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COVID-19 pelo mundo: casal de brasileiros relata como está a situação da pandemia na África no Sul. “O grande problema nas comunidades é não morrer de fome”


Foto: Arquivo Pessoal

A pandemia de coronavírus não chegou na África com a mesma intensidade do restante do planeta. Mas nem por isso significa que seus 1,2 bilhão de habitantes não estão vulneráveis a momentos de caos como temos visto na Europa, nos EUA ou no Brasil, por exemplo.

A falsa sensação de que existe uma “calmaria” ofusca, na verdade, uma realidade de incertezas e preocupação. De modo geral, diversos países do continente africano apresentam deficiências crônicas em seus sistemas de saúde, altas taxas de desemprego e pobreza. Mesmo que muitos deles já tenham, por outro lado, enfrentado ou ainda enfrentem diversas epidemias como a do HIV/AIDS e do Ebola, por exemplo, os desafios impostos pelas medidas sanitárias recomendadas pela OMS para mitigar os efeitos da doença (Organização Mundial da Saúde) esbarram em violências estruturais arcaicas.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) calcula que 40% da população mundial carece de meios para lavar as mãos em casa por falta de acesso fácil à água potável, por não ter condições de comprar sabão ou simplesmente pela falta de consciência da importância desta prática. As populações que lotam os subúrbios e os campos de refugiados na região do Chifre da África, no sudeste do continente, estão especialmente expostas porque podem estar desnutridas ou ter problemas de saúde, além das condições de saneamento insuficientes. Na África subsaariana, 63% da população de áreas urbanas – 258 milhões de pessoas – não pode lavar as mãos, segundo os dados do Unicef. Em outras palavras, isso quer dizer que o impacto da disseminação por COVID-19 coloca essa população como especialmente vulnerável.

O país mais rico e o mais desenvolvido, a África do Sul, é também o líder em casos por coronavírus. Até a publicação desta matéria os números apontavam para 4996 casos confirmados, 2073 recuperados e 93 mortos pela doença. Assim como o Brasil, a África do Sul é um dos países mais desiguais socioeconomicamente do mundo, conflitando em realidades distantes brancos e negros – e consequentemente o acesso à serviços como saúde. Além disso, o país também tem altos índices de pessoas infectadas por HIV.

Ainda que nas duas últimas semanas, surpreendentemente,  o país tenha visto uma queda abrupta de casos por coronavírus, é consenso entre especialistas e epidemiologistas que é muito cedo para avaliar a falta de casos como um progresso significativo no combate à epidemia, sendo apenas uma “calma antes de uma tempestade devastadora”, conforme descreveu o ministro da Saúde, Zweli Mkhezi, semanas atrás.

Na última segunda feira (27/04), inclusive, mais de 200 médicos e demais profissionais da saúde chegaram de Cuba para reforçar o combate ao COVID-19 no país, ao mesmo passo em que a partir de 1 de maio o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa começará a suspender gradativamente o confinamento nacional imposto desde 27 de março a seus 57 milhões de habitantes.

Radicados há um ano em solo africano o casal de pesquisadores brasileiros Lucas Hertzog, de 34 anos, e sua esposa Tainã Loureiro, de 35 anos – doutor em Sociologia pela UFRGS e atualmente pesquisador do Centre for Social Science Research na Universidade da Cidade do Cabo e doutora em Biologia Animal pela UFRGS e pesquisadora do Centre of Excellence for Invasion Biology na Universidade de Stellenbosch, respectivamente – acompanham de perto essa situação diretamente da África do Sul. Segundo eles, “a situação atual é de incerteza e preocupação. Existem várias dimensões sobre as medidas tomadas pelo governo e dependendo da perspectiva que adotamos para avaliá-las teremos respostas divergentes”.

Em entrevista exclusiva  por e-mail ao Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), o casal relata – numa resposta conjunta em primeira pessoa – como estão enfrentando esse momento no país, os desafios do continente africano, os paralelos entre África do Sul e Brasil entre outros aspectos.

Confira a entrevista na íntegra abaixo:

 

1 – Há quanto tempo vocês moram na África do Sul e onde? Por quê deixaram o Brasil?

R: Viemos para cá no ano passado. Moramos em Stellenbosch, uma cidade próxima à Cidade do Cabo na Província Ocidental. Deixamos o Brasil por falta de oportunidades para seguir as nossas carreiras por aí. Terminamos o doutorado em 2018 (Tai) e 2019 (Lucas). Como já podem imaginar, não são áreas particularmente prioritárias no atual cenário brasileiro. Preferimos sair do nosso país ao invés de ficar e possivelmente abandonar nossas carreiras.

2 – Como a pandemia de COVID-19 está modificando ou já alterou a rotina de

vocês? Financeiramente foram afetados? O que está sendo mais difícil?

R: Estamos em casa desde o final de março e nossa rotina mudou bastante. Estamos trabalhando de casa e cuidando das crianças (temos 2 filhos, de 4 e 3 anos), o que demanda atenção, tempo e energia. Por outro lado, diminuímos em torno de 2 horas por dia em deslocamento para o trabalho, o que reduziu o tempo que antes era desperdiçado em trânsito. Como nossos empregadores (Universidade de Stellenbosch e Universidade da Cidade do Cabo) não cortaram ou diminuíram nossos salários, e ainda estamos gastando menos por ficarmos mais em casa, fomos positivamente afetados em termos financeiros.

O mais difícil é saber que somos minoria em um país com 40% da população vivendo abaixo da linha da pobreza. A ideia que essa pandemia é “democrática” e afeta todos é parcial e enviesada. Os mais vulneráveis sofrerão brutalmente. O impacto na nossa vida é completamente irrelevante quando comparado ao impacto na vida de pessoas imunodeprimidas, ou daqueles vivendo em condições materiais deploráveis, ou pior ainda, quando as duas condições se sobrepõem.

3 – Em comparação com outras partes e continentes pelo mundo a África, aparentemente, ainda não foi tão impactada pelo coronavírus. Isso é uma impressão correta? De modo geral, como avaliam a situação da pandemia no continente?

R: No momento em que respondo essa entrevista o continente africano tem 35,010 casos confirmados, dos quais 4793 estão na África do Sul e 5042 no Egito (os dois países que mais recebem turistas no continente). Acredito que a primeira onda de circulação do Covid19 tem muito a ver com uma combinação de fatores, como o volume de circulação de pessoas (em portos, aeroportos, fronteiras em geral) e o clima. Se você comparar o número de pessoas que circulam anualmente pelos aeroportos de Londres ou Paris, com o número de pessoas nos aeroportos de Juba e Bangui, você pode inferir que a Grã-Bretanha e a França estão mais vulneráveis a novos casos que o Sudão do Sul e a República Central Africana.

Mas logicamente isso não quer dizer que a situação é mais grave na Europa do que na África. Pelo contrário, os efeitos dessa pandemia nos próximos anos podem ser devastadores em países com infraestruturas completamente fraturadas. A situação é alarmante.

4 – Até o momento desta entrevista, de acordo com os dados mais recentes disponibilizados pelas autoridades, a África do Sul registra 4793 casos registrados por COVID-19, com 1473 pessoas recuperadas e 90 mortes. Como está a atual situação no país? Como vocês avaliam as medidas tomadas pelo governo para o enfrentamento da doença?

R: A situação atual é de incerteza e preocupação. Existem várias dimensões sobre as medidas tomadas pelo governo e dependendo da perspectiva que adotamos para avaliá-las teremos respostas divergentes. Uma delas é que estão fazendo a coisa certa, fecharam o país, restringiram a circulação de pessoas ao máximo. Também proibiram a venda de bebidas alcoólicas e tabaco respondendo às recomendações da WHO (OMS, na sigla em inglês). Estão fazendo testes em massa e estão altamente orientados por conhecimento científico nas suas ações.

Outra perspectiva é das nove pessoas assassinadas brutalmente pelas forças armadas e polícia. Uma dessas pessoas, Collins Khoza de 40 anos, foi espancado a chicotadas até a morte. Acredito que o assassinato de 9 pessoas põe em xeque qualquer medida positiva supostamente considerada “adequada” por organismos internacionais.

5 – A África do Sul é o país mais afetado pela epidemia no continente africano. Apesar de não haver indícios ou registros de um colapso no sistema de saúde local, na última segunda feira (27/04) o país recebeu o reforço de 200 médicos e pessoal de saúde de Cuba. De que forma esse contingente pode ser útil para mitigar os efeitos do COVID-19?

R: O aumento no número de profissionais de saúde bem como uma maior quantidade de recursos alocados em testes e saúde em geral são sempre bem-vindos. Entretanto acredito que está na hora de pensar em estratégias de longo prazo focando em saneamento, habitação e melhorias na condição geral de vida da população. A vinda de mais profissionais pode mitigar os efeitos imediatos do Covid19, mas não resolve problemas de falta de infraestrutura, leitos hospitalares e democratização no acesso à saúde. Também não resolve a falta de representatividade de médicos negros no país, um problema bem conhecido dos brasileiros.

6 – Apesar de nas duas últimas semanas o país ter visto uma queda abrupta de casos por coronavírus, especialistas e epidemiologistas avaliam que é muito cedo para avaliar a falta de casos como um progresso significativo no combate à epidemia, sendo esta uma “calma antes de uma tempestade devastadora”, conforme descreveu o ministro da Saúde, Zweli Mkhezi, semanas atrás. Vocês também temem essa falsa sensação e acreditam que o pior ainda não passou?

R: Certamente o pior ainda está por vir. Boa parte da população sul-africana vive em “shacks”, que fazem as favelas brasileiras parecerem bairros de classe média. São habitações improvisadas feitas com telhas de zinco e qualquer tipo de material que possa ajudar a erguer um protótipo de casa. Em muitos desses shacks vivem famílias inteiras, com pais, filhas, avós, tias. Sobreviver ao inverno é uma conquista para essas famílias e os desafios que vem pela frente são incalculáveis.

7 – Assim como Brasil a África do Sul tem uma desigualdade social muito forte. E a epidemia de coronavírus, pelo menos aqui no Brasil – e nos EUA – também tem reforçado essa disparidade, evidenciando diferenças na forma como brancos e negros estão sendo infectados, tratados e mortos. Que paralelos vocês conseguem traçar entre os dois países nessa questão? 

R: Uma das coisas mais chocantes na África do Sul não é apenas ver como a maioria esmagadora dos negros vive na miséria, mas ver isso ao mesmo tempo comparando com a qualidade de vida dos brancos. Boa parte dos brancos vive numa “bolha europeia”, com a vantagem de ter uma legião de negros para fazer trabalhos braçais com custos baixíssimos. Uso o termo “bolha europeia” pois em alguns lugares aqui na África do Sul você é levado a esquecer que está na África, como em Sandton em Joburg (Joanesburgo, em inglês) ou Camps Bay na Cidade do Cabo.

Mas logicamente é só atentar à cor da pele de quem faz o trabalho braçal que você volta rapidamente à realidade. Essas diferenças repercutem no acesso à saúde, bem como na gestão da morte perpetrada pelo estado. Nenhum branco foi assassinado desde o início da pandemia, o que explica essa narrativa de que a África do Sul “está fazendo tudo certo”.

8 – O Presidente Cyril Ramaphosa lançou uma campanha abrangente para testagem em massa da população, alcançando 168.000 testes realizados. E pretende a partir desse início de Maio uma progressiva suspensão do confinamento nacional imposto desde 27 de março. Vocês concordam com essa medida? Houve uma boa adesão no isolamento para que tal medida seja considerada nesse momento?

R: Novamente existem diversas versões sobre o que está acontecendo e sobre as medidas adotadas pelo governo (assim como a resposta da população). Uma colega de trabalho que vive em Khayelitsha (uma “township” – como chamam as favelas por aqui – na Cidade do Cabo, com uma população de mais de 500mil pessoas) me contou semana passada que as pessoas não estavam aderindo ao confinamento na comunidade. O que era de se esperar, já que é virtualmente impossível ficar trancado, com a família inteira de 5, 6, 7 pessoas em um barraco 3x3m.

Já nos bairros abastados o confinamento apresenta desafios como aprender a configurar o Zoom e trabalhar de casa, ou traçar táticas para diminuir a chance de contaminação de quando se vai ao supermercado. A medida foi necessária, mas deveria vir acompanhada de programas sociais robustos que incentivassem as pessoas a ficarem em casa. Como falar para um vendedor ambulante que ele deve ficar em casa pelos próximos meses? O grande problema nas comunidades vulneráveis é achar um jeito de não morrer de fome, o Covid19 é uma preocupação lateral.

9 – Vocês esperavam que a África do Sul fosse tão afetada pela pandemia? Em sua opinião, que fatores podem ter contribuído para que o vírus se propagasse com mais contundência no país em comparação com os demais países do continente?

R: Acredito, e posso estar redondamente enganado, que isso tem a ver com o fluxo de pessoas no país. O aeroporto de Joburg (Joanesburgo, em inglês) é o maior hub da aviação africana, além de diversos outros portos e aeroportos de larga escala operando por aqui. Soma-se a isso o fato de o país ser um dos mais preparados no continente em termos de infraestrutura de saúde. Na Gambia, por exemplo, apenas 10 casos foram reportados. Seria isso o resultado de subnotificação por falta de testes ou por algum elemento mágico que protege os africanos (como já ouvimos de algumas pessoas por aqui)?

10 – De modo geral, diversos países africanos apresentam deficiências crônicas em seus sistemas de saúde, altas taxas de desemprego e pobreza. Por outro lado, enfrentam ou já enfrentaram diversas epidemias como a do HIV/AIDS e do Ebola, por exemplo, o que faz com que algumas medidas sanitárias ou precauções não sejam no todo uma novidade. Quais os prós e os contras do continente no combate à pandemia caso seja acometida com a mesma força como na Europa e nos EUA? 

R: O número de pessoas vivendo com HIV na África do Sul é elevadíssimo, o que torna dramática a situação do Covid19. Trabalho em um grupo de pesquisa com uma longa trajetória de investigação sobre a vida de adolescentes vivendo com HIV, e um dos maiores desafios é entender os mecanismos de aderência ao tratamento. Como fazer com que jovens compreendam que a situação é dramática e eles devem seguir o tratamento, ao mesmo tempo em que isso não gere pânico e problemas de saúde mental?

Essa condição da África do Sul, em particular, e de outros países africanos em geral, é um dos maiores desafios pela frente. Os lados positivos se fundamentam na resiliência da população africana e na habilidade de gestão de catástrofes aprendida ao longo dos anos.

11 – Vocês têm mantido contato com seus familiares no Brasil nesse período ou eles com vocês? Como avaliam, de longe, a situação por aqui enfrentada onde, além da pandemia, temos uma crise política?

R: As tecnologias digitais auxiliam na manutenção de certa “proximidade” com nossos amigos e família, ainda que isso não substitua o contato face a face. Ficamos consternados à cada notícia, a cada “canelada” do grupo de milicianos que atualmente ocupa o Palácio da Alvorada. Pessoas sujas com uma agenda obliqua estão ditando os rumos do nosso país, o que nos faz temer pela vida dos amigos e familiares.

12 – Que mensagem vocês deixariam para os brasileiros e, principalmente, para os jovens sobre a importância do isolamento social e também para aqueles que são céticos em se manter de quarentena?

R: O vírus é real, a situação é séria, e as coisas não vão melhorar com um passe de mágica. Precisamos adensar o contato íntimo com aqueles que amamos, ainda que não possamos tocá-los fisicamente. Aos que estão céticos em relação à quarentena, reflitam sobre as pessoas vulneráveis à sua volta. Se você não se importa com a sua saúde, pelo menos tenha a decência de se importar com a dos outros.

Além disso, esse é o momento de reforçar laços de solidariedade, criar correntes de afeto positivo e auxílio mútuo. Aos meus conterrâneos que apoiam esse crápula decrépito, espero que o curso da história lhes ensine que vocês estão do lado errado, e que a maturidade lhes mostre que mudar é preciso. Aos que estão do meu lado, muita força e luta. Ainda que tenhamos o pessimismo da razão, não esqueçamos o otimismo da vontade.

 

Texto: Jean Pierry Oliveira

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