Glauber Rocha (1939-1981), durante toda sua brilhante carreira de cineasta, afirmou que cinema se faz com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. O cineasta defendia a utilização dos meios de produção audiovisual como uma grande ferramenta de serviço da transformação social. Tendo essa frase como um mantra que o diretor Rodrigo Felha, em 2014, lançou o documentário ‘Favela Gay’, uma produção da Luz Mágica, de Cacá Diegues e Renata Almeida Magalhães. Um filme de grande relevância no cenário audiovisual, que foi premiado no Festival do Rio, reverberando no Festival de Cannes e deu origem à série ‘Periferias LGBTQI Brasil‘, que estreia ainda este ano, no Canal Brasil.
“Depois de todo o sucesso do ‘Favela Gay‘, que rendeu muitas reflexões, debates, palestras… em 2018, em parceria com o Canal Brasil, retomamos essa temática extremamente nobre: a vida de homossexuais e transexuais nas periferias do Brasil. Rodamos por várias regiões, como Pará, Distrito Federal, Bahia, Rio Grande do Sul e São Paulo, para compôr uma série com 10 episódio”, explica o diretor, em entrevista ao site Heloisa Tolipan. Rodrigo afirma que foi um dos “primeiros favelados a estudar na cinema na Escola Darcy Ribeiro”.
Segundo Felha é fundamental que a rotina e as dificuldades desses personagens sejam retratadas no cenário audiovisual, já que estão silenciados, em sua grande maioria, nas ficções (retratados muitas vezes de maneira caricata) e também dos discursos políticos. O programa irá tocar em ‘muitas feridas’ da nossa sociedade, pois aborda temas como a questão da violência, da prostituição, do consumo de drogas, da homofobia, mas também superação e alegrias. “Dar voz a essas pessoas é a minha maneira de apoiar a causa, até porque eu sou um agente transformador, com força para gerar força, reflexão e discussão. Então, a ideia foi contar as histórias de pessoas reais, que sofrem preconceito, que têm dificuldades, batalham e também suas alegrias”, enfatiza.
Em todo o mundo, 70 países ainda tratam relações homossexuais como crime. Em 44 deles, a criminalização vale para todos os gêneros. Nos demais, apenas para homens. Em seis, a lei prevê pena de morte. Segundo a ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais), maior organização mundial em defesa dos direitos LGBTI+, na 13ª edição do estudo ‘Homofobia Patrocinada pelo Estado’, no Brasil, a cada 16 horas um gay é agredido ou morto. “Não são apenas números, mas leis que realmente impactam a vida cotidiana de pessoas com diversas orientações sexuais ao redor do mundo”, afirma Ruth Baldacchino, co-secretária-geral da ILGA, no texto de apresentação do estudo. “As leis propositivas fazem toda a diferença: podem contribuir para mudar as atitudes e dizer às pessoas que elas são igualmente dignas de direitos”.
Tendo em mente esses altos índices de homofobia, o cineasta entra nessa batalha com o audiovisual para de maneira ética gerar uma reflexão sobre o tema. Mesmo com a consagração do ‘Favela Gay’, o cineasta afirma ter encontrado uma ‘certa resistência’ durante as gravações da série, por não pertencer a essa comunidade e querer contar essas histórias. “O estar imerso foi imprescindível para quebrar as barreiras e poder me aproximar, de cabeça e peito aberto, dos personagens escolhidos, pois, alguns tinham um tom de desconfiança. Ao longo do processo conseguimos quebrar esse gelo mostrando a seriedade do projeto para essas pessoas que nos acolheram com muito carinho”, conta Rodrigo. Os 10 episódios são costurados pelo olhar periférico dessas pessoas para que todos possam entender a relevância desse projeto. “Não foi um filme em que precisamos montar um quebra-cabeça para abordar todas essas conexões do universo. Queria falar de pessoas, interessadas e interessantes”, ressalta.
Como uma pessoa vinda de uma comunidade Felha, que é cria da Cidade De Deus (CDD), sabe o ‘peso’ e a responsabilidade de retratar uma comunidade na TV. “O público espera muito o lado violento dos moradores de comunidades, mas nós queremos mudar essa realidade”. O diretor que é um dos fundadores da Central Única das Favelas (CUFA), lutador de jiu-jitsu e coordena o Grupo Artístico e Cultural Arteiros, ingressou no cinema a convite do MV Bill e do Celso Ataíde para ‘carregar a bolsa do câmera’ no projeto ‘Falcão, Meninos do Tráfico‘, 2006, um filme de grande importância social e cultural para o Brasil. “Eu passei de carregador de bolsa (risos) para câmera e fotografia. Foi uma grande escola. Eu comecei a conciliar minha vida dentro e fora da favela fazendo conexões, entendendo essas narrativas e potências”. Esse olhar foi fundamental para assinar outros quatro projetos – ‘5 x favela agora por nós mesmos, 2010’, ‘5X Pacificação, 2012’, ‘Vinte – RioFilme, 20 anos do cinema brasileiro, 2013’, Funk ‘Brasil: cinco visões do batidão, 2015’ – além de integrar a equipe da série Cinema de Enredo, do diretor Luiz Antonio Pilar.
“Não existe médico de favela, advogado, economista. Por que tem que existir cineasta de favela?”, dispara Felha, durante a conversa enfatizando que “estar nesse território, me dá uma visão privilegiada, porque eu consigo conciliar um olhar da cidade de dentro para fora, é o meu dia a dia. As comunidades são potências, locais de forte empreendedorismo. Foi difícil tirar esse rótulo de cineasta periférico. A minha câmera tremida era um erro, a do cineasta do asfalto era linguagem. Ao longo da minha carreira venho tentando legitimar a profissão e quebrar esses conceitos”.
No fim, o diretor ressalta que apesar de todos os problemas que as comunidades/ periferias do mundo sofrem, são territórios extremamente ricos de histórias, não é por acaso que Regina Casé, de 2006 a 2009 levou essas regiões para o Fantástico com os programas: Minha Periferia, 2006; Minha Periferia É o Mundo, 2007; e Vem com Tudo, em 2009. A Cidade de Deus ganhou visibilidade com o sucesso do filme Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lun, baseado no livro de Paulo Lins.
Fonte: Heloísa Tolipan