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“Eu entrei pra igreja pra me curar”, conta o jovem estudante de Jornalismo Marcos Furtado sobre a sua homossexualidade. Sincero, ele ainda fala sobre suas experiências na Espanha, racismo, sobre a vivência em Belford Roxo, a vida no evangelho entre outros temas


“There’s always gonna be another mountain/ I’m always gonna want to make it move / Always gonna be an uphill battle / Sometimes I’m going to have to lose / Ain’t about how fast I get there / Ain’t about what’s waiting on the other side / It’s the climb”. “Sempre haverá uma outra montanha/ Eu sempre vou querer movê-la/ Sempre vai ser uma batalha difícil/ Às vezes eu vou ter que perder/ Não é sobre o quão rápido chegarei lá/ Não é sobre o que está me esperando do outro lado/ É a escalada”. Os versos que iniciam esse texto (e sua tradução) diz respeito a música  “The Climb” (A escalada) da cantora norte americana Miley Cyrus. Mas suas estrofes poderiam facilmente ter sido composta por Marcos Vinícius Aragão Furtado. Ou simplesmente Marcos Furtado. Aos 25 anos, sua vida é exatamente uma rota cíclica de sobressaltos entre subidas e descidas, permeadas por muitos dilemas (emocionais, sociais e culturais).

Mas para entender sua escalada até aqui é preciso mergulhar em seu passado. Passado esse dividido entre a brisa litorânea de uma Maricá e a aspereza da metropolitana Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Sem conhecer seu pai – “não cheguei a conhecer meu pai. Não fui apresentado. Não quis me conhecer”- Furtado cresceu apenas com o referencial de sua mãe numa casa de veraneio da cidade. “A minha mãe, na verdade, tomava conta da casa de uma pastora que era amiga do meu avô e no carnaval que eu vinha passar as férias com minha avó (em Belford Roxo)”, conta. E nessas idas e vindas, um baque tomou conta de sua família: a morte do avô materno. Mas essa não foi a única má notícia que se abatera naquele momento ao pequeno Marcos e sua mãe. “E aí logo depois do baque da morte do meu avô, a pastora pediu a casa. E tipo, não tivemos tempo de respirar. E começou aquela luta de procurar casa e minha mãe teve como opção voltar pra Belford Roxo. Então voltando pra Belford Roxo, a gente voltou um caco. Fomos morar numa casinha de dois cômodos, em cima tinha traficantes e tudo, era bem complicado”.

Como num looping de 360 graus, a vida mudou completamente. Sai a calmaria da faixa litorânea e entra a realidade do Grande Rio, ainda tão inexplorada ou somente vista como reduto de férias escolar para ele. E a ambientação foi mais difícil do que ele imaginava. Até hoje. “E aí a religião foi o caminho que ela (mãe) encontrou e aos poucos a gente foi progredindo e depois mudamos pra uma casinha maior, aí quando estávamos nessa casinha maior e construindo nossas coisinhas, vem um muro e cai em cima da casa e a gente tem que se mudar na chuva, às pressas e tudo. Fomos morar do lado de um vizinho que era um cão, que era religioso e tudo mais e aos poucos fomos conseguindo. Aí, finalmente conseguimos a casa própria. Não é o ideal, porque é numa região bem afastada, do Minha Casa, Minha Vida, que é um programa que tem seu ponto positivo, mas tem suas críticas. Eu tenho minhas críticas porque ele te dá uma casa própria, mas não te dá um entorno. É um lugar hoje que é dentro de Belford Roxo, mas não tem um ônibus ou condução que vá direto para o centro de Belford Roxo”, critica ele com veemência. E completa com a mesma veemência que não consegue ter nenhum sentimento de orgulho pelo lugar onde mora. “Quando eu fui pra Belford Roxo, nossa senhora, primeiro eu tomei um susto porque o colégio em Maricá tinha uma qualidade de ensino, os professores iam atrás, tinha essa preocupação. Em Belford Roxo não. E era uma mudança também, porque eu fui de uma (escola) municipal em Maricá para uma estadual em Belford Roxo. Hoje eu não posso dizer que tenho esse orgulho. Se hoje tá acontecendo um empoderamento da favela, eu não tenho, porque a minha rua é esburacada, eu moro num condomínio, mas em frente ao meu condomínio tem uma rua que é esburacada, sabe. As linhas de ônibus não funcionam adequadamente. E eu acho que os três piores transtornos atualmente de BF são a Educação, que infelizmente quem estudou na minha época e eu terminei de estudar em 2010, sabe que era um transtorno, porque você chegava no colégio e não tinha aula. Saúde, porque os hospitais (…) eu já tive exposição sexual e fui em busca de um atendimento em um posto e não tinha, e a Violência. A minha mãe disse que quando eu estava na Espanha, no nosso condomínio, um homem estava saindo pra trabalhar e começou um tiroteio e ele levou um tiro dentro do condomínio. E ela viu isso pela janela. Então é horrível, um absurdo”, sentencia.

 

O Pregador e a descoberta da Homossexualidade

 

A minha primeira relação homoafetiva foi na Páscoa de 2012. Eu tinha 19 e iria fazer 20 (anos) e foi com um português (risos). Foi a primeira noite que um amigo falou assim pra mim ‘vamos pra uma boate chamada Buraco da Lacraia. Você vai gostar porque é diferente, tem pessoas mais velhas e tudo mais’. Aí eu falei ‘tá bom’. Fui. Só que eu vim da igreja então eu não me enxergava no espelho como uma pessoa bonita. E hoje isso faz todo o sentido. Então, eu lembro que teve uma hora – porque os amigos que tinham me levado eram amigos musculosos, eram negros de um corpo que eu falava que queria ter esse corpo – que eu parei e lá no Buraco tem uma parte que é um barzinho que você entra, tem umas cadeirinhas e eu sentei nessas cadeiras e fiquei olhando, tipo ‘ninguém vai olhar pra mim. Vou ficar no meu canto’. Eu fiquei olhando os clipes que passam na televisão da recepção. E aí vem um português que fica na minha frente, para e fica olhando pra minha cara. Aí eu olhei pra trás, olhei pra um lado, olhei pro outro e ele estava olhando pra mim mesmo. Aí eu falei ‘vou fazer um personagem’, cheguei em cima dele, enfiei a mão na parede, coloquei ele contra a parede e ele me beijou”, revela.

Apesar da novidade que pulsava dentro de si e de ter dado vazão as novas experiências, a escalada (lembra da música acima?) até esse momento foi de uma verdadeira luta, do tipo entre o céu e o inferno. “Na época eu era pregador do Evangelho, porque esse percurso de Maricá pra Belford Roxo, minha mãe fica com depressão (resquícios de uma profunda desilusão amorosa e outros contextos familiares), ela entra pra igreja e quer me puxar também. E aí teve negócio de bater pra levar filho pra igreja, mas no momento que me deu um estalo e eu realmente percebi que era gay eu me assustei. E aí eu também fui para a igreja junto com ela. E comecei a acreditar naquilo que ia me curar e ficou aquela luta”. E foi na crença que “duelar contra seus monstros internos” fosse curá-lo que Furtado não titubeou quando seu poder de se comunicar com os demais foi visto com bons olhos pelos irmãos de sua denominação religiosa e a pregação lhe foi oferecida como benesse pentecostal.

“Então, principalmente depois que eu tive a oportunidade de estar pregando, foi uma coisa que nos primeiros anos na igreja eu falo que era o primeiro amor. Sabe quando você tá bem apaixonado e você não enxerga os defeitos? Porque eu não era só evangélico, eu era de uma igreja muito rígida que é a Deus é Amor. Onde você não pode ver televisão, onde você não pode ir pra uma praia, onde você não pode usar uma bermuda. Então assim, era um conflito. Então no momento que eu começo a pregar era uma relação conflituosa. Porque, primeiro: na Bíblia diz que quando você tá fraco que aí é que eu me torno forte, (segundo o) apóstolo Paulo. Então eu lidava como se fosse uma provação de Deus que eu estava passando e Deus ainda não me deu a cura, porque ele vai me dar no momento certo. Eu pregava com tanta paixão. Sabe quando o artista leva um pé na bunda, compõe uma música e ele sente que vai ser o sucesso? Era aquele momento. Então na pregação até gente se convertia.”, atesta.

Mas tudo mudou após uma sessão em que deparou-se com alguém como ele dentro da igreja. Alguém que estivera ali em busca da “libertação” e que tratado como endemoniado queria uma nova vida. E coube a Marcos a oração. “Um dos momentos de pior desespero foi quando um gay foi pra igreja e as pessoas colocaram ele ali e parece que ele caiu endemoniado. Eu nunca tive familiaridade ou intimidade com essa questão de libertação. Eu tinha pavor daquilo. Mesmo pregando eu tinha pavor, eu não gostava. E orando pelo garoto, naquele dia eu parei e raciocinei ‘(se) ele tá endemoniado, então porque o demônio não me pega aqui no altar também? Porque eu posso não ter tido contato (sexual) com outro homem ainda, mas eu sou gay’. E engraçado que nos meus últimos meses da igreja eu começava a pregar de uma forma que quem tivesse atento saberia a tendência. Eu começava a pregar não contra a doutrina, mas pregando muito em cima daquela questão de hipocrisia. Porque para mim a homossexualidade não era um pecado e era o que me doía. Era a faca que cortava pro meu lado. E eu comecei a pensar ‘poxa, eu já tenho 18 anos e vou ficar nessa até quantos anos? Se Deus não me deu a cura até agora, o que ele quer? E eles falam que afeminado vai pro inferno e se eu tô em busca de uma libertação, então porque Deus me colocou nessa situação, me condenando automaticamente, se eu estou aos pés Dele pedindo pra me curar?’ Porque eu raciocinei: Deus não vai me fazer um ser automaticamente condenável, desculpa. E se Ele tiver que de me dar uma cura Ele vai me provar em algum momento. Mas até hoje Ele não me provou e eu tô aqui. Acho que eu não sou inferior e eu acho que essa é uma questão muito importante pra se falar, embora as pessoas pensem que é uma questão que já tá sendo discutida, porque, imagina: você já sofre sendo negro, já sofre sendo gay e você sofrer com pessoas ali falando o tempo todo que você vai pro inferno, imagina quantas experiências eu poderia ter vivido desde a adolescência, sabe?”, resigna-se.

E todas essas experiências doutrinárias que tentaram fazê-lo crer que era doente, quando na verdade apenas queria ser o que é inato ao seu bel querer, para Marcos, foi muito ruim e deixou marcas impressas em sua personalidade. Segundo ele, “tem o atraso todo de faculdade, de ensino, de distância e aí vem um atraso emocional também. E esse atraso eu devo muito a igreja. Isso eu não tenho nenhum arrependimento forte de bater contra a igreja. Sei de todas as suas qualidades e características boas e pessoas boas que têm ali dentro, mas eu também sei das suas coisas ruins. E, sobretudo, numa igreja que eu não tinha jovens porque quando você fala de igreja tem um grupo jovem, e na minha igreja não tinha, (então) foi uma coisa muito difícil pra mim. Saber lidar com pessoas da minha idade foi uma coisa que eu tive que trabalhar muito e é isso.”

 

Relacionamento com a Mãe

Mas você deve estar se perguntando: e após sair da igreja, como sua mãe reagiu? “Eu costumava dizer que minha mãe era a Ana Beatriz Nogueira das novelas (risos), bem controladora. E aí é outro pilar da baixa autoestima. Acho que vou ter que escrever um livro sobre isso (risos), porque não tinha como eu ter confiança com uma mãe que me controlava em tudo. Eu lembro que até antes dela pensar que eu era gay, ela me controlava com meninas. Porque eu só podia me relacionar com pessoas da igreja e daquela denominação. Nossa senhora, era horrível! Então, parece que às vezes eu exagero, mas eu não exagero. E a minha relação com a minha mãe é aquilo: no início ela ficou batendo de frente, porque não era só a questão de ser gay, era a questão de querer sair. ‘Mãe eu vou sair hoje’, ‘não!’. E era aquela novela justamente na hora que eu ia sair. Não digo que eu sou a pessoa mais perfeita do mundo. Qualquer jovem, e aí eu me coloco como adolescente, porque na época da descoberta eu era adolescente, tem os seus defeitos, desorganização, respondão, eu me descobrindo. Imagina tudo ao mesmo tempo. E quando ela encontrava brechas nesses meus defeitos, aí pegava fogo. E eu sou muito respondão, admito. Então não tinha jogo de cintura nem de um lado, nem de outro. Mas com o tempo fomos nos adequando. Hoje, ela continua não aceitando, é difícil ela aceitar um dia, só que ela tá cedendo. Progressivamente, ainda que nos passos de um jabuti, está evoluindo”. E foi justamente de sua mãe que veio o colo que precisava quando se abateu sobre si uma das melhores experiências de vida na Europa – e também a mais forte, intensa e traumática sentimentalmente com outro rapaz.

 

O Intercâmbio na Espanha

Estudando há, aproximadamente, dois anos no IBMEC (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais) da Barra da Tijuca graças a uma bolsa integral, foi no ano de 2016 que Marcos teve a oportunidade de concorrer no 11º Prêmio Santander Jovem Jornalista que concedia a oportunidade de passar um período completo na Espanha, estudando na Universidade de Navarra. Confiante, porém ciente das dificuldades que um prêmio desse impõe, Marcos concorreu com uma reportagem sobre a Cidade de Deus, ficou entre os finalistas, foi para São Paulo – o prêmio era promovido em parceria o jornal Estadão – e foi o campeão. O primeiro negro e o mais jovem periodista universitário (estava somente no terceiro período) a ganhar em 11 anos o concurso.

Uma vez em solo espanhol e maravilhado pelas oportunidades que se sobressaltavam aos olhos, os novos aprendizados e os diversos amigos de inúmeros países feitos, aquilo que menos esperava aconteceu: o primeiro amor. Amor no sentido mais literal da palavra. Durante cinco meses, entre aulas e livros, Marcos sentia-se dentro de uma novela onde o protagonista vive uma intensa lua de mel com sua companhia. Mas, passada a euforia, o dia a dia e todos os bons momentos compartilhados juntos – com perspectivas, inclusive, de ficar em solo europeu, porém em Portugal – como num passe de mágica, a carruagem virou abóbora. E tal qual numa novela, verdades secretas vieram à tona. Algumas, e a maioria, descobertas por lá. E algumas, literalmente com marcas, aqui no Brasil.

“Acabei de voltar da Espanha e vou ser bem sincero pra vocês: na Espanha eu tive um relacionamento, com uma pessoa que eu confiei muito, e no final das contas eu acho que foi a pior rejeição – eu falo isso com certa emoção – porque é muito ruim você ser rejeitado e ter a sensação de ser usado”. Mas apesar da fragilidade emocional e da quebra de confiança, Furtado usa esse momento como ponto de reflexão. Em suas palavras, falta uma relação mais estruturada entre pais e filhos acerca dos perigos e das consequências que escolhas mal tomadas podem acarretar, especialmente quando essas escolhas dizem respeito ao sexo e suas variantes – boas ou ruins. “Uma coisa que me chamou a atenção, é que os meus amigos na Espanha, até os gays, dividiam todas as suas intimidades com os pais, mesmo de longe. E isso é algo muito difícil no meio LGBTI. Dificilmente eu conseguiria ter uma relação aberta a esse ponto com minha mãe se, por exemplo, eu chegasse e contasse pra ela que estivesse com uma sífilis, gonorréia ou outra DST da vida. E isso faz toda a diferença, porque é questão não somente de confiança, mas também de amizade”, explica.

“Eu acho que a internet chega na favela, a televisão chega nos lugares mais inacessíveis, só que a formação vinda junta dessa informação é o que tá faltando. É um pai chegar e dizer assim quando você tá assistindo, por exemplo, uma reportagem falando sobre sexo no Fantástico ou no Encontro com Fátima Bernardes ‘olha aí filho, vamos discutir isso?’. Tá faltando isso. Na Europa, uma coisa que eu vi, inclusive desse parceiro, foi que o pai dele se importava com todos os trabalhos. Isso me chocava. Um cara com 19 anos e, tipo, (o pai dele) sabia tudo. E eu nunca tive isso. Eu não acho que falta informação pro jovem, informação tem demais, sobretudo aqui no Brasil. O que tá faltando é uma formação. Hoje, por exemplo, quando eu realizo exames de rotina aprendo coisas que eu nem imaginava. Porque informações eu tenho. Mas não orientações. E isso me faz enxergar o sexo de outra forma. Não só nesse âmbito sexual, em vários outros âmbitos”, assegura.

 

HIV, AIDS e IST’s

Vivendo numa era em que os maiores índices de infecção por HIV, AIDS e Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s) atingem justamente os mais jovens – muitos entre 15 e 24 anos segundo dados epidemiológicos– , Furtado enxerga no conceito da Modernidade Líquida uma das justificativas que explicam a negligência sexual de seus pares. “Eu sempre cito quando eu tô falando de alguma coisa profunda e que é muito pertinente, pra nossa realidade, o (Zigmund) Baumann, que fala sobre a Modernidade Líquida. Então a gente vive hoje um momento tão líquido das relações e  essa coisa de aplicativo. Então qual o propósito disso? Hoje as relações estão líquidas e da mesma forma que tá assim, essa questão da DST, da AIDS e tudo mais, tá líquido. Porque as pessoas da minha geração elas não viram aquela questão de Cazuza, não viram o auge dessa epidemia, então parece que vive um efeito ‘ah, hoje tá muito mais evoluído’. É inconsequente”.  E complementa: “Então é isso. Eu acho que talvez, apesar dessa minha informação, apesar de ser um jovem, eu também tenho esse Marcos atrás de mim que é frágil, que no momento de destempero pode confiar numa pessoa e se entregar e mesmo com toda essa informação pensar ‘eu tô vivendo uma coisa e isso nunca vai acontecer comigo’. Eu acho que isso mostra a minha liquidez também e passa por isso de não aprender da maneira tradicional, com papai e mamãe, mas aprender com um tapa pra ter um alicerce maior. Então eu espero que daqui há 10 anos, daqui há 20 anos, quando eu tiver 45 anos, mais jovens tenham esse alicerce de forma muito mais cedo e menos dolorosa possível’’, acredita.

E é pensando nesse alicerce que o universitário se sente gratificado de ter espaços como o Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) para falar abertamente sobre questões pertinentes da juventude, principalmente no que tange as questões de gênero, sexo e sexualidade. “Quando vem uma iniciativa como essa de promover o jovem, trazendo conhecimento, colocando um espelho – porque eu considero colocar um jovem como eu, como o Jean, como qualquer outro da nossa idade, negro principalmente – na frente dele é como se falasse ‘olha só, se olha. Tá vendo sua referência ali?’. Eu acho que é muito maior até do que a questão somente de DST. É questão de tudo. E, por exemplo, vê um jovem que foi entrevistado e foi para a Espanha, cara, se você falasse pra mim – e estamos em fevereiro – há dois anos atrás que eu ia pra Espanha por conta de um concurso, eu ia rir de você. Então um jovem ter essa referência e ter essa oportunidade de ter uma iniciativa que busca informações, e não só ficar aí, é uma forma de destruir essa liquidez e trazer nessa semente uma coisa mais firme. E se tem iniciativas como essa que querem promover uma certa, não integridade, mas um rompimento dessa superficialidade, eu acho que é muito interessante”.

Superficialidade essa que, sexualmente, o estudante acredita que também deveria ser motivo de importância para demais jovens. ‘’O fato de fazer sexo oral sem camisinha, por exemplo, deveria levar alguém a pensar que tem coisas muito mais importantes do que sentir o gosto de um pau na boca. Mas eu não os culpo (e nem a mim), porque são momentos rápidos, de intensidade. E no momento que eu falo isso é porque eu tenho plena consciência que, amanhã ou depois, eu – ou qualquer outra pessoa – vou conhecer uma pessoa, ter um contato com ela e saber que estou protegido”.

Identidade Negra

Ser homossexual, da Baixada Fluminense e negro tem suas implicações. E essas classificações impostas pela sociedade que marcam e situam cada indivíduo, reduzindo-o ou evidenciando-o apenas por suas características, sempre foram de extrema consciência para Marcos. Inclusive consigo mesmo na busca por sua identidade e reencontro (ou descoberta) de sua negritude – e por conseguinte, de sua ancestralidade – e até na valorização de seus traços dentro de casa, quando confrontado por sua própria mãe.

“Então assim, eu fui construindo isso, com palavras talvez, de me olhar pro espelho, desse lugar que eu fui pra Barra da Tijuca, de não viver a experiência total da universidade. Porque quando você vai pra universidade você quer viver o estudo, quer viver a formação, mas você também quer viver outras coisas – a pegação inclusive. E eu não encontrar pessoas que olham pra mim ou até porque os gays que têm na minha faculdade são gays barrenses que não olham pra um negro, sabe?!”

“Ou que não olha pra alguém que está fora da fronteira da Barra. Isso mexeu muito comigo. Então eu tive uma hora que parar, me olhar no espelho e falar: cara o que está acontecendo? Quem eu sou? De que eu vim? Vim pra estudar, ouvir e viver. E eu acho que, talvez, juntando tudo e mais essa experiência que foi a cereja do bolo na Europa, eu hoje vejo que o problema não está em mim. O problema está na formação das pessoas. E as pessoas têm que passar por uma desconstrução. Então hoje eu assumo esse meu cabelo. Minha mãe mesmo estava falando esses dias, porque ela também tem esses problemas com relação ao cabelo, ‘ah você vai trabalhar numa multinacional, na comunicação corporativa da América Latina, e vai com esse cabelo?’. Eu já dou logo um grito. Eu não tenho paciência de argumentar. ‘Se você alisa seu cabelo o problema é seu’, eu cansei. Tem uma hora que você só quer isso e acabou. Se eu tiver passando ridículo, uma hora eu vou me tocar e tudo mais. Mas é o que eu gosto. E quando eu olho pra um negro e, por exemplo, todo mundo sabe que o Instagram é uma rede social super visual, eu penso duas vezes – de verdade – antes de curtir e dar like num garoto padrãozinho, num branco, do que num negro. Quando eu vejo um negro que tá se sentindo, que tá parecendo que é modelo, eu dou um like porque eu tô meio que me afirmando no momento que eu tô dando um like naquele negro.”

E o peso de lidar com tantos rótulos sobre si também não passa batido em suas avaliações. “Eu acho que é uma responsabilidade sim (ser negro, da Baixada, gay e estar numa faculdade na Barra). Em determinados momentos pode ser pressão, mas pressão não do lado de cá, mas do lado de lá. Porque, por exemplo, esse semestre eu vou ter que voltar pra universidade, aí eu sei que terão pessoas que tipo vão ter expectativas, e até um certo incômodo, por eu ter sido o garoto de Belford Roxo, negro, gay que ganhou um concurso e eles queriam estar no meu lugar por terem tido uma formação melhor do que a minha e terem achado que foi por conta não do meu texto, não da minha reportagem, mas da minha história. Porque falaram isso pra mim. Então essa pressão eu sinto. Agora, eu também sinto responsabilidade . No sentido de que eu quero com o meu trabalho amanhã chegar numa redação de jornal, pegar uma matéria – e a gente sabe que dentro de uma empresa de comunicação você tem as pressões da chefia, porque notícia é um produto – e eu vou ter que ter a responsabilidade de ser imparcial, sabendo que eu não sou um robô, sou um ser humano com a minha construção e visão de mundo e tentar passar uma visão que não é a principal dos jornais”, atesta. E para sua surpresa (ou não) a questão racial não foi um peso tão grande quanto aquela sentida no Brasil.

“Engraçado, na experiência toda eu sinto mais racismo ainda aqui no Brasil, apesar de isso parecer muito contraditório. O que eu senti de questão racial na Europa foi a questão de ser exótico, porque eu era um dos poucos negros da Universidade de Navarra e que tinha esse cabelo, então era impossível eu não ser reconhecido. Então muitas pessoas, eu lembro que quando eu entrei pro grupo de teatro, ficavam tocando no meu cabelo e tudo mais e eu achava engraçado, mas tinha uma hora que enchia o saco. E lá, severamente, eu senti mais racismo direto com amigas minhas no sentido de ser latino. De mães de colegas falarem ‘ah não quero que me filho namore uma latina’. Diretamente por eu ser negro, de fato, não. Se houve, pelo menos eu não percebi. Porque eles gostam muito de negros, essa que é a diferença, porque eu acho que a relação deles é tão fria, é tão esquisita, que quando eles veem um negro – que é pra satisfazer uma certa vontade – eles não sabem lidar com essa situação e acabam querendo fazer da gente um ‘serviço’ que cumpra uma vontade ou desejo deles. É um pensamento que ainda tá em construção pra mim, mas eu acho que eu senti mais racismo aqui e é um racismo muito sem vergonha, é um racismo muito velado, que eu tenho certeza que esse semestre eu vou bater muito, eu vou dar um tapa em muita gente na universidade’’.

Futuro

“Eu espero que os jovens negros e que, como eu, passaram por favela, por Baixada Fluminense, que são gays e os que não são gays também – porque a gente tem que contemplar tudo -, as mulheres e jovens também que não são negros, mas que são brancos e também vivem na favela, que eles possam se sentir menos inseguros. Que eu escute menos relatos inseguros e escute pessoas empoderadas, sobretudo, com firmeza. E que a gente termine essa falácia da meritocracia. Que acabe, sobretudo, a meritocracia sexual. Porque é muito fácil condenar o jovem ‘opa, olha a informação’, mas será que ele tá tendo formação pra isso? Será que ele tem um pai ou uma mãe que conversa com ele? Eu não tive”.

Texto: Jean Pierry Leonardo

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