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Em menos de 6 meses, covid mata mesmo número de brasileiros que HIV em 9 anos


Castigado há séculos por epidemias e surtos dos mais variados tipos, o Brasil não é estranho a crises de saúde. Até hoje, no entanto, nenhum dos flagelos que atingem os brasileiros periódica ou continuamente matou tantos em tão pouco tempo como a covid-19. Considerada a epidemia do século 20, o HIV e as doenças associadas à Aids fizeram 270.591 vítimas entre 1996 e 2018, de acordo com o DataSUS, sistema de vigilância em saúde do governo federal. O HIV, no entanto, levou 9 anos para alcançar o número de mortos que a Covid-19 fez em pouco mais de 5 meses.

O país deve chegar no sábado à trágica marca de 100 mil mortes causadas pela doença. Desde a gripe espanhola, há 102 anos, o Brasil não via algo assim, com a perda de vidas em uma velocidade muito superior a enfermidades como Aids, tuberculose e dengue. “Isso é inédito, algo que nunca teve. Deveríamos estar em desespero, isso é uma tragédia como uma guerra de verdade, um conflito armado. Mas o Brasil está em uma anestesia coletiva”, diz o infectologista José Davi Urbaéz, porta-voz da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia).

A comparação com outras doenças que, como a covid-19, são virais e não têm vacinas, mostra o tamanho do estrago que o novo coronavírus —que também pode atingir no sábado a marca de 3 milhões de casos confirmados no país— vem fazendo no Brasil. Quase endêmica no país, a tuberculose matou muitos brasileiros. Foram 104.268 óbitos entre 1996 e 2018, último ano em que o DataSUS tem contagem completa. Foi em 2017, depois de 22 anos de registros, que a doença atingiu a mesma marca de vítimas fatais que a Covid deixará até este fim de semana. A dengue, outro flagelo que atinge os brasileiros a cada verão, apesar dos milhões de casos registrados, matou 6.984 pessoas em 23 anos.

Em 2019, um dos piores anos da série, foram 782 óbitos. A malária, no mesmo período de 1996 a 2018, fez 2.342 vítimas fatais. “Nos últimos 100 anos o Brasil sofreu diversas pandemias, epidemias e possui grandes endemias. Tivemos a pandemia de Influenza H1N1 em 2009; na década de 90 a pandemia de cólera nos atingiu, temos a epidemia de dengue, zika e chikungunya que frequentemente nos visita, além de termos grandes endemias como tuberculose, malária, doença de Chagas, leishmaniose. Entretanto, nenhuma dessas doenças vitimou tantos brasileiros num período tão curto de tempo. Isso é uma coisa que nos choca muito”, diz o infectologista Roberto Medronho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio e Janeiro e líder do Grupo de Trabalho Multidisciplinar para Enfrentamento da Covid-19 da UFRJ. Chamada de “gripezinha” pelo presidente Jair Bolsonaro, a Covid-19 é ainda bem mais mortal que os diferentes tipos de influenza, que em 23 anos causaram a morte de 9.836 mil pessoas no país, segundo os números do DataSus.

“Esses números mostram que não é uma gripezinha, um resfriadinho, é uma doença muito grave, não é algo dentro do normal, não é possível relativizar. A Covid-19, dentro do cenário de saúde pública, é um dos mais importantes fenômenos da história do Brasil. É difícil uma doença aguda, tirando a gripe espanhola, que tenha levado tantas vidas em tão pouco tempo”, afirma Alexandre Naime, chefe do departamento de Infectologia da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A influenza de 1918, que entrou para a história como gripe espanhola, matou entre 30 e 50 milhões de pessoas no mundo. Em um Brasil ainda majoritariamente rural, a estimativa é de 35 mil a 50 mil mortos, sendo quase 15 mil no Rio de Janeiro, maior cidade do país à época.

200 mil óbitos “A gente não sabe quando vai parar, talvez 150 mil, talvez 200 mil óbitos. Nós só vamos ter noção do impacto do que realmente foi a covid-19 quando tivermos um distanciamento temporal, mas não tenha dúvidas de que na história do Brasil ela só tem comparação com a gripe espanhola”, diz Naime. “Na história do Brasil como um todo, pode ter correlação com números de óbitos causados pelas doenças que colonizadores trouxeram para os índios, como varíola e influenza.”.

O início da epidemia no Brasil é marcado como 26 de fevereiro, quando foi confirmado o primeiro caso, em São Paulo. Foram praticamente três meses para chegar em 50 mil mortes, e mais 50 dias para se chegar a 100 mil, se o número for de fato atingido no sábado — até quinta-feira, foram confirmadas 98.493 mortes por covid-19 no país. Há sete semanas epidemiológicas consecutivas o país tem registrado mais de 1.000 mortes por dia em média, e caminha para a oitava semana acima desse patamar após registrar 4.930 óbitos nos últimos cinco dias.

Paralelamente, o número de casos permanece elevado, com média superior a 50 mil registros por dia nos dias de semana, levando o Brasil a passar de 2 milhões para 3 milhões de infecções confirmadas em apenas 23 dias caso o número seja alcançado no sábado — uma aceleração em relação ao milhão de casos anterior, que foi acumulado ao longo de 27 dias. “É uma situação ímpar, é uma tragédia e não se tem nenhum alinhamento para controle da pandemia. O que se vê é o predomínio de palavras como ‘flexibilização’, ‘reabertura’, tudo o que aumenta circulação de pessoas e perpetua a propagação do vírus em nível absurdo”, diz Urbaéz, da SBI.

“Não existe platô em controle de epidemia, isso é uma invenção. É uma catástrofe você optar por ter um país em que 1.200 mortes por dia seja parte da rotina das pessoas.” Depois de começar a epidemia com fechamento da economia nas primeiras semanas, hoje o Brasil vê a maior parte das cidades com a vida voltando ao normal, inclusive com discussões sobre a retomada de aulas presenciais, além de bares, restaurantes e academias abertos e circulação de carros e pessoas pelas ruas.

Bolsonaro, que sempre se opôs às quarentenas alegando que o impacto econômico da paralisação seria pior do que os próprios efeitos da doença, disse na quinta-feira que lamentava as mortes, “mas vamos tocar a vida”, repetindo postura que vem adotando desde o início da pandemia de minimizar os óbitos. Para Medronho, da UFRJ, esse resultado é decorrente da falta de articulação entre o governo federal, Estados e municípios.

“Essa dramática situação não é decorrência apenas da gravidade da doença, mas também de uma desarticulação completa entre os entes da Federação para o enfrentamento adequado da doença”, afirma Medronho. Depois da saída de dois ministros da Saúde — Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich —, o general Eduardo Pazuello, interino no cargo desde maio, coordena a distribuição de equipamentos e medicamentos e a qualificação de UTIs, mas abandonou a defesa do distanciamento social, medida considerada essencial por especialistas em saúde pública para conter o avanço do vírus. “A mensagem que temos hoje ‘é pegue seu coronavírus e se ficar grave tem UTI. Esse é o resumo da nossa política”, diz Urbaéz.

Fonte: UOL

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