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Curta-metragem fala sobre como é ser mulher, negra e LGBT nas periferias de SP


Foto: Divulgação/Perifericú

“Dizem que sonhar é a certeza de que você tá viva. Essa anda sendo minha maior preocupação”. Essa é uma das falas de Luz, uma travesti negra adolescente de 20 anos que mora no Grajaú, uma das quebradas do extremo sul de São Paulo. Ela é uma das protagonistas do curta-metragem PERIFERICÚ, uma produção independente feita por uma equipe majoritariamente feminina, negra e LGBT, todos jovens das periferias de SP.

Luz é interpretada por Vita Pereira, 22 anos, uma travesti negra de periferia. Poucas produções do cinema nacional trazem travestis ou pessoas trans assinando a direção, mas além de interpretar uma das protagonistas do filme, Vita assina também a direção do curta. A direção, na verdade, é assinada por mais três mulheres, ao lado de Vita: Nayara Mendl, 25, Rosa Caldeira, 22, e Stheffany Fernanda, 21. As duas primeiras também assinam a fotografia do curta e a última a produção. O filme foi produzido pelo coletivo Maloka Filmes.

Cria de Barueri, região metropolitana de SP, Vita cursa o último ano de pedagogia na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara (SP). Ela é filha de doméstica e garimpeiro. Além de diretora, é performer, atriz, modelo e produtora cultural. Produz a festa Tr4v4d4 em Araraquara, que tem foco na população trans e preta.

Em entrevista à Ponte, Vita conta como foi a escolha do tema. “A história do nosso filme parte de um processo que começou lá atrás, em 2015. Na busca por entender qual o nosso papel dentro da sociedade enquanto jovens, LGBTs e faveladas, entrevistamos jovens de vários extremos da cidade e, apesar das distintas realidades, percebemos pontos que coincidiam nas histórias de todos. Em paralelo, nos deparamos com uma enorme carência de conteúdo criado por e para esses sujeitos”, explica a diretora.

Durante esse processo, explica Vita, outro projeto antecedeu o curta. “Daí surgiu a websérie documental, o Babado Periférico, exibida presencialmente em todas as regiões do Brasil. São 3 episódios que abordam diversos temas sobre a realidade pintosa e periférica em São Paulo, no objetivo de entender qual o nosso papel dentro da sociedade enquanto jovens, LGBTs e faveladas. Em 2018 resolvemos ousar mais na nossa missão e ir além: fazer uma ficção. Nasceu então nosso presente projeto, Perifericú”, relembra Pereira. “É isso que queremos: sintetizar histórias mostrando que corpos LGBTQIA+ periféricos produzem, se deslocam e ocupam espaços comuns, seja na religião, na relação com suas famílias ou em espaços diferentes da cidade. Estamos vivas e vivendo”, continua a diretora.

Para finalizar o filme e colocar na rua, a equipe fez um financiamento coletivo no catarse para arrecadar a verba da pós-produção. Para doar para finalização do Perifericú, os valores vão de R$ 10 (com direito a agradecimento nos créditos do filme) até R$ 1000 (que torna o doador em um patrocinador oficial do curta). A campanha termina em 4/6. “Em tempos de conservadorismo e ausência de investimentos na cultura, esse filme é um grito periférico que precisa de apoio para ser ecoado”, defende texto da vaquinha online.

Ser uma diretora travesti, para Vita, é uma alternância de poder. “Costumo falar que a Vita Pereira só faz sentido no coletivo. Dirigir esse processo foi muito intenso e enriquecedor. É um desafio muito grande quando se é preta, travesti, periférica, puta e usuária. São muitas questões que carrego e não posso escolher somente uma para lutar, sendo que todas elas me atingem. Somos quatro mulheres que em suas especificidades estamos na mira do cis-tema [um termo usado no movimento trans para remeter à cisheteronormatividade, norma social que entende que a sociedade precisa ser cisgênera, se sentir confortável com o gênero do nascimento, e hétero, se relacionar afetividade com o sexo oposto]. Realizar esse filme é uma forma de gritarmos, denunciarmos e respondermos a todas as amarras que nos aprisionam. É ir contra a corrente que segue na individualidade, enquanto propomos um cinema coletivo com corpos da quebrada”.

Para ela, ser um corpo travesti no cinema é como ser em qualquer outro espaço. “A maioria deles [os espaços] são compostos majoritariamente por homens brancos cisgêneros. Esse foi o segundo trabalho que dirigi com uma proposta de elenco totalmente com corpos dissidentes, e acredito nessa potência. É a quebrada falando da quebrada. Somos nós travestis produzindo sobre a nossa realidade”.

Perifericú é ambientado no Grajaú e na região central. A Casa 1, centro de acolhida para LGBTs expulsos de casa, foi um dos locais de gravação. Com 7 diárias, o curta foi gravado entre os meses de fevereiro e março de 2019. O curta mostra, a partir da coletividade e afetividade, como ressignificar e naturalizar as periferias enquanto locais possíveis, por meio de sonhos, cultura periférica, solidão da mulher negra e lésbica, hipersexualização do corpo travesti, religiosidade na quebrada, extermínio de negros e LGBTs, e os perrengues do dia a dia. “Nossa estética imprime a nossa linguagem, pintosa e periférica, que está presente na cultura hip hop, nos slam de tua, no afrofuturismo, na poesia marginal e no cine guerrilha”, define a equipe do curta.

“Nesse projeto fomos contempladas pelo VAI [Valorização de Iniciativas Culturais, projeto da prefeitura de SP que fomenta a cultura]. Acredito que foi uma das maiores produções que trabalhei até hoje. Muito bom chegar em um espaço e ver pessoas negras, LGBTQIA+ no som, na direção de arte, figurino, direção, atrizes. Sabemos que esses corpos são predestinados a ocupar certos lugares, posições de servidão, de subalternidade. Foram 7 diárias de muitas trocas e sonhos realizados. É extremamente gratificante ver sair do papel um produto tão longe de pesquisa e produção. Colocamos muito de nós e do que acreditamos nesse filme. Por isso foi um processo maravilhoso”, conta Pereira.

O filme ficcional conta a trajetória de Denise (Ingrid Martins) e Luz (Vita Pereira), mulheres negras que cresceram no meio de canções de rap, louvores de igreja e passos de vogue (um tipo de dança que ganhou o público LGBT na década de 80). O curta mostra como levar a vida adulta com pouco acué (termo usado no dialeto pajubá, uma linguagem criada por LGBTs periféricos, que remete a ‘dinheiro’) no bolso. “Da ponte para cá, é preciso aprender que o primeiro princípio para poder acessar a cidade é estar viva”, enfatiza a sinopse do projeto.

Para a Ponte, Vita conta um pouco sobre a sua personagem. “Luz vive com a mãe, dona Terezinha, e cresceu nas igrejas do bairro. A religião é um marco na sua vida. Hoje não frequenta mais nenhuma, só quer saber de role e aquendação [‘pegação’ no dialeto pajubá] no centro da cidade. Adora Cassiane e desde pequena dançava gospel e desfilava com a toalha na cabeça para Denise, sua melhor amiga. A quebrada é um lugar que ela passa situações de afirmação de identidade, violências, reconhecimento e colocação”.

A escolha da equipe foi feita com um princípio: construir um cinema com corpos marginais. “Com narrativas que sempre foram jogadas de lado e invisibilizadas pela história oficial. A equipe e elenco só se faz necessária com muita amapôs [‘mulheres’ no dialeto pajubá], transviadas, caminhoneiras [mulheres lésbicas que não reproduzem feminilidade], pretas e corpos dissidentes pensando sobre o filme, produzindo e atuando”, conta Vita à Ponte.

Produzir um filme independente com um time tão diverso é um desafio. Além dos custos altos, explica a equipe de Perifericú, existem outras catracas que tornam nosso cinema tão branco, elitista, machista e cisheternormativo. “[Gravar a curta] é sobre reparações históricas. Precisamos colaborar com essas narrativas que são historicamente marginalizadas. Ocupamos um espaço que pode até nos dizer que não devemos estar ali, mas só temos uma coisa a dizer: nos aguardem”, crava Vita.

Fonte: Ponte Jornalismo

 

 

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