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“Eu acredito que meu grande sonho é sobreviver”. Em entrevista ao Projeto, a pedagoga e assessora parlamentar Wescla Vasconcelos revela suas dificuldades diante do estigma, preconceito e discriminação sofridas por ser travesti


A escritora, filósofa e intelectual (entre outras atribuições) francesa Simone de Beauvoir, nascida em janeiro de 1908, em Paris, na França, até hoje é um dos símbolos mais pregressos e reavivados dentro do movimento feminista. Sua célebre frase “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” é um dos chavões mais cunhados e reverenciados quando se fala da questão do empoderamento e da identidade feminina, justamente por romper (mesmo em épocas conservadoras) e desconstruir com a noção pré-estabelecida de ser Homem e ser Mulher. Mal sabia ela que seu pensamento rodaria o mundo e chegaria, por exemplo, no sertão cearense de Sobral.

Sim, porque foi a partir dessa premissa (mesmo que sequer soubesse à época de quem se tratava) que Wescla Vasconcelos adotou em sua vida desde pequena, quando aos 10 anos percebeu-se diferente dos demais e externou para sua família a forma como se percebia e reivindicou viver. “Nessa idade a minha transição já estava muito aflorada. Na verdade eu fui uma criança trans e toda travesti e transexual sempre foi uma criança trans, mas a partir de uma certa etapa da vida as pessoas manifestam mais fortemente a sua transição através do uso de roupas, o cabelo grande, pintar unha, usar acessórios mais femininos”, conta ela. Mas foi também esse período que marcou o início de muitas dificuldades em sua vida. “E aí enquanto uma criança travesti com 10 anos de idade eu enfrentei muito preconceito na escola, no ensino fundamental. Eu admito ainda que a escola é um dos mais malditos espaços para pessoas trans, sobretudo, pessoas travestis e transexuais. A escola não está para nós: é muito preconceito, é muita discriminação, o intervalo – que a gente chama de recreio lá no Ceará – é um dos espaços mais violentos pra mim. Porque ocorria agressão, vários garotos (meninos cis) se juntavam em grupos e colocavam chicletes no meu cabelo pra que eu tivesse que cortar, me empurravam das cadeiras, chutavam a minha merenda escolar e uma série de outras agressões em grupo, na maior parte simbólicas, mas também houveram violências físicas”, atesta. E dessas violências, uma em especial a marcou negativamente até hoje: uma tentativa de estupro. “Eu sofri tentativa de estupro, ainda no ensino fundamental, quando me trancaram e quatro caras botaram os pênis pra fora, me obrigaram a fazer sexo oral neles e quando ia acontecer a penetração eu fui salva pela merendeira que ouviu meus gritos dentro do banheiro”, diz com pesar. E completa: “Então isso é o cenário da escola para nós travestis e transexuais”. E assim foi também durante o ensino médio, onde sequer o banheiro ela podia utilizar. “Eu tinha que segurar a urina pra quando chegasse em casa fazer xixi ou então atrás do muro da escola ou algum lugar que não fosse a instalação do banheiro dentro da instituição da escola”.

O mais paradoxal de toda essa trajetória escolar de Wescla é que nem mesmo seus professores a apoiavam dos constrangimentos e ataques recebidos. Especialmente dos professores homens. “Os professores me discriminavam o tempo inteiro. Disseram que eu era um homem vestido de mulher e indivíduo do sexo masculino. E aí eu tinha que escutar tudo isso e não desistia: pegava meu caderno, fazia minhas tarefas, enfim. A grande solidariedade que eu tive na minha etapa escolar, no ensino fundamental e no médio, foi das professoras mulheres que se juntaram, conversaram com os diretores e me ajudaram nessa caminhada. Senão eu não tinha concluído”, revela. E atesta com veemência uma realidade que define, na maioria das vezes, o destino de seus/as outros/as pares. “Não há evasão escolar de travestis e transexuais: essas pessoas são expulsas. Esses corpos são expulsos da escola de forma forçada diante de muita situação de preconceito, opressão e principalmente de discriminação”, afirma categórica. Dentro de casa a situação também não era das mais favoráveis. Com um pai alcoólatra, era comum situações de violência contra si e contra sua mãe por defendê-la. “Meu pai encurralava a gente em duas paredes e metia a porrada e aí esse era o cenário em que eu cresci e passei minha infância e adolescência presenciando. Ela em grande parte me ajudava muito a superar a dificuldade, ela se colocava na minha frente pra apanhar e eu não”. Mesmo morando no Rio de Janeiro, Wescla ainda mantém contato constante e amistosa com a família, mas não consegue esquecer as marcas do passado. “Hoje em dia eu ainda não consigo perdoar o meu pai e nem o que ele fez. Mas a gente sente, bebe junto, conversa. Eu sinto muitas saudades deles, tenho muito amor por todos, não consegui perdoar meu pai, mas eu amo todo mundo lá em casa no Ceará”, afirma.

Apesar de todas as adversidades Wescla não desistiu do sonho de se ver formada, terminou o ensino médio em 2011 e no ano seguinte – após estudar em cursos pré-vestibulares – entrou para a Universidade Estadual Vale do Acaraú, de Sobral, aprovada para fazer Pedagogia. Primeira integrante da família a romper o ciclo de estudos incompletos (“meu pai é agricultor, pescador, trabalhador da construção civil e pedreiro. Já minha mãe é dona de casa e aposentada. As minhas duas irmãs só foram até o ensino fundamental na quinta série e o meu irmão está concluindo o ensino médio agora. Um jovem de 17 anos, gay, negro e que tá concluindo o ensino médio”), foi a partir da Educação e de sua persistência por ser um alguém além do que o sistema lhe impunha diariamente – e que ela resistiu – que Wescla conta que sua relação começou a mudar dentro de casa com seus pais. “É interessante falar que eu fui a única travesti formada por essa universidade e é uma coisa muito profunda pra gente gerar como reflexão. E aí diante disso tudo eu fui conversando com meus pais, eles vendo meu interesse por estudos, meu interesse por fazer cursos, melhorar minha vida eu fui construindo um orgulho dentro da família porque queira ou não pra você prestar e valer alguma coisa dentro de casa, você tem que ter uma faculdade, você tem que tá fazendo alguma coisa e (é) a partir disso que eles veem o valor”, conta.  Mas se depois da tempestade (familiar) veio a bonança, o mesmo não se pode dizer da Universidade: o ambiente secundarista deu lugar a Academia, mas o estigma, o preconceito e a discriminação continuaram seguindo-a pelo caminho.

E ao chegar na universidade eu presenciei a mesma palhaçada: desrespeito ao nome social, a discriminação do uso do banheiro – foi uma grande confusão, mas eu consegui vencer. Foi somente na universidade que eu consegui utilizar, com muita briga, o banheiro feminino. Na escola foi negado o tempo todo. Foi uma batalha e só com seis meses eu tive tranquilidade pra usar porque eles baixaram uma resolução lá do DCE junto com a reitoria e me garantiram o uso do banheiro”, diz. Além de todas as violações, o que também sobressaltava aos olhos e a rotina de Wescla era a falta de representatividade. Sim, porque apesar de ser a primeira e única travesti formada pela universidade, a jovem tem consciência de que foi uma exceção que confirma a regra. Isto é, que esses espaços não foram feitos para corpos como o seu. “Consegui (fazer amizade) sobretudo de mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, mas é lamentável não ter travestis e transexuais. Eu tinha amigas trans na adolescência, mas que eram da rua, da prostituição e algumas também participavam de movimentos sociais no Maracatu Nação Tremembé onde a gente lidava com as questões de matrizes afro-brasileiras, dançava, cantava, construía roupas para poder se apresentar, sabe. Mas não tiveram acesso a educação. Não tem acesso a educação”, lamenta.

Chegada ao Rio de Janeiro, Militância e Assessoria

Segundo Wescla, a cidade maravilhosa não era a primeira opção de sua lista para viver quando se formasse. Em seus planos, era Fortaleza, a capital de seu Ceará, seu grande sonho. Entretanto, quis o destino que fosse no Rio de Janeiro que ela encontrasse seus objetivos. “Eu vim pro Rio algumas vezes porque eu tive oportunidade de ser conselheira de Saúde no município de Sobral, ser conselheira estadual LGBT(Lésbicas,Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros) representando o estado do Ceará lá em Brasília, no fim do governo Lula pro início do governo Dilma, e aí todo esse caminho foi me levando pra fazer palestra, debate, rodar o Brasil conversando com pessoas e tentando buscar justiça e respeito pra nós pessoas LGBT’s. Então, o Rio de Janeiro era um destino que eu poderia até vim como segunda opção. A primeira opção seria Fortaleza, a capital do Ceará, me estabilizar economicamente lá, continuar trabalhando com o que eu gosto de trabalhar que é políticas públicas, pensar plano de governo municipal, estadual, nacional. Mas enfim, acabou que esse primeiro plano de ir pra Fortaleza foi esquecido devido a uma oportunidade que surgiu de eu vir pro Rio de Janeiro à convite de companheirxs de luta de movimentos sociais e, atualmente, trabalho no mandato coletivo do vereador Tarcísio Motta como Assessora Parlamentar”, resume ela.

Ciente da responsabilidade que seu cargo tem e a proeminência de sua presença dentro de um dos setores e espaços mais difíceis e, atualmente, conservadores da cidade do Rio de Janeiro(a Câmara de Vereadores), a assessora diz não se esquecer disso e salienta que faz da experiência um campo para alargar experiências – pessoais e profissionais –, mas com a consciência de que seu “corpo travesti” também incomoda muita gente . “Foi a militância (que me levou para o cargo atual) e, de certa forma, a (minha) formação. Porque pra gente alcançar esses cargos – vamos dizer assim – de poder , acompanhando representantes políticos não é tão fácil assim. Então tá sendo um desafio muito grande que é: dialogar com políticos, construir projetos de lei, decretos, normativas, enfim. Instrumentos jurídicos a partir da política que eu tô(sic) vivenciando aqui no Rio, mas eu tenho muito capacidade, estudei bastante e dou conta do meu trabalho, mas , o circular do corpo travesti, o circular dentro de espaços ditos não lugares para travestis e transexuais é muito forte. Há muita discriminação, muito preconceito, o respeito ao uso do nome social ainda não é totalmente feito em grande parte por alguns funcionários da Câmara. Até o momento não teve nenhuma situação grave assim ao ponto de explodir e eu ter que buscar processo, amparo jurídico. Só mesmo de pegar elevador com o Bolsonaro (risos) todo dia de manhã é uó”. E completa: “Eles olham com ódio né, com nojo, com repúdio, mas esses olhares pra mim são fortalecimento que eu tô incomodando, que a luta tá incomodando. Esses corpos estão ali colocados em espaços de direito. Transitar ali na Câmara Municipal, na casa de leis da cidade do Rio de Janeiro, isso é muito significativo e simbólico”.

Outra questão que se bipolariza para Wescla são as diferentes maneiras de organização social e o contexto da violência – especialmente contra LGBT’s – de maneira positiva e negativa. Para ela, “de positivo eu vi que os movimentos sociais são bastante fortalecidos, há muitas instituições que apóiam a causa LGBT e muitas outras causas afins. Mas de negativo eu vi que há muita violência, assim como toda cidade tem. Não tem tantos avanços assim como parecia ter antes de morar no Rio, porque eu pensava que tinha bastante avanço e não tem tantos avanços assim, e a gente tá vivendo um retrocesso muito grande com um estado falido. Outra diferença “positiva” (do RJ em relação a Fortaleza) é que não é um dos estados que mais mata travestis e transexuais no Brasil. O estado que mais mata é o estado que eu venho, lá no Ceará. O Nordeste e toda aquela região de Recife e Pernambuco, Paraíba, Rio de Grande do Norte e Fortaleza são regiões onde mais se mata travestis e transexuais. Atualmente a gente tem 102 travestis e transexuais mortas, são dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e aí a gente dorme com medo de não acordar, anda na rua com medo de a qualquer momento levar um tiro, uma paulada, uma pedrada e irem contra nosso direito de ir e vir e contra nossas vidas. É uma questão de sobrevivência a luta trans, a luta travesti e a luta LGBT”.

 

Violência Transfóbica

Apesar do reconhecimento via Supremo Tribunal Federal (que impede a obrigatoriedade de operação para redesignação sexual para mudança de nome social em documentos oficiais), Wescla critica a “conjuntura de aceleração de gambiarras” com a qual travestis e transexuais são tratados institucionalmente. “A atualmente a gente tem decretos, resoluções, normativas que são instrumentos jurídicos legais que amparam, mas não com tanta força. São instrumentos legais que a qualquer momento podem acabar numa canetada, numa assinatura. Daí então a gente conquista esses direitos, mas oficialmente enquanto lei e enquanto uma coisa que é difícil de ser tirada, a gente não tem. Por isso que a gente não é considerada estatística no Brasil. A gente precisa despatologizar a identidade de travestis e transexuais, que a gente ainda é obrigada a pegar um laudo médico. Agora, possivelmente, não mais. Mas a gente ainda é obrigado a pegar um laudo médico dizendo que a gente não possui outras disforias, ou seja, ser travesti ou trans é uma disforia. E aí a saúde tem várias questões pra se discutir a questão trans. É, esses dois pontos: o acesso a educação, pra poder aprender a estudar, e o acesso a saúde pra poder sobreviver por conta de doenças e tudo mais. Eu espero um Brasil onde um dia eu possa ter um registro civil, o direito de retificar o meu nome, sem ter que me submeter a tanta humilhação, preconceito, discriminação que atualmente todas as minhas manas travestis e transexuais, principalmente aqui no Rio de Janeiro, tem que submeter pra poder mudar o nome e o gênero na certidão de nascimento e, posteriormente, o registro civil no RG. Aí meu nome civil ainda consta no RG, mas eu luto pelo respeito ao meu nome social, principalmente, nessas instituições públicas”, critica e observa enfaticamente.

Além disso, Wescla disse que no início do mês de março o Rio de Janeiro obteve uma conquista histórica, pois tornou-se “o primeiro município no Brasil a ter uma lei municipal de respeito do nome social e, ao mesmo tempo, é um dos poucos estados – eu acho que é o terceiro ou quarto estado – a regulamentar a emissão de uma carteira social. Ou seja, a gente vai ter uma carteira igual RG, só que especial para travestis e transexuais mediante solicitação. Tem que solicitar, passa pelo processo e solicita no DETRAN. Esse processo tá sendo acompanhado pelo Fórum Estadual de Travestis e Transsexuais, que é um dos grupos em que eu sou coordenadora”.

 

LGBT’s e Visibilidade Trans na Mídia

 

Apesar de todo o engajamento e militância pelos direitos humanos e sociais das minorias, especialmente de LGBT’s – e da importância que isso tem para a vida das pessoas, a jovem faz ressalvas quanto ao espaço dado para a população Trans no segmento. “Falta muita visibilidade (para as pessoas T’s no meio LGBT), inclusive em 2017 e agora esse ano, 2018, tivemos a maior concentração de pessoas travestis e transexuais nas ruas lutando pela visibilidade trans, que foi o dia 29 de janeiro, uma grande data do nosso movimento Trans. É vergonhoso como as opressões se instalam até dentro da própria população LGBT e os privilégios não são admitidos. As pessoas gays conseguem sim usar o banheiro masculino, mesmo que sofram violências, mas conseguem. Travestis e transexuais nem nas escolas conseguem entrar. Não estão nas escolas e muito menos tem seu nome respeitado e usam os banheiros, porque nesses lugares não conseguem permanecer. . Mas é uma situação pra gente não colocar numa medida de balança quem sofre mais. Porque todo mundo sofre preconceito. Mas de a gente tentar reduzir essas desigualdades, pensar mais consensualmente. Até porque se a gente continuar tendo realidades de protagonismo, em grande parte de gays e lésbicas dentro desse processo, as travestis e transexuais vão continuar apagadas e invisibilizadas na sociedade”, observa ela.

Já que no tange a ascensão dada as questões de gênero e identidade na mídia, nos últimos anos, a cearense afirma ver com bons olhos o movimento pois “acredito que todo avanço é muito significativo”. “Acredito que o mundo das Artes tá sendo um campo bem vasto pra essas pessoas aparecerem e terem visibilidade e tocarem seus trabalhos. Terem acesso ao trabalho, vamos dizer assim. Eu vejo como positivo. Mas nacionalmente há uma discussão, mas não aqui no Rio, ‘Trans Fake’. Trans Fake seria um personagem, um artista que performa-se como travesti e além de se travestir ele se diz travesti. Mas na realidade não é travesti. E aí isso causa um enfurecimento muito grande no movimento trans. Tivemos o caso de Luís Lobianco na peça Gisberta que foi altamente acompanhado e que na equipe dele, em todos os aspectos, não tinha uma pessoa trans. Eram gays e lésbicas ali reunidos pra fazer trabalho e pessoas cis. E aí a não contratação de pessoas, ao não respeito e valorização das pessoas dentro dessas equipes? Desses trabalhos? Enfim. Acaba gerando um enfurecimento do movimento Trans  e aí eles nomearam esse tipo de atitude e fenômeno que vem acontecendo de Trans Fake. (Na novela A Força do Querer) foi um Trans Fake, mas de certa forma foi avaliado como positivo. Porque a atriz era uma mulher cis branca, de classe média, mas a questão foi absorvida com tranquilidade. Depende da forma como é colocado.”, explica.

 

Transfeminismo

A necessidade de reafirmar a identidade feminina e aliar esse movimento com a identidade de gênero, foi um dos motivos que levaram ao surgimento do Transfeminismo, uma vez que em determinados setores ou alas do próprio Feminismo a presença transgênera não foi bem absorvida. E para Wescla isso é e foi fundamental. “Foi necessário colocar o adjetivo trans. Porque é justamente isso que você falou, a reafirmação de uma participação de corpos e protagonismo de travestis e transexuais no Feminismo. Por isso que o próprio nome em si não foi mudado e o feminismo continua. Trans como adjetivo foi colocado antes. E aí é o protagonismo, é a visibilidade. Há todo o tempo (um choque entre os movimentos). Eu, particularmente, fui atacada e inclusive tentaram desmoralizar meu mandato, enfim. As palavras que essas pessoas usam contra nós é tudo o que eu ouvi de professores dentro da escola e em várias outras instituições”.

 

Prevenção

“Eu considero um desafio muito grande ainda as políticas de saúde pública e principalmente voltada contra as IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis). Não que as pessoas LGBT’s sejam as mais afetadas, na verdade elas acabam sendo vítimas de todo um sistema doentio, epidêmico que pode afetar qualquer outra pessoa. Não é porque eu sou travesti que necessariamente eu vou tá (sic) vulnerável a IST, AIDS e afins. Nós somos pessoas, seres humanos, fazemos coisas, nos relacionamos sexualmente com outras pessoas assim como qualquer outra pessoa cis. Então eu vejo como um grande desafio ainda essas políticas contra o HIV e a AIDS e de IST’s, principalmente, ainda insuficientes quando se fala em travestis e transexuais. Em grande parte essas coisas contemplam sim gays e lésbicas e algumas pessoas bissexuais que não estão organizadas em lutas, mas se admitem como bissexuais. Gays, lésbicas e bissexuais tem acesso a esses serviços. Travestis e transexuais não”.  As objetivas palavras acima sobre Prevenção para com a questão Trans são pontos de críticas e exasperação quando ecoadas da boca de Wescla. Para ela, além da invisibilidade, é a expulsão e a negação de direitos para a população T – desde a escola – que fomenta um “círculo em espiral e vicioso” de deficiências e falta de interesse de gestores e setores de saúde sobre os dilemas, o acesso e a atenção dada para pessoas travestis e transexuais.

“A gente não vê travesti indo no dentista, por exemplo. Essas pessoas não têm acesso a essas coisas. Não é a realidade. As que tem acesso são uma minoria altamente absurda, que chega a ser 1% ou 2% das pessoas LGBT’s  – falando de travestis e transexuais. Eu consigo, mas essas pessoas não conseguem. E aí eu vivo realidades que mesmo tendo acesso, tanto no serviço público como no privado, o preconceito e a discriminação ainda acontecem de forma desacelerada.  E é absurdo, é inadmissível”.

 

Sexo, Relacionamento e Objetificação do Corpo Trans

“Sim, o tempo todo (percebe a objetificação de seu corpo). Eu tenho que fazer um trabalho de reeducação o tempo todo. Pela experiência própria, por várias relações que eu tive e vendo também companheirxs trans em relações, a gente percebe que as relações LGBT’s elas são mais intensas. São mais explosivas. O ódio e o amor ele é muito mais intenso e explosivo”, revela ela. Além disso, segundo ela, pessoas trans tem maiores dificuldades em manter-se em relacionamentos estáveis por conta de estigmas, preconceitos e discriminações e ainda tem que lidar com o sentimento de solidão. “Nós temos dificuldades de viver uma vida comum, de viver uma vida igual às pessoas cis vivem. Os relacionamentos não são realidades de pessoas trans, em grande parte de jovens trans adolescentes e trans idosos. Ou começam relacionamento e não conseguem terminar ou nem começam um relacionamento devido ao preconceito e a discriminação. A saúde mental trans é altamente abalada. Há muitas taxas de suicídio entre LGBT’s, mas em travestis e transexuais é um absurdo. Eu acredito que o movimento LGBT precisa salvar as pessoas trans porque elas estão morrendo”, alerta.

 

HIV e AIDS entre Jovens

 

“Eu acredito que é um problema de mobilização mesmo, os recursos da saúde também estão sendo cada vez mais cortados, o tratamento das pessoas com HIV e AIDS cada vez mais em perigos. As pessoas vivendo e convivendo com HIV e AIDS que moram em territórios periféricos e tem que se deslocar pra territórios distantes pra poder fazer o seu tratamento, não estão tendo isso assegurado. Eu acredito que tenha que (se) repensar a forma como essas ONG’s, essas instituições, esses grupos trabalham com essa perspectiva”, observa ela que complementa. “Sobre a epidemia estar se alastrando tanto, é como eu tinha falado no começo, as pessoas cis também se infectam. Em grande parte homens casados, mulheres casadas, jovens casados, jovens solteiros e aí tem que se fazer um trabalho onde o acesso a informação chegue para todos, porque se pessoas cis não estão tendo, travestis e transexuais também não estão para poderem prevenir o HIV e a AIDS”, critica.

Ainda em sua opinião, o estigma que ronda para uma pessoa até mesmo realizar um simples exame de testagem sorológica, há é o suficiente para inibi-la de procurar um atendimento médico. “A pessoa não chega no posto todo mês ‘olha eu fiz mês passado exame de HIV e AIDS e vim fazer de novo’. As pessoas não tem esse costume. Ainda é um tabu e a sorologia é ainda mais social . A sorologia é muito social. A pessoa morre de medo de solicitar um exame desse. Ao solicitar a pessoa já é taxada, então é muito preconceito e é por isso que eu louvo gays e lésbicas que se colocam como pessoas LGBT’s e vivendo , porque são pessoas que enfrentam duas categorias grosseiras de preconceito: que é tanto o preconceito LGBTfóbico como o preconceito de pessoas vivendo com o HIV e AIDS. E aí também há poucas pessoas trans que acessam o tratamento e esse tratamento, de certa forma, não é pensado pra essas pessoas. Porque durante o dia essas pessoas não vão tá (sic) com disponibilidade para irem nessas unidades de saúde. Os grupos não vão conseguir fazer testagem com travestis e transexuais de manhã e tarde. O horário dessas pessoas é a noite, é a madrugada, é a esquina, é a rua. E sim, eu considero que essa juventude ela não têm mais o sentido da vida. A saúde mental das pessoas está altamente abalada. Elas se veem fazendo relação sexual desprotegida com a confiança de que não vai acontecer nada e não é assim. A gente tem que perceber que as pessoas são corpos e esses corpos precisam ser cuidados, esses corpos precisam continuar a fazer o que fazem em sua relação sexual se é bom ou gostoso sim, mas a perspectiva de proteção ela tá muito distante da realidade ao qual ela precisa estar focada. E aí os jovens perdem. Não é interessante pra um jovem receber uma camisinha porque a discussão do uso dessa camisinha ela não é ouvida, ela não importa, ela não consegue penetrar a cabeça da pessoa, entendeu? E aí a imposição de ‘toma a camisinha, você vai ter que usar’ mais especificamente pra travestis e transsexuais não vale nada.

E isso é a discussão da prevenção dentro do mundo trans, principalmente das ruas que é onde grande parte está. E aí pra essas demais pessoas cis é um desafio de acreditar mesmo na vida. Se nem travesti e transsexual tá tendo acesso a educação, imagina a juventude pobre, negra, favelada. Eu acredito que deve ser pautada uma política, uma mobilização pelo resgate do sentido da vida. Da saúde mental que precisa ser trabalhada. E aí uma saúde mental boa, estabilizada no colapso que a gente tá vivendo no Rio de Janeiro ela possibilita você pensar a prevenção como algo que protege a vida”, acredita. Em sua opinião, é justamente aí que reside a importância de trabalhos como o realizado pelo Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), pois o mesmo “contribui positivamente para que muitas dessas pessoas possam ter informação e acolhimento necessários para obter pelo menos o mínimo diante de suas vulnerabilidades. É muito importante”.

Futuro

Segundo dados da Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa transexual ou travesti no País é de cerca de 35 anos – bem abaixo da média nacional, estimada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 75,2 anos. Além disso, 40% de todos os assassinatos de pessoas trans registrados no mundo ocorrem em solo brasileiro. Talvez por isso ela não titubeou ao responder com palavras firmes (não sem meu espanto, diante da distância que minha condição enquanto homem negro cisgênero e homossexual coloca entre nossas vivências) quando questionada sobre quais seus planos ou aspirações para o futuro.

Eu não consigo me ver imediatamente com 30 anos porque como eu tinha dito, todas estão morrendo. Eu durmo com medo de não acordar. A perspectiva de vida das travestis e transsexuais é 35 anos. Então eu tenho aí 13 anos pra continuar a viver. A nossa luta é por sobrevivência mesmo. Eu acredito que meu grande sonho é sobreviver. Todo dia. E que outras mais não tombem pelo caminho, se fortaleçam, vivam , tenham acesso a educação, a saúde, a justiça, a trabalho – principalmente para reduzir a vulnerabilidade social. É esse meu grande desejo de perspectiva para o futuro: que nós possamos viver”.

Texto: Jean Pierry Oliveira

 

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