Com a pandemia de COVID-19 evidencia-se inúmeros problemas e rupturas de ordem social, econômico, político, cultural e também de saúde. No que tange ao HIV/AIDS, que é majoritariamente algo preconizado e tratado no SUS, com a pressão imposta pela pandemia, espera-se que os serviços voltados para as pessoas vivendo e convivendo com o HIV/AIDS (PVHA) sejam descobertos ou estes fiquem ainda mais vulneráveis pela doença ser uma comorbidade – principalmente para aqueles ainda sem carga viral indetectável. Além disso, também existem preocupações sobre o acesso a medicamentos e o aumento da vulnerabilidade nas principais populações.
Neste momento, em que a sociedade brasileira começa a vivenciar o caos dentro do SUS através da falta de leitos, equipamentos, medicamentos e profissionais de saúde a necessidade de se adotar a prevenção como um direito é crucial. Mas de que modo realizar este processo em meio a uma pandemia onde os direitos das minorias não são respeitados e os profissionais de saúde se veem sozinhos na linha de frente?
Para analisar os impactos desse cenário de “terra arrasada” o Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens entrevistou por e-mail um de seus coordenadores e assessores de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), Juan Carlos Raxach. Na entrevista, o médico analisa a relação do coronavírus com o HIV/AIDS, os desdobramentos causados pela pandemia no SUS, a vulnerabilidade de pessoas já afetadas por violências estruturais, a prevenção como remédio para se proteger do COVID-19, entre outros.
Confira a entrevista abaixo:
1. Hoje observamos um colapso dentro do sistema público de saúde com o crescente número de casos de transmissão do coronavírus. Agora os desafios mudam? Se sim, quais são eles neste momento.
R: O colapso que observamos dentro do sistema de saúde pública já vinha sendo gestado. Não podemos colocar a culpa toda na atual gestão nem no atual governo. Já desde anos anteriores o SUS (Sistema Único de Saúde) vinha sofrendo com a diminuição de leitos para internação e problemas no oferecimento de serviços. Mas existe uma grande diferença: a morte do SUS foi decretada e colocada em ação no atual governo de Bolsonaro e, no caso especifico do Rio de Janeiro, executada por (Marcelo) Crivella de forma ardilosa e se esquivando na falta de verba.
Antes do surgimento da pandemia o SUS vinha se desmantelando. No Rio de Janeiro, pouco antes do surgimento da pandemia de covid-19, a prefeitura do Rio de Janeiro tinha acabado quase por completo com as equipes de Saúde da Família (SF) incluindo Centros Municipais de Saúde (CMS) e Unidades Básicas de Saúde (UBS), com a demissão de professionais de saúdes – médicos, enfermeiros, técnicos e Agentes Comunitários de Saúde. Os serviços da atenção básica foram os mais afetados. Em 2018 Crivella anunciou o corte de R$725 milhões na área da saúde e a demissão de 239 equipes no município (184 de saúde da família e 55 de saúde bucal. Na época criou-se o Movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) com o objetivo de informar à população sobre o sucateamento das clínicas de família e os programas de saúde mental, os CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) no município, hoje altamente necessários no enfrentamento da epidemia de covid-19
É claro que os desafios mudam. Sem o SUS o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus é um fracasso total. Até o próprio ex-ministro (da Saúde Luiz Henrique) Mandetta que pré-pandemia de covid-19 nunca tinha feitos elogios ao SUS e que de alguma forma se mostrava a favor da privatização da saúde, na sua coletiva de imprensa durante a sua despedida do Ministério da Saúde, mencionou a importância do SUS. Um SUS que enfrenta grandes desafios por não estar preparado para enfrentar a pandemia pela falta de leitos de UTI e equipamentos adequados para dar suporte aos infectados pelo covid-19 como a falta de respiradores, principalmente, junto com a insuficiência em números de profissionais e de insumos de proteção.
O Brasil não foi capaz de se adiantar à crise e preparar sua estrutura e infraestrutura de saúde adequadamente para encarar a pandemia de covid-19 e mitigar os danos que ela viria causar. O grande desafio até hoje é a falta de vontade política pelos máximos representantes do Brasil liderados por Bolsonaro que encara a pandemia de covid-19 de forma trivial e completamente desumana e com ele seus apoiadores.
2. Uma das principais medidas adotadas pelo Governo é o isolamento e o distanciamento social. Contudo, a conjuntura financeira e cultural das pessoas de classes mais baixas vem dificultando uma maior adesão. Existe outra saída para uma diminuição de casos sem o isolamento social?
R: Infelizmente não existe outras saídas para deter a pandemia de covid-19 que não sejam as do isolamento, distanciamento social e de higiene pessoal e respiratória. O Brasil e os meios de comunicação divulgam constantemente as medidas adequadas para prevenir a transmissão do covid-19 em contraposição às imagens e declarações irresponsáveis da Presidência da República que desrespeita essas medidas e estimula seu descumprimento, o que causa com certeza a propagação da pandemia e a cobrança de vidas.
Fique em casa o quanto puder!
Para lavar as mãos: a lavagem adequada das mãos deve durar entre 40 e 50 segundos, utilizando sabão suficiente para que a espuma cubra toda a superfície das mãos, esfregando bem a palma das mãos, caprichando na limpeza do espaço entre os dedos e também do dorso e do punho. Depois, enxágue até tirar todo o sabão e, em ambientes coletivos, seque as mãos com toalha descartável e a utilize para fechar a torneira se ela não for de fechamento automática. Em casa ou em lugares que não tem toalha descartável lave a torneira antes de lavar as suas mãos.
Use máscaras sempre que estiver em ambientes coletivos. A utilização de máscara aumenta a proteção, mas mesmo utilizando-as devemos manter o distanciamento recomendado de pelo menos 1.5 metro entre pessoas.
Higiene respiratória: Cubra o nariz e a boca com um lenço de papel ao tossir e espirrar e depois, jogue o lenço no lixo e higienize as mãos (com água e sabão ou álcool em gel 70%). Se não tiver um lenço disponível, deve cobrir o nariz e a boca com o braço dobrado, usando a “parte interna do cotovelo”, e nunca as mãos.
3. A cidade do Rio de Janeiro está há mais de 45 dias em isolamento/distanciamento social. No entanto, as taxas de infecção por COVID19 e mortalidade por problemas respiratórios seguem crescendo. Para você o que faltou no preparo dos governos municipal e estadual para o enfrentamento mais forte da pandemia?
R: Acho que de alguma forma já respondi isso. Não podemos falar do Rio de Janeiro sem antes falar do Brasil. A unidade federativa não foi capaz de preparar o país adequadamente para encarar pandemia de covid-19 e mitigar os danos que ela viria causar. O país negou (fechou os olhos) a realidade que se estava vivendo em outros países, e pouco fez para tentar reproduzir experiências bem-sucedidas na contenção da pandemia.
Pelo contrário, o governo liderado por Bolsonaro fez pouco caso e foi omisso (quanto a) realidade, ridicularizou seus profissionais e de forma desumana tem ido na contramão das recomendações internacionais da comunidade científica aplicando sem escrúpulo a chamada Necropolítica com falas constantes que tentam relativizar a situação que estamos vivendo como, por exemplo, as ditas em entrevistas: “Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida. Não pode parar uma fábrica de automóveis porque tem mortes no trânsito”.
Faltou vontade política e sobrou ações genocidas por parte de alguns dos que dirigem o Brasil, liderados por Bolsonaro e que encaram a pandemia de covid-19 de forma trivial e completamente desumana. Neste momento está faltando coragem para tomar medidas mais estritas como o lockdown (palavra em inglês para se referir ao sistema de quarentena mais rígido) com a paralisação total no que se refere principalmente ao fluxo e deslocamento das pessoas. Essa medida pode incomodar a muitos, mas com certeza salvaria muitas vidas!
Nosso sistema de saúde tem se dirigido para o colapso e hoje em alguns estados e municípios – incluindo o Rio de Janeiro – seus profissionais fazem a escolha de Sofia. Para tal foi até criado um protocolo que através de um sistema de pontuação escolhem quem acham que têm “maior probabilidade de sobreviver”, entre as milhares de pessoas que lotam os leitos dos hospitais, o que inevitavelmente é uma sentença de morte para os mais velhos.
4. De que maneira o COVID-19 pode vulnerabilizar ou se relacionar com as questões estruturais do HIV/AIDS?
R: A pandemia de covid-19 e a epidemia de AIDS têm coisas em comum e uma delas é afetar com maior facilidade às pessoas que vivem em maior grau de vulnerabilidade e desigualdade social e consequentemente de injustiça social e violação dos direitos humanos.
As epidemias afetam com maior gravidade as pessoas que moram em áreas de maior risco, com menos condições de saúde, de alimentação, com mais problemas imunológicos, com menos acesso a alimentação e a serviços públicos fundamentais nos momentos de enfrentar crises como a que estamos atravessando.
Um exemplo é a falta de acesso a medidas de prevenção. Como falar de higiene pessoal e o cuidado constante da lavagem das mãos em lugares onde a falta de água forma parte do cotidiano, o que aprofunda e demonstra as desigualdades estruturais?
De fato, são as vulnerabilidades sociais e as injustiças sociais que estão alimentando e servindo de espaço ideal à Necropolítica que está sendo implementada pelo atual governo de Bolsonaro.
5 – O Sistema Único de Saúde (SUS), há muito tempo, encontra-se sucateado. Porém, como diz o ditado, “ruim com ele, pior sem ele”. É isso que estamos vendo na pandemia de coronavírus por todo o Brasil. Você acredita que o SUS sairá fortalecido pós-pandemia?
R: Com o atual governo nada de bom pode se dizer. Mas é incontestável e facilmente demonstrável que sem o SUS o curso da pandemia pelo covid-19 seria outro.
Temos e queremos continuar tendo um Sistema Único de Saúde. Cabe a nós exercer nossos direitos e ditar as regras para que o SUS seja valorizado e fortalecido, e no futuro nos proteja no direito à prevenção, à assistência e o tratamento nas questões relacionadas à saúde.
6 – Com bloqueios estaduais e intermunicipais você teme um decréscimo nos serviços de testagem para HIV e o apoio para recém-diagnosticados? Que alternativas seriam possíveis para que essas pessoas, caso acreditem estarem sendo prejudicadas, quando tiverem que buscar as unidades de saúde?
R: Temo que isso aconteça SIM. Mesmo com as medidas tomadas por parte do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI) que fez o ofício que orienta sobre o cuidado das pessoas vivendo com HIV/AIDS durante a pandemia do Covid-19 e a dispensação de ARV (antirretrovirais), que pode ser feita para até três meses; já para a PrEP (Profilaxia Pré-exposição), até quatro meses.
7 – Que lições e respostas a pandemia do coronavírus pode aprender com aquela já vivenciada pelo HIV/AIDS?
R: É fundamental que qualquer medida a ser tomada seja com base nos direitos humanos.
É importante trabalhar as questões relacionadas ao estigma e discriminação que possa vir a existir contra as pessoas infectadas com covid-19. Isso pode acarretar graves problemas, como negar ou esconder a infecção e o não reconhecimento de sintomas relacionadas a infecção pelo covid-19 e consequentemente descuido com a própria saúde e a possibilidades de adotar medidas de saúde precocemente. O estigma e a discriminação alimentam o negacionismo minimizando a gravidade da pandemia e aumentando a vulnerabilidade à infecção.
O enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS demonstrou a importância de inserir as comunidades no processo de procura de soluções. As populações mais vulneráveis não podem ser mais afetadas ainda com o aumento do estigma e a discriminação como resultado da pandemia de covid-19.
8 – Que mensagem você deixaria – tanto para as pessoas vivendo e convivendo com HIV/AIDS e também para aquelas que não vivem nem convivem – sobre a importância do autocuidado nesse momento de pandemia?
R: Não existe tratamento medicamentoso para tratar a infecção pelo covid-19 e matar o vírus. A prevenção, que significa tomar as medidas de proteção para evitar a infecção, é a forma mais eficaz de se proteger e são iguais para todos. As pessoas com HIV/AIDS devem continuar tomando seus medicamentos antirretrovirais e evitar a exposição desnecessária, mesmo que protegido, ficando em casa.
Se puder FIQUE EM CASA!!!! É uma medida para todos e altamente eficaz.
Além disso devemos:
- Lavar as mãos com frequência com água e sabão, ou fazer a higienização com álcool em gel 70%.
- Se tossir ou espirrar, devemos cobrir o nariz e boca com lenço ou com o braço, e não com as mãos.
- Evitar tocar olhos, nariz e boca com as mãos não lavadas.
- Se precisamos sair à rua devemos manter uma distância mínima de cerca de 2 metros de qualquer pessoa.
- Evitar abraços, beijos e apertos de mãos.
- Higienizar com frequência o celular e os brinquedos das crianças.
- Não compartilhar objetos de uso pessoal, como talheres, toalhas, pratos e copos.
- Manter os ambientes limpos e bem ventilados.
- Evitar contato físico com outras pessoas, principalmente idosos e doentes crônicos, caso se sinta doente e fique em casa até melhorar.
- Dormir bem e ter uma alimentação saudável.
- Utilizar máscaras caseiras ou artesanais feitas de tecido sempre que precisar sair de casa.
Texto: Jéssica Marinho e Jean Pierry Oliveira