Doutrina. Definição: conjunto coerente de ideias fundamentais a serem transmitidas e/ou ensinadas. Não foi preciso ir ao dicionário para que Kytéria* pudesse descobrir o significado dessa palavra em sua vida. Nascida na Paraíba, veio ainda bebê para o Rio de Janeiro com seus pais e juntos com seus quatro irmãos foram todos criados no bairro do Rio Comprido – ou dentro da igreja. “(Minha infância) foi dentro de uma doutrina de uma igreja, de uma religião muito forte, muito séria: Congregação Cristã no Brasil. Eu nasci nessa igreja, meus pais já eram dela e ali eu fui crescendo e obrigatoriamente tive que seguir essa religião, essa doutrina e igreja. Aí nisso que eu nasci nela eu não tinha outro caminho, era escola-igreja-escola, eu comecei a me interessar pelas coisas da igreja e fui me acostumando, me adaptando aquilo e não conseguia viver em outro mundo”, conta ele.
Mas se na infância Kytéria não teve como fugir da tradição, foi com a chegada da adolescência que vieram os primeiros questionamentos, as primeiras experiências e o rompimento com a igreja. “Com 19 anos eu já estava me afastando, me sentindo fraco. Pois eu nasci nela, mas eu fui – obrigatoriamente – viver ela por causa da minha casa, dos meus pais, da minha família. Mas isso não era de dentro de mim. Tanto que com 19 anos eu comecei a desabrochar dentro de mim aquele sentimento, aquela atração por homens e eu ainda servi o quartel”, revela. E completa: “e com 22 anos, quando eu saí do quartel, eu tive a primeira relação com homem, perdi a virgindade. Aí com 22 anos eu comecei e não parei até hoje. Com 22 anos eu me afastei, como eles falam na igreja ‘desviou’, desviado – bem viado mesmo (risos)”. Mas apesar disso, o jovem afirma não ter se afastado 100% da igreja e “não mudei muito dentro da minha casa de escancarar, de levantar a bandeira. Eu não escancaro isso pra ninguém em minha casa, até porque não vejo necessidade. Eu acredito que meus pais e meus irmãos com certeza devem saber (da minha sexualidade) só que eles não querem aceitar, então eles se fazem de malucos e não querem entender e aceitar”, diz.
Entendimentos e aceitações à parte, a única certeza de Kytéria é a de viver com certeza e propriedade todas as possibilidades de seu desejo e orientação sexual. Durante anos, além de ter vivido com tudo isso abafado, o jovem revela que a doutrina de sua congregação mexia com seu psicológico todas as vezes que se percebia atraído pelo mesmo sexo. “Mexia tanto com meu psicológico que eu pensava que se desse trela para aquele sentimento, se eu saísse com um homem, como eu era da igreja eles pregavam que era pecado, eu achava que se aquilo acontecesse eu podia morrer depois, que Deus ia me matar, que eu ia ser castigado e sofrer punição na igreja com Deus. E até morte podia acontecer de tanto o pastor pregar que aquelas coisas eram do demônio. Eu acreditava mesmo”, atesta.
A Descoberta da Sorologia
Nem morte. Nem punição. Nem diabólico. Todos esses pensamentos entranhados como um mantra na vivência de Kytéria – dentro e fora da igreja – foram dissipados com o tempo e atenuou consideravelmente suas opiniões e experiências tidas como mundanas. Entretanto, esse período também culminou com a ausência de debates, conhecimentos e informações importantes a qualquer pessoa, especialmente sobre sexo, camisinha, prevenção e o HIV. “Não. Eu não tinha conhecimento dessas coisas de sexo seguro, de HIV. Na igreja eles nunca ensinaram sobre isso, nunca falaram sobre isso. E como eu nasci nisso de sexo é pecado antes do casamento, não era pra fazer sexo e tal, como eu não tinha muito conhecimento sobre isso (sexo, pecado, adultério) então eu não fazia e não tinha muito conhecimento. E eu acho que se na igreja eles falassem sobre isso e dentro da minha casa os meus pais também falassem sobre isso, seria pecado também e estaria alimentando e criando coisas na minha cabeça pra mim tá (sic) fazendo aquilo que eu não podia fazer”, afirma.
E a linha tênue entre a falta de informação e o sexo, infelizmente, traduziu-se em algo inesperado para Kytéria. Segundo o mesmo, “eu acho que seu eu tivesse um pouco mais de conhecimento, um pouco mais de informação sobre os perigos e sobre as coisas, eu acho que hoje eu não seria uma pessoa soro(positiva). E essa primeira vez que eu tive relação (sexual) eu te confesso que tô(sic) até aqui agora querendo imaginar (…)eu confesso que essa primeira vez eu não me lembro se eu usei camisinha ou não. Eu acho que na empolgação, no tesão, naquela coisa como primeira vez, não passava pela minha cabeça. Se bobear pode ter sido sem camisinha e, talvez, seja esse infeliz que me ‘contaminou’. Eu não me lembro”, observa com assertividade. A partir daí Kytéria teve que encarar uma nova realidade. Uma realidade totalmente diferente daquela projetada por seus pais, pelo pastor na igreja, pelos amigos de congregação: conviver com o vírus HIV. Ainda com lembranças vivas na memória, não somente pelo pouco tempo de sorologia, mas também pela forma como o dia da descoberta o marcou, Kytéria revela com detalhes o momento do diagnóstico.
“Eu comecei a me sentir mal, sentir umas tosses, umas dores, uns cansaços e achei aquilo estranho. Aí eu fui num posto que tinha ali perto de casa e naquele postinho a doutora me examinou e falou ‘vou passar uns exames pra você’ e passou todos. Inclusive o de HIV. Aí ela falou que em princípio era uma pneumonia, aí nisso que era uma pneumonia eu deixei e descartei. Fiquei bem e esqueci. Aí eu esqueci que tinha feito aquele exame. Passou-se quase 30 dias ou dois meses, não me lembro muito bem, sei que passou muito tempo que eu tinha me esquecido de que fui naquele posto. De repente, a agente de saúde do posto me ligou e falou ‘ a doutora quer falar com você. Passa aqui no posto’. Eu achei aquilo muito estranho, não imaginava”, disse ele. E continua: “Aí cheguei na doutora, entrei, sentei e assim que eu sentei ela fechou a porta, trancou com cadeado e chave que não era pra ninguém entrar naquela sala e ela abriu um armário que estava fechado também e tinha um envelope grande lacrado. Tirou o lacre na minha frente, pegou o exame e falou: seu exame deu positivo. Você é soropositivo. Você tem HIV”.
Sem saber o que era aquilo, durante alguns minutos sua única reação foi um misto de perplexidade com surpresa. Quando a ficha começou a cair, Kytéria atentou-se para a importância e relativa gravidade do fato. Ao sair do consultório no posto, durante o caminho de volta para casa, diversos pensamentos devanearam em sua mente. Entre eles o do suicídio. “Eu fiquei muito chocado e o mundo caiu assim, aí parece que aquele branco saiu e começou a vir “é HIV e isso e isso”. E vindo ali no bairro no Rio Comprido, era perto da minha casa, aquele caminho até a minha casa parecia o fim da minha vida. Eu pensei mil vezes em me jogar na frente do primeiro carro que eu visse na esquina. Eu queria muito me matar. Aquilo foi assustador. Começou a passar um montão de coisa na minha mente. Achava que fosse morrer e não morri”, salienta. Em seguida a descoberta, Kytéria foi encaminhada para tratamento imediato em um hospital da zona norte do Rio de Janeiro. O começo não foi nada fácil. “A infectologista de lá me atendeu muito bem, cuidou de mim muito bem e eu fiz o tratamento muito bem. Mas só que esses medicamentos e esses esquemas que eu tomava, o meu estômago, meu sistema imunológico ele não aceitava aquilo ali. Aquilo não conseguia descer na minha garganta de jeito nenhum. Eu vomitava”, afirma. Mas diante de todas essas dificuldades, que o debilitaram a ponto de ver “a morte em mim”, quando iniciou um novo esquema de antirretrovirais com uma nova médica (a anterior havia se aposentado) tudo mudou. “(Hoje) eu coloco na boca (o comprimido) e parece uma coisa normal, super aceito, meu corpo maravilhoso. Eu fiquei indetectável, eu tô conseguindo meus objetivos, eu tô conseguindo minhas metas, tá tudo caminhando bem. Eu tô vivendo muito bem”, comemora.
Empoderamento e Ativismo
O dito popular afirma que após a tempestade sempre vem a bonança. Verdade ou não, para Kytéria fez todo o sentido. Foi durante uma ida a infectologista que o tratava que, esperando pela consulta, deparou-se com um cartaz no quadro de avisos do hospital que convidava novas pessoas para a próxima reunião de adesão que havia no local. Foi quando conheceu a ativista Ana Paula e um novo mundo de informações, conhecimento, ativismo e empoderamento apareceu. “Ela é do grupo de mulheres do Pela Vidda (ONG do segmento HIV/AIDS) e me ajudou muito. Chegou como uma mãe para mim. Ela chegou e falou ‘vamos participar da reunião de adesão que vai ser hoje’, estava na consulta e aí a Ana Lúcia me abraçou, pediu pra esperar até 13h00 que era a hora da reunião, me acolheu, me ajudou muito. Falou ‘olha, você não está sozinho. Eu estou contigo. Eu tenho 20 anos (de ativismo), eu descobri quando estava grávida do meu filho. Hoje eu estou bem e tal e você pode ficar bem também’, pontua.
E como um gesto pode significar muito mais do que mil palavras, Kytéria enxergou nesse momento a oportunidade ideal para dar a volta por cima para fazer mais por si e pelos demais como ele. Após conhecer outras ONGs como a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e adentrar a Rede de Jovens Vivendo e Convivendo com HIV e AIDS do Rio de Janeiro – do qual integra, atualmente, o Grupo de Trabalho de Eventos- ele tomou para si a responsabilidade de acolher outros que se viram na mesma situação que ele quando soube da sorologia. “Eu passo todo o meu conhecimento, toda a minha ajuda, tudo o que eu puder pra ajudar aquele jovem e tirar aquele jovem do poço e levantar ele. Dar vida. Falar da vida pra eles. Hoje em dia eu não consigo sair da Rede de Jovens. É fantástico o acolhimento, a ajuda que nós conseguimos fazer com os jovens, eu faço parte do GT Eventos da Rede de Jovens Rio e participo das reuniões e eventos no geral e é fantástico. Eu gosto muito”.
Sorologia para a família
“A única pessoa que sabe da minha casa é a minha mãe. Nesse meio tempo eu fiquei ruim e tive uma caída muito forte: eu tive tuberculose. Tive trombose nas pernas e outras coisas mais que não me lembro. Mas eu fiquei muito ruim, muito debilitado. Eu vi a morte ali comigo. A Aninha foi a única pessoa que me ajudou, me apresentou a Regina Bueno – uma ativista da Rede de Jovens também – que me deu forças e me ajudou muito com conhecimentos. Aí quando eu tive essa caída forte, que parecia que eu ia morrer, a doutora que estava comigo ela falou assim ‘olha, alguém da sua família tem que saber. Sua mãe tem que saber’. Aí eu falei que podia contar pra minha mãe. Eu não queria que contasse, mas tinha que contar pra alguém, aí falei que podia contar pra ela. Aí ela perguntou ‘aquela senhora ali fora é sua mãe?’, eu disse que sim. Aí ela foi chamar minha mãe até a sala, mas nisso eu não queria que ela contasse de jeito nenhum. Aí ela falou “senta aí”, aí minha mãe sentou do meu lado e ela disse “seu filho tem HIV”.
“Minha mãe ficou em choque, foi um baque. Ela ficou desesperada. Ela viu a morte. Ela olhou assim pra maca e eu deitado e chorava. Ela pensou que eu fosse morrer mesmo. Ela chorava, ficou magra, minha avó teve que vir pra minha casa pra cuidar dela, pra ela cuidar de mim. Porque assim, minha mãe cuidava de mim, mas precisava que alguém cuidasse dela. A única pessoa que ela não podia esconder era minha tia que é minha segunda mãe. Ela contou pra essa minha tia e essa minha tia contou pra minha prima que é minha madrinha. São as únicas três pessoas da minha família que sabem. O que eu concordo delas saberem e de dois, três anos de sorologia eu tenho certeza que essas pessoas que sabem, eu acredito que só elas sabem, não contou nunca pra ninguém”.
Todo esse forte relato de Kytéria marcou um dos momentos que ela considera como um dos mais difíceis da sua vida: revelar a condição do HIV para sua mãe. Entretanto, mesmo com o questionamento de sua progenitora, não teve coragem de revelar como e em que tipo de relação infectou-se. “Minha mãe no hospital perguntou como foi isso, (mas) minha mãe é tão leiga que eu consegui falar pra ela que foi alguma namorada, alguma coisa por aí. Porque ela não conseguia acreditar que eu daquela igreja, daquela doutrina, indo todo santo dia tinha a possibilidade de ter algum relacionamento gay e de viver ativamente o mundo gay. Nessa época eu não podia dormir fora de casa e chegar de madrugada com a cara mais limpa do mundo. Ia ter um confronto muito grande dentro de casa e a porrada ia estancar”.
Jovens, Aplicativos e Infecção
“Eu acho que os jovens eles são muito, hoje em dia, os jovens estão nascendo muito promíscuos, muito viciosos. As pessoas querem muito pele com pele”. Curto e grosso, Kytéria enfatiza dessa maneira um dos motivos que levam os jovens a negligenciarem a prevenção e transarem sem camisinha, aumentando os índices dos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde em HIV e AIDS. Além disso, para ele, “com o aplicativo se torna mais fácil. A bicha não precisa ir mais pra uma sauna, pra uma coisa de pegação. Em casa mesmo, onde a gente estiver na rua, abre o aplicativo e tem milhares de aplicativos por aí. Boto uma fotinha lá sensual e as bichas ficam loucas”, conta.
Por isso mesmo que essa tecnologia tem que ser utilizada como algo a favor das campanhas governamentais que buscam elucidar os perigos do HIV, da AIDS e das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’S) para a juventude. Mas sem pânico. “Eu acho que (tem que ter) campanhas sábias porque eu acho que só medo(…) o medo também ajudaria, mas acho que fica mais bonito com informações válidas. O HIV hoje em dia não está tão prejudicativo (sic) quanto a sífilis, a gonorréia, as HPVs”. Revelando ter uma vida sexual bastante ativa, Kytéria afirma se proteger bastante e por isso não teme contrair uma IST. “Medo eu não sinto devido a todo o conhecimento e empoderamento que eu tenho. Eu me preparo muito bem, tipo assim, eu uso direitinho o preservativo, eu faço tudo direitinho, eu sei que mamar sem preservativo não é bom, não é legal. Eu tenho conhecimento, eu sei do perigo que eu passei e que eu posso passar e aquelas pessoas que estão ali”. Entretanto, aponta uma prática que não faz por ter medo. “Eu fico muito precavido com essa coisa de chupar pau sem camisinha. Eu tenho um medo muito grande de HPV, gonorréia, essas coisas. E agora eu fiquei sabendo de uma gonorréia que tá dando na garganta e é muito perigoso”.
Futuro
Estudante de Gastronomia, Kytéria vê nas festas e eventos com os quais já trabalha o futuro desejado na vida profissional. Com tradição familiar pelas panelas e dotes culinários, desde pequeno tinha a curiosidade por manejar ingredientes dos mais diversos tipos e dali dar mais sabor ao prato – e a vida – dos outros. E os sonhos são grandes. “Quando eu fui crescendo na adolescência eu já fui pensando na minha faculdade, no meu projeto de vida e de repente eu comecei a trabalhar com essa coisa de festas e bicos extras. E eu quando fui fazer uma faculdade eu imaginei e pensei que eu daria muito certo nessa área que eu gosto muito que é Eventos e Gastronomia. Aí eu decidi fazer a faculdade, uma faculdade cara. Eu fiquei assim meio preocupado, mas aos trancos e barrancos eu estou indo com calma, mas se Deus quiser eu vou me formar e vou me especializar, fazer pós em Confeitaria e Eventos”.
“E eu pretendo me formar e trabalhar não em cozinha de restaurante de se matar, aquele fogo, aquele calor, não. Eu pretendo trabalhar com eventos mesmo. Hoje eu tenho um buffett de eventos, tenho uma sócia, nós trabalhamos juntos, mas eu tendo um cliente meu eu mesmo faço tudo pra mim e não preciso depender dela, porque eu já tenho a estrutura e tenho conhecimento e capacidade de organizar e comandar um evento só meu. Então eu pretendo me formar futuramente, fazer uma pós em Confeitaria e Eventos e, quem sabe, futuramente, ir lá pra fora fazer mais cursos, se especializar e fazer grandes eventos no exterior”, acalenta.
*nome fictício
Texto: Jean Pierry Oliveira e Jéssica Marinho