Nesta entrevista, o diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, afirma que o debate público é primordial para a democracia e para a saúde sexual da população, com destaque para a resposta à epidemia do HIV e da AIDS. Parker lembra que o diálogo público respeitoso é essencial para a construção de um mundo mais positivo e mais justo. A conversa girou em torno do novo “Guia do Sexo Mais Seguro: um Guia sobre Sexo, Prazer e Saúde no Século XXI”.
Lançado recentemente pela ABIA, o guia é um repositório de informações online sobre a prevenção do HIV e da AIDS e de outras doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis, a gonorreia e a hepatite. A instituição planeja oferecer versões impressas com foco em comunidades específicas, tais como gays, mulheres trans e heterossexuais.
De acordo com Parker, a ousadia – uma das marcas históricas da ABIA – tem um papel central no guia em razão do seu papel estratégico ao longo da história da AIDS no país. “Desde o começo da epidemia, a ousadia foi importante no enfrentamento da AIDS e de outras questões da saúde sexual”, afirmou. Confira a entrevista completa a seguir.
ABIA: Qual é a inovação que a ABIA oferece com o Guia do Sexo Mais Seguro no séc. XXI?
Richard: A gente quis inovar e também valorizar uma tradição já existente, ou seja, retomar a ideia dos guias de sexo seguro do século passado por meio de uma linguagem popular, erótica, com destaque para a sensualidade e até da sacanagem de uma forma positiva. Fizemos o esforço de trazer tudo isso para o século XXI. A camisinha, uma das metodologias de prevenção do passado, foi mantida, pois continua eficaz. Muitas pessoas conseguem usá-la e se prevenir muito bem. Por outro lado, esta não é a única metodologia já que tem pessoas que ou não podem ou não conseguem ou não gostam de usar o preservativo. E querem ter outras opções de prevenção. A grande mudança do século passado para o atual é que há novas modalidades e a gente pode “modernizar” o leque de opções para alterar a realidade atual.
Com o objetivo de informar sobre estas opções existentes, mostramos as metodologias biomédicas tais como a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP). Outra inovação está no formato. Foi feito no formato digital e impresso. Os impressos são dirigidos a diferentes populações que enfrentam vulnerabilidades diante do HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis. O primeiro material impresso foi para os jovens gays e HSH. Estamos produzindo neste momento o próximo que será para as mulheres trans e outro para mulheres heterossexuais. Futuramente, vamos fazer para homens trans e homens héteros. A ideia é que, ao longo do tempo, possamos lançar novas versões impressas que poderão ser distribuídas nas ruas. Este material, além de informar, é um convite para as pessoas visitarem os sites da ABIA onde já está disponível um repositório digital com muito mais informação, ou seja, o guia completo.
ABIA: Que informações podem ser encontradas no guia?
Parker: Há informações empíricas, científicas e também contos eróticos que tratam das fantasias que envolvem o sexo mais seguro. É um guia que oferece muitas imagens, informações adicionais e um leque sobre diversas questões de saúde além do HIV, como hepatites, sífilis, dentre outras. Por ser digital, a ideia é que seja capaz de oferecer um leque mais amplo do que se fosse apenas impresso. Com isso, a ABIA abre mais possibilidades para as pessoas surfarem na internet e buscarem as informações que sentem mais adequadas para si mesmas. Ao contrário do impresso, o guia disponibilizado na internet não é dirigido a uma população específica. O jovem HSH pode querer saber coisas que tenha a ver com os homens trans, por exemplo. A era da informática e da informação permite abrir uma diversidade que em outra época, antes da internet, não existia.
ABIA: Como interpretar o sexo mais seguro nos dias atuais?
Parker: O sexo seguro surgiu nos anos 1980, antes da internet. Hoje temos opções modernas de prevenção e também inúmeros canais de comunicação. Uma das razões que torna isso importante é que um dos erros ao longo de quase 40 anos da epidemia de AIDS é o desaparecimento das vozes comunitárias. Já nos primeiros anos, quando ainda tínhamos a resposta comunitária, assistimos à entrada de diversos experts da saúde pública: médicos, especialistas da educação, dentre outros. Foi bom ter outros setores envolvidos no enfrentamento da epidemia, mas nem sempre isto foi feito por meio de uma estratégia pedagógica muito positiva. O que na tradição de Paulo Freire se poderia chamar de pedagogia bancária. Os experts falavam para as pessoas o que elas deveriam saber e o que deveriam fazer. E isso não deu muito certo. Na minha visão, isso acabou desviando a eficácia da prevenção e da educação, ou do que na ABIA, chamamos de ‘pedagogia da prevenção’. Queremos que as comunidades construam as suas próprias respostas. Nestes tempos mais recentes, principalmente com as tecnologias de prevenção biomédicas mais complexas, o debate sobre a sexualidade tem sido cada vez mais restrito. Ter médicos que apenas dizem para os pacientes tomarem suas pílulas e fazerem ‘do jeito que eles mandam’ não é uma maneira de empoderar as pessoas.
ABIA: Como a pedagogia da prevenção pode apoiar o empoderamento?
Parker: A pedagogia da prevenção propõe que as pessoas se informem para se sentirem empoderadas e conscientes sobre as situações que vivenciam e façam as escolhas sobre o que faz sentido para elas. Não vai funcionar se a questão for simplesmente fazer o que manda o médico ou o especialista em saúde pública. Queremos que as pessoas, com destaque para as comunidades mais vulneráveis à epidemia da AIDS, tenham a possibilidade de fazer suas próprias opções e tomar as suas decisões, dialogando com especialistas, mas tendo o poder de escolha muito maior do que havia sido no passado. É isso que estamos fazendo com este guia e de uma forma mais interessante e inovadora. Além disso, os recursos da informática e da informação nos permitem atualizar na medida em que outras novas tecnologias forem surgindo.
ABIA: No processo de produção do guia, a ABIA buscou ouvir as comunidades mais vulneráveis. Por que optou por esse caminho e qual a importância e o resultado disso?
Parker: Este guia faz parte de um projeto específico que a ABIA, apoiada pela MAC AIDS Fund, tem desenvolvido com os jovens na temática da diversidade sexual e a mobilização das suas comunidades. No processo de elaboração do guia era importante o envolvimento de pessoas da equipe do projeto – formada por especialistas, médicos, cientistas sociais, jornalistas e pessoas com formações diversas – mas também de quem participa das atividades do projeto. Já tínhamos uma ideia do que a gente queria trazer. Mas mesmo assim dialogamos com vários grupos de discussão, criamos os grupos focais e mostramos os primeiros esboços. Os jovens refizeram os materiais, fizemos longos debates sobre como deveriam ser algumas terminologias e qual seria a linguagem apropriada. Queríamos que os grupos de jovens de diversas identidades sexuais, de diversas camadas sociais e diversos gêneros colaborassem. E acho que o guia melhorou muito por causa desse processo de construção coletiva. Isso levou uns 6 meses a mais do que tínhamos programado. Era para ter sido lançado no ano passado, mas não havíamos chegado ainda num ponto em que as pessoas estivessem satisfeitas. Então fomos refinando e estamos ainda fazendo isso, dialogando com os grupos de discussão para ver o que deve mudar, o que deve ser atualizado ou como as pessoas acham que o guia pode ser melhorado.
ABIA: Você acredita que, por conta dessa proximidade com as comunidades, especificamente em relação aos jovens, a linguagem ficou mais próxima do que eles pensam?
Parker: Creio que sim. Na verdade, fizemos uma negociação. As pessoas apresentavam seus argumentos e o grupo chegava a uma conclusão. Talvez nem todos tenham achado o resultado final perfeito, mas fizemos uma aproximação para uma coisa que parecia ser mais adequada para a maioria das pessoas consultadas. O guia está próximo de algo que representa melhor as comunidades. Mas reconheço que o processo é sempre uma escolha difícil. Em muitos casos, optamos por usar duas ou mais terminologias. Por exemplo, uma palavra mais cientifica no texto e outra mais popular em parênteses. Também optamos por disponibilizar um vocabulário com palavras coloquiais para práticas sexuais e questões de gênero e sexualidade. Estará disponível no site junto com um glossário de termos um pouco mais técnicos para que as pessoas possam consultar. Enfim, pensamos em oferecer este repositório de informações para lidar bem com essa complexidade da riqueza do nosso vocabulário, das palavras usadas para lidar com sexualidade, prazer e a saúde. São essas dimensões que o Guia do Sexo Mais Seguro coloca na mesa para quem deseja pensar na prevenção dentro de suas próprias vidas.
ABIA: A ousadia é uma das marcas históricas da ABIA e este guia dá margem a isso em vários aspectos. Gostaria que falasse um pouco da função da ousadia nesse momento político do país e neste Guia do Sexo Mais Seguro, especificamente.
Parker: Desde o começo da epidemia, a ousadia foi importante no enfrentamento da AIDS e de outras questões da saúde sexual. É por causa do estigma associado com a AIDS que a comunidade gay, a comunidade LGBT, o movimento feminista e vários movimentos sociais abriram esse espaço para a ousadia. Nos lugares onde se tinha mais ousadia, em termos gerais, conseguíamos respostas muito mais positivas no combate à epidemia. E onde havia repressão e censura, ou seja, quando não se conseguia falar sobre as coisas, tínhamos os piores resultados. Isto é um fato histórico.
Pelo fato que a AIDS surgiu nos anos 1980 num momento de crescente democratização da sociedade – quando se construiu aberturas – durante muito tempo houve um contexto especialmente ‘feliz’ para permitir essa ousadia. Hoje o conservadorismo está cada vez mais forte. Há uma tentativa destes setores mais conservadores em bloquear a possibilidade de pensar diferente. Nesse momento, mais do que nunca é importante ter ousadia. Não para desafiar o conservadorismo, mas para obrigar a sociedade a se escutar. O debate público é importante, sempre haverá diversas opiniões. Não queremos ditaduras, mas sim, o dialogo público respeitoso onde as pessoas possam colocar suas posições e possa haver o diálogo para construirmos um mundo mais positivo e mais justo. O momento é de insistir para ter um espaço que garanta as posições de todos. Neste sentido, é preciso dar lugar à valorização da fala, da liberdade, dos direitos, à valorização da sexualidade, da sensualidade e do erótico. É preciso valorizar todas as formas de amar. Este é o momento de continuar valorizando estas questões. É o que propomos com este guia quando oferecemos informações para tornar a vida das pessoas mais segura e mais feliz.
ABIA: O guia vai além da AIDS e aborda também sobre outras infeções sexualmente transmissíveis como sífilis, entre outras…
Parker: O Guia do Sexo Mais Seguro é consistente com uma trajetória institucional de 30 anos na qual a ABIA tem contextualizado o HIV. Mas nós sempre compreendemos as questões da saúde e da sexualidade como algo que perpassa a AIDS e envolve questões como infecções e doenças sexuais diversas. Por exemplo, não dá para pensar a AIDS, sem pensar as hepatites virais. Não dá para pensar a AIDS, sem pensar na tuberculose por causa das co-infecções. Quando a ABIA surgiu como uma instituição para contribuir na resposta ao HIV e à AIDS, aprendeu que só tratava do HIV e da AIDS quando se tratava de outras coisas. Era necessário pautar questões como a desigualdade social, o racismo, as questões de gênero e uma séria de outros temas que envolvem a sexualidade, a saúde sexual e reprodutiva. Ao longo dos anos 1990, fizemos um esforço para construir alianças com os movimentos sociais, com destaque para o movimento feminista, a fim de rever os vínculos entre a AIDS e a saúde pública. Buscamos a inserção destas questões de sexualidade, gênero e reprodução dentro de uma ótica dos direitos humanos mais ampla.
ABIA: Em poucas palavras, qual a principal contribuição da ABIA com este guia.
Parker: Creio que é manter firme a valorização de uma abordagem aberta sobre a sexualidade e entender que não dá para falar de AIDS sem falar de sexo. Se vamos enfrentar a epidemia do HIV e da AIDS, precisamos abrir este espaço para dialogar com as pessoas sobre saúde e sexualidade de uma maneira que valorize as diversas comunidades, identidades, subjetividades que existem. E fazer disso uma luta: reunir informação com liberdade e ousadia e construir uma pedagogia da prevenção que, de fato, é digna da sociedade diversa que a gente vive.