RIO — O racismo começa a afetar a saúde de crianças e adolescentes ainda no útero. Na gravidez , a exposição prolongada a hormônios do estresse, por exemplo, pode colaborar para o nascimento de bebês com baixo peso e o aumento nas taxas de mortalidade infantil . As consequências são acentuadas pela dificuldade de mulheres negras em ter acesso ao pré-natal.
É o que afirma artigo publicado, na semana passada, pela Academia Americana de Pediatria , que aponta diretrizes para que os médicos adaptem sua prática para lidar com o tema. É a primeira vez que a instituição utiliza a palavra racismo no título de uma publicação.
No Brasil, a realidade não é diferente. A pesquisa “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, publicada em 2017 por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/ Fiocruz ), aponta que grávidas negras têm maior risco de ter um pré-natal inadequado, com menos orientação sobre o trabalho de parto e possíveis complicações na gravidez. Além disso, mulheres pretas receberam menos anestesia local quando a episiotomia — corte na região do períneo para aumentar o canal de parto — foi realizada.
— Uma das possíveis consequências da violência obstétrica é a baixa produção de leite. A criança que mama menos deixa de ter uma série de vantagens relacionadas ao aleitamento materno. Como o acesso à saúde para a mulher negra ainda é deficiente, elas nem sequer conseguem diagnóstico e tratamento correto para a doença — destaca a enfermeira obstétrica e doutora em epidemiologia Jacqueline Torres.
Em idade escolar, o racismo pode impactar a saúde mental, tornando-se um dos fatores responsáveis por desencadear doenças psíquicas como a depressão. O comunicado americano cita estudo que aponta que garotos de 10 a 15 anos que tiveram experiências com racismo tornam-se mais propensos a desenvolver problemas comportamentais como agressividade.
Durante a infância, o estresse pode criar hipervigilância em crianças que sentem que estão vivendo em um mundo ameaçador. As consequências podem incluir estresse pós-traumático, ansiedade e depressão.
Mudanças no consultório
A academia americana pede que pediatras estejam cientes dos efeitos do racismo no desenvolvimento infantil e que levem isso em consideração durante o atendimento. Além de reconsiderar a própria visão sobre a questão racial, as autoras propõem que médicos se envolvam mais nas comunidades para compreender a realidade dos pacientes, analisem se sintomas psíquicos podem ter sido provocados por episódios de preconceito e tornem seus consultórios espaços representativos para que as famílias se sintam seguras para falar sobre racismo. Adequações básicas no atendimento podem fazer diferença na saúde geral da população.
— Pais e responsáveis que relataram ter sido tratados injustamente têm maior probabilidade de ter filhos com problemas comportamentais, como transtorno do deficit de atenção e hiperatividade — aponta Maria Trent, professora de Pediatria da Escola de Medicina Johns Hopkins e uma das coautoras do artigo, em entrevista ao “New York Times”.
A pediatra e neonatologista do Hospital Universitário Pedro Ernesto Rosane de Souza destaca que o preconceito racial não provoca apenas doenças psíquicas. Em sua rotina, frequentemente recebe meninas de menos de 10 anos com alopecia de tração:
— O cabelo crespo é tão esticado para fazer penteados, pois a família acha que a sociedade vai aceitar melhor ou por um pedido da criança que já enfrentou situações vexatórias na escola, que essa tração altera a vascularização do couro cabeludo, e o cabelo deixa de nascer — diz Rosane. — Queimaduras na cabeça por causa de produtos alisantes também são comuns.
O artigo americano também identifica o racismo como um fator que afeta a prestação de cuidados de saúde. A médica e professora em Saúde Pública da Unirio Maria Aparecida de Assis Patroclo atribui à inadequação do sistema de saúde a dificuldade das famílias de levar as crianças a consultas periódicas com pediatras e de mulheres grávidas completarem todas as seis consultas do pré-natal, quantidade mínima recomendada pelo Ministério da Saúde.
— Se a população negra é a maioria na informalidade e entre os que moram longe do trabalho e, por isso, precisam sair de casa antes de amanhecer e só retornam muito tarde, um posto de saúde que só funciona de segunda a sexta, das 8h às 17h, não atende a essa população.
Segundo levantamento do IBGE para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua, de abril a junho deste ano, pretos e pardos eram quase 62% dos empregados sem carteira de trabalho assinada no setor privado, e cerca de 67% no trabalho doméstico informal.
Para Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, instituição de defesa dos direitos humanos e saúde da população negra, a saúde deve ser vista de forma integral, uma soma de medidas sociopolíticas, programáticas e pessoais: o Estado prover qualidade de vida na infraestrutura, o sistema de saúde investir na rede de atenção básica e promoção da saúde, em vez de somente tratamento emergencial as doenças, e o indivíduo precisa ter a inciativa de procurar atendimento.
Lucia também ressalta como o desemprego e a pobreza — pretos e pardos são 64,3% dos desocupados, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua — pode ser determinante na saúde da população negra.
— A alimentação, por exemplo, piora com a pobreza e traz consequências. São muitos os fatores socioeconômicos que influenciam nos medidores de saúde: falta de saneamento básico, ausência de coleta de lixo, que deixa os moradores expostos a doenças infecto-contagiosas, baixo acesso à água potável. Precisamos parar de encarar a saúde como compromisso apenas do indivíduo e enxergar também como responsabilidade do Estado.
Fonte: O Globo