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“Às vezes você sai e não sabe se vai voltar. A gente tá a mercê de qualquer tipo de coisa. Tem lugares que eu evito de sair sabendo, muitas das vezes, que o lugar pode ser perigoso”, revela jovem trans de Duque de Caxias


Foi numa revista da Vogue que ela ‘nasceu’ para o mundo conforme sempre quis. A junção do nome de uma celebrada joalheria americana com o sobrenome de uma famosa apresentadora brasileira batizou em definitivo Thifanny Pinheiro. Aos 26 anos, a jovem moradora de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, porém nunca viveu sob o mesmo glamour com o qual suas referências nominais inspiram.

Desde a tenra adolescência que ela enfrenta os percalços de viver conforme sua identidade de gênero e, relembra, que foi um começo nada fácil. “O momento que eu me declarei e falei pra minha mãe que realmente eu era gay, ou que de repente eu queria ser trans (sic), foi com 15 anos. Eu peguei e me assumi pra ela e no momento ela falou que já sabia, mas nunca chegou em mim pra falar. Aí desse tempo pra lá eu fiquei quatro anos sem falar com ela. (Morava) na mesma casa e não falava. Eu ainda não morava sozinha (nessa época). Passava por ela, fazia tudo, mas não falava com minha mãe.”, conta.

Esse período conturbado foi, sobretudo, marcado pela incompreensão que sua nova identidade causava. Mas que, segundo Thifanny, seria diferente se apenas tivesse se assumido e vivesse como gay. “No começo, eu me assumi gay. Depois me assumi como trans e aí foi na fase que ela já não queria mais aceitar. Porque ela não queria que eu fosse trans, ela até aceitaria que eu fosse gay. Que se vestisse como homem, mas não como mulher. Eu já me identificava como uma mulher, sempre. Sendo que, na mente dela, ela achava que eu fosse um homem homossexual que se vestisse como homem e nunca se vestisse na forma de mulher”, revela. E contemporiza: “Mas eu acho que ela, de repente, não aceitou muito pelo preconceito maior com trans. O medo de acontecer alguma coisa ou alguma coisa assim do tipo”.

Mas além do conflito inicial com a mãe, outro familiar também lhe trouxe alguns entraves nesse período de sua vida. “Fora o meu tio que fiquei sem falar bastante tempo porque ele foi um dos pivôres que me fez passar vergonha. Até então ele não aceitava muito, então me fez passar vergonha fazendo eu queimar minhas coisas de mulher que eu tinha, sapato, maquiagem, roupas. Tudo. Mas até então, depois que passou um bom tempo, ele viu que não tinha mais jeito, voltei a conseguir minhas coisas e depois foi indo e eles foram aceitando”, diz ela. E de quem ela menos esperava veio o maior apoio – e surpresa.

Por incrível que pareça para o meu pai foi mais fácil do que com minha mãe. Eu achava que ele iria me rejeitar, não ia me acolher, e foi o contrário: minha mãe me rejeitou e meu pai me acolheu. Independentemente do que eu fosse ele falava pra mim que se eu tava feliz com aquilo, ele estava feliz com aquilo. Ele sempre falava pra mim que seria mais fácil me aceitar desse jeito do que se eu fosse um policial corrupto, um bandido, um assassino por aí. Ele nunca teve vergonha. Mas uma parte dele já disse também que fica triste pelo único filho homem dele ser uma mulher. E eu respeito porque devo me colocar no lugar dele um pouco de saber que é difícil a dor de saber que o único filho homem da casa querer virar mulher. Se identificar como mulher e viver como mulher pro resto da vida”, reconhece. Atualmente, todos os entreveros ficaram no passado. Morando no mesmo quintal que seus pais, porém com uma casa e entrada independente, Thifanny afirma que o respeito e o amor imperam e inclusive seu nome social é devidamente respeitado.

Identidade de Gênero

Muitas pessoas, especialmente cisgêneras (pessoas que se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram), confundem os termos que classificam uma travesti e uma transexual. Porém Pinheiro também afirma ter sido uma dessas pessoas que, no início de sua transformação, não sabia muito bem onde situar-se nessa metamorfose. “Quando eu não entendia muito bem o que era travesti e o que era uma trans e era gay, eu falava que até o último momento eu era travesti. Não sabia. Aí, depois, vim me redescobrindo e aí eu vi que realmente era uma mulher transgênera”.

Sobre a redesignação (operação para adequar seu corpo conforme sua identidade de gênero), a caxiense afirma que tem o desejo, mas não é algo tão primordial assim. “Não é que eu seja infeliz pelo que eu tenho, pelo meu órgão genital. Mas eu acho que ficaria muito mais completa fazendo a cirurgia. Eu ainda tô em dúvida se faço ou não faço. Pra você realmente querer fazer uma cirurgia você tem que pensar uma, duas, três vezes pra depois não dar errado e você ficar se culpando e ficar se cobrando Porque querendo ou não querendo não vou ser mais ou menos feliz. Tem que pensar bastante porque isso é uma ida sem volta”, avalia.  No momento, a jovem realiza tratamento hormonal pela Fiocruz onde afirma “tô sendo muito bem atendida. Tem tudo lá, para o que você precisar lá tem. É maravilhoso o atendimento”.

Transfobia

Uma nova identidade traz consigo uma nova realidade. Realidade essa brutal para pessoas travestis e transexuais quando dados apontam que o Brasil é o país que mais assassina essa população no mundo. Ciente de toda essa barbárie, Pinheiro revela que muitas das vezes, pensa muito antes de reagir a uma situação desconfortável. “É tanta coisa acontecendo, que muitas vezes pra gente não ter e evitar problemas, na minha opinião, é fingir que não é comigo. Porque hoje em dia, às vezes, se você levantar a voz e voltar pra falar de repente você pode até ser morta. Mas tem coisas que lógico que eu não vou abaixar a cabeça e também se eu ver que dá pra mim falar e debater e dizer que tá errado, eu vou chegar e vou falar que tá errado. Vou me autodefender”, explica.

Apesar de afirmar que nunca sofreu violência física – “mas gracinha hoje em dia é normal. Se deixar você ouve todo dia” – ela acredita que todas as pessoas que fazem chacota com uma pessoa travesti e transexual diariamente “deveriam se conscientizar e pensar antes de falar. Se colocar no lugar da pessoa que tá ali passando”, mas que por conta dessas e outras atitudes infelizes sua forma de evitar maiores agressões é, em muitas ocasiões, não frequentar determinados lugares.

A gente tem que viver. A gente tem que sair. Mas é uma coisa que a gente fica muito assustada. Às vezes você sai e não sabe se vai voltar, aí vai pra algum lugar e não sabe se ali pode acontecer alguma coisa. A gente tá a mercê de qualquer tipo de coisa. Sim, tem lugares que eu evito de sair sabendo, muitas das vezes, que o lugar pode ser perigoso. Então, às vezes, eu tenho receio e medo de sair para alguns lugares. Até mesmo lugares GLS (sic)”, resigna-se ao fazer referência a antiga sigla usada para LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).

Apesar dos pesares, Pinheiro afirma que mesmo como moradora da Baixada Fluminense, em seu bairro, por ser bastante conhecida, todos a respeitam. “É complicado também como em qualquer lugar. (Mas o preconceito ) ele diminuiu bastante. Lá onde eu moro eles me respeitam muito. Todo mundo me conhece, me respeita, me conhece como Thiffany e eu tenho respeito por todo mundo lá. Mas quando passa alguém pra querer tentar fazer gracinhaé com o povo que não mora lá perto da minha casa”.

Fetichização e objeto sexual

Essa são duas implicações recorrentes na vida de uma pessoa travesti e transexual: ser vista pelos olhos de quem está sempre a disposição para a realização dos fetiches e caprichos sexuais do outros. Em suma, um objeto pronto para ser utilizado. Sobre isso, Thifanny revela que entende que a maioria dos homens que procuram por ela – e por outras meninas trans – com essa característica “são tudo encubados”.

“O homem é casado com mulher e muitas das vezes é um cara homofóbico, mas que por dentro sente essa vontade, esse desejo, essa fantasia”.   E ainda revela algumas peculiaridades sobre o perfil dos que costumam abordá-la. “A maioria realmente (dos homens que me procuram) são passivos. E quando vem pra ser o ativo é muito difícil. E é raro encontrar aquele ativo que vai sair com uma trans só pra penetrar nela. Hoje em dia é a gente que chega pra penetrar neles. E só. A maioria é casado. É como eu falei: eles vivem num mundo que não é deles. De repente, ele tá ali casado com uma mulher pra viver uma (vida de) fachada pra família e amigos não ficarem pensando coisas, ouvindo piadinha. Aí eles acabam ficando num relacionamento que não deveriam estar. Onde ele não queria estar porque, na verdade, queria estar com uma trans”, atesta.

Onde muitas meninas transexuais também não deveriam e/ou não gostariam de estar é na prostituição. Marginalizadas, grande parcela desta população sobrevive do que ganha pelas ruas e esquinas das grandes e pequenas cidades brasileiras com o seu corpo. Sincera, Pinheiro diz que “não tenho vocação pra prostituição de rua. (Mas) em casa eu ainda tenho mais paciência de tentar me submeter a esses tipos de caras assim do que na rua”. E ela lista os motivos: “Porque na rua, eu já ouvi muitas amigas falarem que passam por muitas coisas: homens que não querem te pagar, homens que te levam pra um lugar e botam uma arma na sua cara e você é obrigada a fazer aquilo. Uma vez eu fui pra rua, umas duas vezes, até mesmo pra mim ver como é que era e odiei! Então na rua sempre rola uma fofoca. Até mesmo de briga ou de morte”.

Além disso, ela ressalta que não são todas as mulheres transexuais ou travestis que trabalham com a prostituição. “Nem todas fazem. Conheço uma amiga minha que ela não faz programa. Ela estuda, trabalha de carteira assinada e nunca caiu no mundo da prostituição”, conta. Entretanto, reconhece que isso é uma exceção em meio a uma regra, onde ser acolhida desde o começo faz toda a diferença. “Mas no caso dela foi que a família aceitava, então foi de boa, tranquilo. Já no meu caso teve aqueles processos todinho, então foi difícil eu conseguir o apoio da minha família. Então, muitas das vezes, eu tive que correr atrás pra conseguir comprar as minhas coisas. Aí a partir do momento que eu me assumi, parei de ficar dependendo do meu pai e da minha mãe, então comecei a correr atrás das minhas coisas”. E foi nesse período que Pinheiro descobriu um talento: o dom de fazer cabelos, algo que ela até hoje pratica.

Relacionamento

O estigma de ser tratada e vista apenas para satisfação sexual invisibiliza um outro lado: o sentimento. “Nunca tive um relacionamento. Já tive uns casos, que eu não considero porque só viam quando davam ou quando eu podia. Vinha por desejo mesmo. Fez, aconteceu e acabou.  (Nunca tiveram coragem) de me assumir ou até realmente de me mostrar o que realmente queria. Ah sinto (falta de alguém). Eu penso até no meu futuro. Porque eu vejo muitas mulheres trans maduras (que) vivem na solidão. Então eu penso muito nisso: será que um dia eu vou chegar a namorar? Será que um dia eu vou saber o que é o amor? Sentir alguma coisa pela pessoa e a pessoa por mim? Eu penso muito nisso. Será que eu vou ficar velha e não vou sentir isso?” , questiona.

Mas isso também fez a jovem questionar os tipos de relacionamentos com os quais acreditava serem bons ou esperava. E hoje ela já não se prende mais a rótulos ou caixinhas para viver (ou encontrar) um grande amor. “Se um dia eu tiver a oportunidade de encontrar até uma trans que gostasse de mim ou se eu sentisse alguma coisa por ela, eu namoraria sim. Porque eu acho que amor não existe sexo.  (Me considero) uma mulher trans bi. Então hoje em dia (se) aparecer e eu ver que a pessoa tá buscando o mesmo que eu busco, eu tentaria sim”.

Prevenção

Sim, (a camisinha é importante), mas quando ‘eu me perdi’ eu não usei. Eu tinha 15 anos, era bobinha. Eu perdi minha virgindade com um homem maduro, muito mais velho que eu”. Foi sem papas na língua e com a sinceridade que lhe cabe que Pinheiro revelou ter dado essa “e outras vaciladas”.

Todavia, consciente dos riscos que a prática sexual desprotegida pode causar, ela afirma que “hoje em dia o meu pensamento é transar com preservativo. Sem preservativo, muitas das vezes, não rola. Tem homens que quer ‘colocar só na portinha’. Aí eu falo que não rola ou dependendo do momento eu até falo que acabou. Quando já chega falando assim eu sinto que já logo alguma coisa de errado. Tá muito fácil demais, tem alguma coisa ali. E hoje em dia muitos homens héteros, a maioria, eles não se preocupam em usar preservativo. Eles querem tacar dentro e foda-se. Muitos dos homens não querem usar”,  critica.

E um dos lugares onde ela aprendeu a importância do sexo seguro, em suas palavras, foi justamente a ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS). “Vim uma vez aqui numa palestra da ABIA, aprendi mais algumas coisas com uns livrinhos que eu li daqui”.  Aliás, não somente a ABIA, mas também o Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens para ela é de suma importância.

Olha, o espaço é importante porque dá muito oportunidade para as pessoas trans, gays, lésbicas entre outras. Dá muita oportunidade pra vir, conversar, até mesmo procurar se entender, aprender muitas coisas porque te explicam e ensinam bastante coisa. E eu acho importante isso: muita oportunidade para a pessoa LGBT, pra estudar mais sobre isso. Sim, (faz falta esse espaço na Baixada Fluminense) até mesmo pra pessoa abrir um pouco mais a mente. Tem gente que ainda tem a mente muito fechada, não entende muito bem”, lamenta.

Futuro

Encerrando a entrevista, indagada sobre o que almeja para o futuro, com objetividade  e esperança ela finalizou a resposta. “(Em) primeiro lugar eu queria um mundo sem homofobia. Um mundo mais tranquilo, com mais amor ao próximo. Um mundo sem violência. Um mundo com mais sentimento. (E) um dia poder casar, ter filhos, morar juntos”.

 

Texto: Jean Pierry Oliveira

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