois disso seria lidar no âmbito familiar. No momento que você se entende melhor, que você vê ‘opa as pessoas gostam de mim sendo gay ou não’ talvez eu tivesse sentido mais encorajamento de falar pros meus pais. Só que no momento que meus pais descobrem com 19 anos que eu sou soropositivo, falar que eu também sou homossexual seria um duplo tiro. Seria um triplo tiro. Então eu volto pra casa, eu volto no joga da vida quatro casas no que diz respeito a falar sobre homossexualidade. E eu estou nisso até hoje há oito anos. Fazem quase oito anos. E na verdade é uma estrutura de violência muito própria, talvez não à mim, mas a muitas pessoas.
Eu acho que ser soropositivo, mesmo que sua família te aceite, e queira te amar e te ame, é um ponto de peso familiar tão grande que você não quer contribuir para que pese mais ainda. E por isso eu sou completamente impossibilitado de falar de homossexualidade lá em casa, apesar de que sete anos depois, as coisas melhoraram. Só que esse processo da homossexualidade, da descoberta, de falar que sou homossexual em casa foi interrompido pelo processo da conversão soropositiva. Engraçado que eu já fui confrontado antes até da conversão pelo meu pai, especificamente, num momento em que ele me encontrou com um garoto e aí ele perguntou se eu era gay e que estava tudo bem pra ele isso. A minha mãe semana retrasada perguntou se eu estava andando com viado, com esse termo.
A pergunta dela foi extremamente homofóbica, foi violenta. Antigamente era mais silenciado. Antigamente eles falavam de mulher. Hoje não falam mais sobre mulheres. Hoje também uma coisa muito curiosa que eu sinto no ar é que eles não imputam mais em mim a construção de família. Parece que eles, de alguma forma, silenciosamente, não querem trazer pra mim a responsabilidade de constituir família haja visto que eu sou filho único. Filho único de uma mãe quarentona. Então, de certa forma, isso também entra pra jogo, porque parece no ambiente deles – e eu não sei se tá bem resolvido – que eu posso ter filhos. Não sei também se tá resolvido na minha cabeça por questões emocionais. Por questões financeiras, por questões de tratamento. E isso faz com que minha mãe deixasse ao longo do tempo de falar sobre filhos, de falar sobre família, mulheres. Porque eu acho que tem muito mais a ver com o medo de despertar um sentimento ruim em mim, do que com o desejo compulsório de heterossexualidade.
E voltando a chave da homossexualidade, o meu pai já se mostrou muito mais aberto com relação a isso. Só que ao mesmo tempo eu sei que se faço esse movimento com meu pai, eu acho que um dia eu vou fazer, eu acho que essa porta está aberta pra mim. Na hora que minha mãe perguntou pra mim se eu estava andando com viado ele virou pra ele e disse ‘que pergunta é essa?! Que coisa absurda!’. O que foi interessante naquilo é que eu não consegui ficar quieto. Eu confrontei. Não da forma assumindo minha homossexualidade, mas falei ‘que absurdo. Você é uma pessoa estudada, que tem experiência, que não é (aquela) que não tem conhecimento sobre as coisas’ e eu também não acho que passa por ter ou não ter mais conhecimento, mas passa pelo lado afetivo das pessoas. As pessoas são boas porque são afetivas. As pessoas não são boas porque não tem conhecimento. Isso é um assunto que eu adoro falar: que é a situação ‘soropositivos só vão ser bem vistos e amados se as pessoas tiverem pré informações sobre eles antes’. Que absurdo né. Quer dizer então que uma pessoa sem informação nenhuma, no interior do Brasil, não podem amar seus filhos soropositivos porque ela não tem informação pra amar?
Eu tive uma discussão gigante, inclusive há dois meses atrás uma das minhas saídas do armário na mesa de bar com três amigas, foi que uma das amigas – hoje ex-amiga – as três não sabendo da minha situação e souberam na hora porque eu explodi na mesa de bar. Contando rapidamente, mas eu estava na mesa de bar com duas amigas e uma terceira e eu sou muito próximo das duas, então eu falo que a minha direita tinha uma grande amiga e na minha esquerda tinha uma grande amiga e no meio tinha uma outra amiga. E aí por algum motivo começou a se falar de soropositivos e essas questões. E é muito ruim você ser soropositivo e não poder falar de seu lugar de fala, numa mesa de bar, onde as pessoas estão falando sobre esse assunto. E você quer, não só ouvir. Porque de certa forma você sente que tem um pouquinho de conhecimento sobre o assunto, porque você é soropositivo no final das contas.
E aí essa amiga começou a falar ‘ah eu acho que temos que levar em consideração a dificuldade das pessoas soronegativas entenderem e quererem estar com uma pessoa soropositiva. A pessoa soropositiva é uma pessoa que está potencialmente morrendo e também, eu acho, que só vai amá-la quem tiver informação. Só é possível amar uma pessoa soropositiva se a pessoa tiver informação de que o vírus não passa por mosquito, de que o vírus não passa porque você beijou e de que a pessoa é saudável’. Aí isso me incomodou profundamente porque tem dois erros: primeiro porque eu não estou potencialmente morrendo, acredito eu, porque estou aqui bem e inteiro. E outro assunto é que isso me despertou a pergunta que eu estava falando antes, que informação é o que leva a se amar? Será que agora eu só posso traçar caminhos amorosos com universitários brancos, doutorandos? Será que é esse o caminho? Não foi essa caminho que minha mãe percursou. Minha mãe não seguiu esse caminho. Minha mãe não é universitária, minha mãe tem um conhecimento básico equiparado a um conhecimento médio no Brasil, que não fez ensino superior e eu não sei nem se fez ensino médio completo. E ela teve que me amar durante o processo de adquirir conhecimento e de adquirir informação. Ou seja, o afeto é o que faz as pessoas se gostarem. E isso é uma coisa muito importante para qualquer instância fóbica. É o afeto que faz uma pessoa entender uma pessoa trans. É o afeto que faz uma pessoa entender uma pessoa soropositiva. É o afeto que faz uma pessoa entender o que é o racismo estrutural. E enquanto a gente fica vendendo essa ideia de que a informação é a principal ferramenta de inclusão, eu não vou estar gostando disso. Porque eu acho que a informação é muito relevante, a informação faz com que as pessoas saibam com o que estão lidando, mas a gente tem que contar com um mundo mais afetuoso. Mais solidário.
Na verdade, essa questão é muito complexa para nós soropositivos, identificar sorofobia e também saber como responder sorofobia. É muito difícil porque quando você enfrenta sorofobia você tem que se revelar enquanto soropositivo. Então eu digo que na verdade foram duas sorofobias: a primeira foi a fala e a segunda foi que, pra que eu respondesse, eu deveria vir à público. Então o meu vir à público não foi um vir gratuito e autêntico. Foi um vir à público imposto e num bar, num sábado a noite, quando eu quero relaxar, em que tem pessoas ao meu redor, que tem amigas ao meu redor. Depois que ela cometeu essa série de falas sorofóbicas foi: ‘eu sou soropositivo há sete anos e as pessoas com as quais eu namorei elas tiveram muita disposição de me amar antes de se informar’. E aí ela continuou (risos). E aí foi quando eu experimentei a sensação da retirado do lugar de fala. Porque é muito importante. A gente acha que o lugar de fala, enfim, eu sou homem, sou branco, cis(gênero), então o meu lugar de fala sempre foi muito privilegiado. Eu tenho consciência do privilégio em que todas as minhas identidades se encontram. E que, de certa forma, me privilegiam até nas outras identidades nas quais eu não sou tão privilegiado como a identidade homossexual. É mais fácil você ser um homem branco gay do que um homem negro gay. Mas foi a primeira vez que eu experimentei o lugar de fala como uma pessoa sorológica em que mesmo num ambiente de privilégio, que eu sei que eu estou, eu tive que falar de mim, do ponto de vista meu, de minha experiência própria de que ela não tem conhecimento. E que ela não experimentou aquilo, ela não viveu aquilo, não sabe o que é aquilo por sete anos.
Então esse lugar de fala na hora que eu falei, na hora que eu explodi, foi muito militante do ponto de vista em que eu dei uma resposta militante forçado. Mas a continuação do debate dela virar e falar ‘tudo bem, você é soropositivo, mas você acha que foi fácil para os seus exs-namorados namorarem você?’, isso foi muito violento. (E sobre as outras amigas na mesa) Ah isso foi muito maravilhoso, foi o ponto ápice da história (a reação das demais amigas). Porque antes das duas saberem da minha sorologia, as duas estavam defendendo com argumentos extremamente éticos, extremamente afetivos com relação as pessoas soropositivas frente à um movimento sorofóbico. E foi o que eu falei pra elas duas depois, nós ficamos até sete da manhã nesse bar – depois que a menina foi embora – ‘é tão importante o que vocês trouxeram pra essa mesa de bar. Porque vocês trouxeram afetos, porque eu poderia ter voltado pra casa muito mais desconstruído e destruído. E vocês me permitiram, antes da minha fala, um lugar de fala. Porque tinham duas pessoas falando por mim antes de saberem da minha sorologia.
Se a sociedade fosse mais assim a gente evitaria comportamentos soropositivos que, às vezes, são revelados publicamente e não são questionados. Talvez ajudasse no nosso ambiente familiar, talvez ajudasse no nosso ambiente profissional, às vezes ajudariam nos nossos ambientes emocionais e psicológicos se a gente tivesse exércitos ao nosso redor, como eu tive naquela mesa de bar. Então é muito importante as pessoas terem informações e os afetos porque, na verdade, elas podem entrar nessa luta com você.
(Sobre sentir-se culpado por revelar ou não revelar a homossexualidade para seus pais) eu acho que no momento que eu assumo uma identidade de culpa eu corroboro com um movimento homofóbico e sorofóbico. Então assim, eu não admito posição de culpa. Eu não admito postura de culpa, pelo máximo que meu comportamento seja culpabilizado. Mas eu sinto que se eu falar pra minha família que eu sou homossexual, eu faço com que eles tenham que passar por um processo aos quais eu acho que eles não estão preparados. E, de certa forma, é proteção pessoal eu não passar por esse processo. E essa proteção pessoal ela não é uma proteção do ponto de vista ‘nossa eu soy gay, meu Deus, que horrível ser gay’. Essa proteção pessoal é: eu não sei se no meu estado de vida eu preciso desse dilema familiar pra construir minha história. E por isso que eu acho muito importante esse recado, até para outras pessoas soropositivas, que não podem revelar sua homossexualidade em casa, que não se sintam culpados porque você já tem que passar por processos muito difíceis. Tem famílias que até hoje não sabem o que é HIV e tem filhos soropositivos, tem filhas soropositivas. Então, às vezes, é um processo de se poupar que faz todo sentido pra sua vida, pro momento que você tá vivendo.
Eu acho que na verdade a gente tem de lidar com a vida de uma forma situacional. Pra que consiga entender cada situação e como você lida com cada situação. Então você vai aprendendo várias coisas. Por isso eu acho que, na verdade, numa luta – eu não entrei em detalhe sobre a sorofobia ainda – em que você quer justiça, você às vezes não percebe que o que você quer é uma terapia entre as pessoas que você ama e entre as pessoas que você conhece. E em algum momento quando alguém me abordou e queria falar da minha identidade pré dizendo que sabia do meu ‘segredinho’ e que perguntou se eu estava passando HIV para outras pessoas e meio que numa retórica de que ‘vou falar para outras pessoas’, eu fui em busca de justiça. Eu preciso da justiça, ir atrás dos direitos humanos, aí eu vim aqui na ABIA, fui atrás de ativistas, falei com três advogados e falei ‘eu quero justiça!’. Porque a lei penal que protege os soropositivos não é uma lei completa, não é uma lei rigorosa. Porque o ambiente penal ele deve ser o ambiente que mais deve ser evitado, porque senão todo mundo vai tá preso. Porque todo mundo comete coisa errada.
Então, na verdade, o penal tem que ser o último recurso. Então nesse caso que a pessoa chega pra mum num ambiente privado e fala que sabe do meu segredinho e me pergunta se eu tô passando HIV pra outras pessoas, não configura na lei um crime. Não configura aspecto penal. Eu acredito que, certamente, deveria. Mas o que isso me fez entender é que nessa luta situacional que eu estou passando agora, a luta penal não vai me dar resposta. Porque a luta penal não está preparada e eu não posso buscar justiça via justiça penal. Aí pessoas falaram em processo civil, processo contra o aplicativo com o qual isso aconteceu, mas eu cheguei numa conclusão que tem a ver com a repaginação que a justiça, na verdade, é a terapia com a qual eu passei com meus amigos, com a qual eu passei aqui, se é a terapia com a qual eu passei com algumas pessoas do trabalho que souberam da situação.
Porque uma pessoa que chega pra outra e diz que sabe da sua condição de portador de HIV e pergunta se você tá transmitindo criminalmente o vírus e te ameaça sabendo do seu segredo, se essa pessoa se esbarra com uma pessoa que não tem esse ‘cais’, se essa pessoa faz isso com uma pessoa que está extremamente fragilizada, essa pessoa ativa uma bomba ou uma ‘arma’. Essa pessoa tá dando uma faca, uma arma, tá empurrando de um edifício. Então assim, à vezes eu paro pra pensar ‘será que foi pequeno o que aconteceu comigo?’. Não foi. Isso acontece o tempo todo. Isso acontece todas as horas e as pessoas não falam sobre isso, as instituições não querem falar sobre isso, os aplicativos naõ querem falar sobre isso. A internet parece uma terra sem lei. Não deveria ser, mas é. E as pessoas estão vindo à público com suas violências, com seus crimes anonimamente. Porque elas sentem que anonimamente elas podem tudo. Eu acho que uma luta que tem que ser feita hoje é criar mecanismos de desanonimizar essas pessoas. Criar mecanismos de descortinar essas pessoas. Porque o que acontece é o jogo de autorias, o texto que eu escrevi. Porque eu não posso vir à público porque eu tenho medo da sociedade. Essa pessoa não pode vir à público porque ela está agindo e sendo criminosa com uma outra pessoa. Então nem eu posso dar essa autoria e nem ela pode dar essa autoria. Então como que a gente constrói justiça, como que a gente constrói reparação num direito em que a gente é totalmente impessoalizado, numa justiça que é totalmente nomeável, em que você precisa ter nome pra fazer o processo jurídico? Se a gente não consegue trazer essas autorias pra jogo, não consegue fazer nada. E foi isso que aconteceu comigo.
E aí um dos processos sorofóbicos que decorreu da sorofobia dessa pessoa foi: pra eu responder isso eu preciso vir à público. Ou seja, a minha autoria foi chamada à público, foi imposta pra ser publicizada e eu responder a falta de autoria dele. É uma outra forma de violência. E o que acontece, vamos pegar por exemplo o aplicativo. O aplicativo em que eu passei foi um aplicativo de encontro, como qualquer pessoa que quer fazer sexo e se encontrar com outra pessoa – ainda tem isso: o preconceito de você contar onde aconteceu. Porque a sociedade ‘nossa, você estava lá, você queria’. Não. Todo mundo quer fazer sexo, quase todo mundo porque a gente também respeita quem é assexual, mas as pessoas tendem a querer se encontrar com outras pessoas. Então eu não fiz nada de errado naquele aplicativo. Agora, o momento em que o aplicativo me responde falando que ‘no momento em que a pessoa excluiu o perfil dela, perdeu-se os dados’ e ‘não se tem mais a possibilidade de recuperar a autoria’ eu tenho duas imaginações: a primeira é mentira. Eu acho que tudo hoje deixa pegada digital e outra coisa a própria polícia disse que isso é mentira e é isso. A mentira se transforma em facto. Eles falam isso. E a outra coisa é, se na sua política de aplicativo você fala contra a sorofobia, coisa que é dita, porque então você não implementa instrumentos,direitos e formas de você proteger pessoas ou te possibilitar que elas sejam reparadas? Porque que vocês não colocam um codificador no aplicativo que mostra e transforma isso em um momento que você congela a conta dessa pessoa pra que possa ser analisada depois? Pra depois saber se a pessoa foi sorofóbica você poder responder. E aí sabe o que acontece? O aplicativo é cúmplice de uma sorofobia, então é tão criminoso quanto a internet. Aí eles falam que o Google e a Apple não permitem. Então Google e Apple também são cúmplices. Então é uma rede de cumplicidade que permite que coisas assim aconteçam. E uma coisa muito triste nisso tudo é que o aplicativo é voltado pra comunidade gay. Então hoje você ser gay não significa não te isenta de nada, nem de não sofrer sorofobia (no app). Então é muito importante que pra combater essa rede de cumplicidade do mal a gente consiga construir redes de cumplicidade do bem”.
Sexo
“Não sou religioso, mas uso essa expressão: graças a Deus eu tive duas pessoas maravilhosas em minha vida, que souberam que eu era soropositivo durante o início de namoro e lutaram à favor e hoje são até mais ativistas do que eu. São socialmente soropositivos, adorei a expressão. Mas sabe uma coisa sobre isso: eu nunca pensei assim ‘ah eu vou transar com uma pessoa e ai eu sou soropositivo. E agora?’. Nunca. Mas sabe um pensamento que fica na minha cabeça: se eu estou transando com uma pessoa que eu enxergo traços de uma pessoa ruim – ruim não porque é difícil você ver isso na outra a olho nu – , mas se eu estiver deitando com uma pessoa que é fóbica na minha cabeça isso me broxa. Mas é um processo que eu acho que é pra todas as instâncias da vida, não só na cama e no sexo. Eu acho que isso é uma coisa que muitos soropositivos sabem muito, creio que umas melhores que outras. É um grande filtro e é um filtro autônomo e é um filtro muito automatizado. No momento em que você esbarra com uma pessoa que tem todos os traços sorofóbicos, você não quer essa pessoa na aua vida. Você não quer transar com essa pessoa. Você não quer estar com essa pessoa. E isso faz com que na verdade você esteja se protegendo de pessoas ruins.
Então, na verdade, o HIV ele acaba se transformando numa grande peneira social na qual você mede despêndios e esforços, ganhos e perdas. Algumas pessoas não valem a pena nenhuma. Algumas pessoas você simplesmente percebe que se aquela pessoa não te aceita como soropositivo ou não aceita soropositivos sem nem saber que você é soropositivo, essa pessoa é uma pessoa possivelmente racista, possivelmente machista, possivelmente danosa. Então é isso: sexo é quem vale a pena. Eu acho que depois que você passa por um período de calmaria e você começa a ter mais ciência sobre o que você pode ser, sobre o que você quer ser, sexo acaba se tornando um parâmetro pra você entender se você quer ou não. Lógico que tem momentos mais sexuais, tem momentos mais assexuais, mas eu acho que tem que valer a pena. Essa é a equação. Possa ser que o sexo de aplicativo valha a pena, pode ser que o sexo com mais de uma pessoa valha a pena, pode ser que o sexo com uma pessoa só valha a pena, pode ser que o sexo 50 anos com uma pessoa só valha a pena. Mas tem que valer a pena. Se não vale a pena pra você não é saudável, então não tenho feito sexo desde então porque não tenho encontrado quem valha a pena”.
Infecção de HIV por jovens
“(Acontece) porque a gente ainda vive à sombra e estigma da década de 80 e 90. Eu acho que as pessoas tratam essa questão como anacrônica. Enquanto a sociedade estiver anacrônica a gente vai ter que sofrer muito pra mostrar o quanto falar sobre isso é extremamente saudável. Eu acho que ainda não construímos – voltando a um termo que eu usei – uma rede de conforto e uma rede de resposta pra que a gente possa quebrar esse paradigma que ainda está imposto na sociedade. Esse paradigma ainda de Cazuza.
A gente tem que mostrar primeiro que o ficou não é um absurdo. O que ficou não é um monstro. Que também é importante, que a gente não pode ‘ah que horrível, não vamos falar sobre isso’. Eu acho que o importante é: a gente tem que entender que nós ainda estamos aqui. E os soropositivos ainda estão aqui. Eu acho que na verdade o paradigma está ruindo, ele não se sustenta. O paradigma por si só já está ruindo. Mas a gente precisa criar espaços pra que a visibilidade soropositiva esteja presente.
Não podemos criar apenas políticas de prevenção. Não podemos criar políticas de assepsia. Nós somos uma comunidade, infelizmente, grande mas que felizmente por ser grande, a gente também tem potencial de transformar o paradigma. Só que isso é uma luta do dia a dia, isso é uma luta conjunta, isso é uma luta terapêutica. Então a gente tem que buscar essa terapia juntos e, ao mesmo tempo, construir essa visibilidade. Eu vou te contar uma coisa: eu acho que esse pensamento de que a pessoa se despreocupou da causa, tem que ser problematizado em alguma instância. Eu acho que sim, as pessoas se tornaram menos complicadoras desse assunto, mas é muito difícil você conhecer uma pessoa homossexual em que algum momento o dilema de “se me converti em HIV ou não” não tenha passado. Eu acho que todos os gays aos quais eu me relacionei tiveram traumas enormes, são soronegativos, mas tiveram traumas enormes em algum momento da vida deles por causa da questão do HIV. Então eu acho que esse ápice de que as pessoas continuam convertendo, de que as taxas continuam crescendo não diz respeito a uma folga da sociedade. Diz respeito mais a uma estrutura de preconceito e violência.
É estruturalmente violento e eu acho que na verdade a gente não pode esperar e acusar um indivíduo sobre algo que tá colocado. Então eu acho que a culpa do HIV estar se expandindo seja do jovem que resolveu se descuidar. Eu acho que na verdade ele é uma vítima. Eu acho que a estrutura da violência tá amarrada institucionalmente e a gente ainda precisa desestruturá-la”.
Futuro
“Eu tenho uma resposta pra isso do capítulo em que eu sou soropositivo. Eu acho que no momento em que um soropositivo se coloca numa esfera com muitas pessoas e instituições te sustentando, com muitos esforços coletivos e todos soropositivos, é potencialmente importante. Então, na verdade, eu espero de mim me tornar mais militante com essa causa, porque eu estou acompanhado de exércitos emocionais. Então eu acho que na verdade do ponto de vista da questão soropositiva, eu acho que se sentir amado, se sentir afetado, se sentir amparado faz com que a gente tenha mais voz e leve isso pra outros lugares e pra que outras pessoas saibam se proteger.
Então na verdade como todo soropositivo é um possível, um potencial militante, tem que construir um espaço para que essa questão flua. Então eu acho que a ABIA, por exemplo, os meus amigos, o Salvador e outras pessoas no momento em que elas falam ‘vá e fale e escreva’ eles estão deixando mais claro pra mim que num cenário daqui há três anos, quem sabe, eu posso estar publicamente assumido e estar ajudando nessa luta construindo espaços para que outros soropositivos ajudem junto com soronegativos.
Eles precisam ser ajudados, mas em algum momento, eles tem total força pra ajudar, total força pra enfrentar essa questão”.
*Marlon é um nome fictício utilizado para preservar a identidade do entrevistado.
Texto: Jean Pierry Oliveira