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David Miranda quer ser a principal voz LGBT no Congresso Nacional


Foto: Divulgação

Ouvir David Miranda, 33 anos, contar sobre o dia que mudou sua vida é como entrar em uma série de Fernando Meirelles feita de episódios (quase) sempre felizes. O cenário é o Rio de Janeiro de 2005. O sol já começa a esquentar as areias de Ipanema, na altura do Posto 9, quando uma bola de futevôlei acerta um copo de caipirinha de um norte-americano recém-chegado em terras fluminenses. David, então aos 19 e autor do chute, sai para recuperar a bola e faz questão de pedir desculpas pelo acidente, mesmo que em um inglês macarrônico. O gringo, um advogado de 37 anos especialista em direito constitucional, por sua vez, se esforça em desenvolver o português rudimentar aprendido meses antes em aulas particulares. Nenhum cuidado das partes foi por boa educação, mas “por amor”, conta David, sentado no sofá de sua casa de paredes envidraçadas no bairro da Gávea, Zona Sul da capital, enquanto segura as mãos do marido – não por acaso, Glenn Greenwald, hoje com 52 anos, o turista da caipirinha.

David e Glenn passaram juntos todo aquele dia – precisamente “19 de fevereiro de 2005”, dizem em coro. “Na manhã seguinte, cheguei em casa e comentei com minha prima: ‘Conheci o homem da minha vida’”, lembra o brasileiro. Na época, Glenn vivia em Nova York e estava no Brasil para umas férias de sete semanas. Tinha acabado de terminar um casamento e desejava usar o tempo na cidade para uma espécie de detox mental e amoroso. Se apaixonar era um quadro nem sequer desejável. “Mas senti um amor obsessivo e não podia mais responder pelos meus atos, só seguir o coração”, recorda.

Uma semana após o encontro no Posto 9, os dois já moravam no mesmo apartamento.Em menos de seis meses, começavam uma caminhada conjunta que acabaria com David no Congresso Nacional, como o deputado federal que se tornou, e Glenn premiado com um Pulitzer e um Esso de reportagem, fruto de seu trabalho como jornalista, um plano B iniciado nessa fase.

Rebeldia sem causa

David é o caçula dos sete filhos de Sônia, mãe solo que sustentava a prole como prostituta. Dos irmãos, teve uma que ele não chegou a conhecer. A bebê morreu ainda antes de o deputado nascer, “e eu nunca soube o porquê”, diz. Ele também não sabe da identidade do pai; nem do seu, nem dos pais de seus irmãos. “Cada criança é filha de um diferente, e a gente não conviveu com nenhum.” Nessa organização familiar, David ficou até a mãe morrer por conta de um câncer no útero, “ocasionado pelo meu nascimento”, explica. “Foi violência obstétrica. Deixaram uma agulha no útero dela durante o meu parto e isso virou um tumor, é o que minha tia sempre contou”, na sua versão particular. O deputado tinha 5 anos quando Sônia morreu e foi acolhido pela irmã dela, Eliane, que tinha quatro filhos e havia acabado de perder o marido. Todos moravam na favela do Jacarezinho. A nova família não contava com os outros filhos de Sônia, “cada um foi para um canto. Teve um que sumiu. Teve dois que pararam na Febem. Como eu era o mais novo, minha tia conseguiu segurar”.

David sabe: tinha tudo para acabar como os seus “irmãos de sangue”, de quem ele parou de ter notícias ainda na infância. A origem muito pobre, a criação na favela, a mãe prostituta que passava dias fora de casa para conseguir trabalhar, a ausência paterna, a droga que espreitava a infância, a fome. “Por causa da minha tia, tive uma estrutura familiar que me colocou rédeas. Ela, apesar de ser faxineira e ter de sair todo dia para trabalhar fora, cuidava de tudo, pedia para as minhas primas não tirarem o olho de mim.” Eliane ainda ensinou ao pequeno David que os livros eram uma opção à rua. “Eu deixava de comer um salgado e um suco no centro da cidade para comprar Paulo Coelho. Amava ler sobre magia e misticismos e talvez por isso agora seja pagão.”

Os livros fomentaram em David uma “educação autodidata” que ele nunca abandonou, mesmo tendo deixado a escola aos 13 para trabalhar como entregador de panfletos de um consultório odontológico. Na mesma idade, ele saiu da casa de Eliane e passou a dormir nas ruas. Pedia dinheiro a transeuntes, comia do lixo do McDonald’s, engraxava se fosse preciso. “Mas estava livre e era o que eu queria. Quando adolescente, tinha uma rebeldia sem causa, uma coisa aventureira que me movia para desbravar a cidade.”

Andrea Miranda Peçanha, de 40 anos, prima e irmã de criação do deputado, é testemunha dessa época: “Ele dava trabalho porque matava aula e saia andando pelo Rio, ia parar em cachoeiras e bibliotecas. A gente ficou preocupada dele sair de vez de casa, mas confiava que não ia arrumar problema”. David passou um par de meses em situação de rua e então foi morar com uma amiga da mãe, que lhe cedeu a garagem de sua casa na favela do Rato Molhado para que ele e dois primos se ajeitassem. Ali, terminou o ensino médio em um curso supletivo e ficou até o dia em que conheceu o marido.

Um amor político

O casamento com Glenn já vai para o 14º aniversário. Os dois oficializaram a união sob a lei brasileira, naquele tempo à frente da dos Estados Unidos, por garantir vistos permanentes para estrangeiros em união estável com cidadãos daqui, mesmo para casais homoafetivos. Semanas após o casamento, Glenn criou um blog onde passou a escrever sobre política, especialmente a norte-americana, e o intitulou Unclaimed Territory. Um escândalo sobre espionagem doméstica partindo do governo dos Estados Unidos foi o prato cheio para um advogado especializado em direito constitucional. Cinco meses após a estreia do blog, Glenn fechou o primeiro contrato para escrever um livro, que mais tarde entraria para a lista de best-sellers do jornal The New York Times. Era 2006. David, então telefonista em um telemarketing, começou a estudar Publicidade e Marketing para gerenciar a nova carreira do marido, que a passos rápidos se construía como um respeitado jornalista independente.

No final de 2012, Glenn foi procurado por Edward Snowden, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), que lhe entregou documentos que puderam revelar que a espionagem norte-americana ultrapassava o Hemisfério Norte e chegava à Petrobras e até à então presidente Dilma Rousseff. Nesse momento, Glenn e David trabalharam juntos. O que inclusive levou o brasileiro a ser preso em uma sala do Aeroporto de Heathrow, em Londres, e interrogado durante nove horas por sete oficiais britânicos sob o constante aviso de que seria preso com base em lei antiterrorismo, caso não “cooperasse”. Quando foi detido, voltava de uma visita na Alemanha à documentarista Laura Poitras, que também teve acesso aos dados de Edward. David processou a polícia londrina e venceu: os juízes entenderam que o Anexo 7, chave da Lei Antiterrorismo britânica que o segurou no aeroporto, fere a lei europeia e, portanto, deveria ser alterado.

Logo depois do episódio, ele iniciou uma campanha pelo asilo de Edward Snowden no Brasil. Nas eleições de 2014, a candidata à presidência pelo PSOL Luciana Genro foi a única a se comprometer com a proposta. David acabou se filiando ao PSOL com a promessa de um mandato coletivo para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro ao lado do grupo político Juntos!. Em outubro de 2016, foi eleito vereador com 7.012 votos. Dos projetos que apresentou, o que mais o envaidece é uma emenda que coloca servidores, pensionistas e aposentados como prioridade máxima na folha de pagamento da prefeitura carioca. “Foi aprovado e agora não podem mais parcelar o salário dessas pessoas. Se acontecer, as contas são congeladas.” Outro feito digno de lembrança foi uma denúncia “por falta de decoro” contra o vereador Carlos Bolsonaro (PSL) à Comissão de Ética da Câmara. “Na época da campanha presidencial, ele publicou no Twitter uma imagem que simulava tortura ironizando a campanha #EleNão. A postagem foi um ataque direto ao movimento de mulheres e LGBT que negavam a candidatura de Jair Bolsonaro”, diz David. Através de sua assessoria de imprensa, Carlos Bolsonaro respondeu que não dará entrevistas sobre o episódio.

Na Câmara, David conheceu a também vereadora e companheira de partido Marielle Franco. Os dois se tornam “melhores amigos” e começam a frequentar a casa um do outro. Suas pautas se encontram na vida e na política: “Os dois LGBTs, os dois pretos, os dois favelados e defensores dos direitos humanos”, ele diz. Marielle e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados em março de 2018. No velório da vereadora, David foi um dos que carregaram o caixão. “Foi um dos piores, se não o pior, dia da minha vida. As pessoas passando mal, caindo sobre o chão da praça da igreja. A Monica [viúva da vereadora] incrédula. A Luyara [filha de Marielle] inconsolável. Todos com um misto de dor e muito medo”, conta. Da data, Glenn se lembra especialmente do quanto ficou preocupado pelos filhos do casal, João Victor, de 11 anos, e Jonathan, de 9. Os meninos são irmãos e foram adotados em 2017, em Maceió.

Mas o medo de Glenn pouco durou. Assim que a onda de orgulho por Marielle começou a se erguer, ele entendeu que deveria mostrar aos outros este sentimento, sempre que tivesse chance: “Queremos ser exemplo para a juventude LGBT, mostrar que é possível ter uma família fora da curva, mas feliz e completa. Nosso lar é político”, diz o jornalista.

Voz dissonante no congresso

Nas eleições de 2018, David decidiu disputar uma cadeira no Congresso Nacional e recebeu 17.356 votos, tornando-se o primeiro suplente da bancada do PSOL. Em 24 de janeiro deste ano, Jean Wyllys, também do PSOL, abriu mão de seu terceiro mandato como deputado federal e David assumiu seu lugar. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro tuitou, momentos após o anúncio de Jean no jornal Folha de S.Paulo, a seguinte frase: “Grande dia”. O ato fez com que David se pronunciasse na mesma rede social: “Respeite o Jean, Jair, e segura sua empolgação. Sai um LGBT, mas entra outro, e que vem do Jacarezinho. Outro que em 2 anos aprovou mais projetos que você em 28. Nos vemos em Brasília”.

O presidente e o deputado ainda não tiveram a oportunidade de trocar olhares na capital federal. “Seria um desgosto”, considera David, que desaprova o novo governo: “Bolsonaro é apenas uma marionete da grande burguesia para passar as reformas mais absurdas”. Para ele, a reforma da previdência é uma delas. “As pessoas estão morrendo de fome, são quase 30 mil famílias em situação de miséria só no município do Rio de Janeiro. Os caras que querem passar essa reforma nunca tiveram fome. Ter fome é uma parada que não desejo para ninguém. É muito foda ser governado por sujeitos que não entendem nada da vida da população.”

Sua prioridade como parlamentar é aprovar um projeto que criminaliza a homofobia, “a Lei Maria da Penha dos LGBTs”. Em suas duas primeiras semanas no Congresso, David não conseguiu chegar ao microfone do plenário. “Bate um medo irracional que diz que não pertenço àquele lugar. Durante muito tempo é o que fizeram nós negros acreditar, que os espaços de poder não são para a gente.” Na 56ª Legislatura da Câmara, entre os 513 deputados, ele é um dos 21 que se declara preto – e o único assumidamente gay, assim como seu antecessor. “É claro que entendo a atitude do Jean”, diz sobre o fato de o político baiano ter abandonado o mandato devido a ameaças de morte contra ele e sua família. “Era crucificado no Congresso. Mal conseguia usar o banheiro. Sofria LGBTfobia constantemente. E foi minado como político. Estava sufocado vivendo neste país, andando com escolta. Recentemente Jean mandou um áudio para a bancada do PSOL dizendo que enfim  podia caminhar pelas ruas livremente.”

David não esconde: sente medo de o mesmo acontecer com ele. “Mataram Marielle, tentaram matar o [deputado federal Marcelo]Freixo, Jean só desistiu porque vivia à base do pavor. Não somos super-homens; se tomarmos um tiro, morremos. Ainda assim, temos uma responsabilidade moral e cívica como representantes eleitos. E no fim, acredito de verdade que a gente consiga mudar qualquer coisa, inclusive o Congresso. Uma vez ouvi de um homem muito sábio: ‘Tudo que é feito por seres humanos pode ser transformado por seres humanos’.” A frase, ele entrega depois que o marido sai da sala para servir almoço para os filhos, foi dita por Glenn no ano passado, em uma fala no Vale do Silício.

Fonte: Marie Claire

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