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“As pessoas acham que não existe, que é só uma fase sentir atração pelos dois sexos”, afirma jovem estudante de Comunicação sobre a bissexualidade (2017)


 

Os caminhos que unem o Méier, zona norte do Rio de Janeiro, até Niterói lá do outro lado da Baía de Guanabara não são dos mais amigáveis, geograficamente falando para quem, por exemplo, precisa se locomover entre as regiões para estudar ou trabalhar. Especialmente numa cidade caótica – em todos os sentidos, atualmente – como o Rio de Janeiro. Durante um ano, essa realidade foi sabidamente tirada à prova pela estudante de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, Naíse Domingues. “Só que aí depois de um ano fazendo isso eu resolvi ir morar sozinha lá. O deslocamento diário era horrível.  Eu divido apartamento com mais dois amigos em Niterói. Tem um ano e quase dois meses”, conta.

A jovem de 24 anos sempre morou no bairro de classe média do subúrbio do RJ, entretanto, sua rota sofreu alteração quando em seu caminho apareceu a estrada que a levaria até a Universidade Federal Fluminense (UFF) onde conseguiu ser aprovada no ensino superior há quase quatro anos. “Eu decidi que queria fazer Jornalismo no primeiro ano do ensino médio e eu lembro que na época foi quando teve aquela lei que pra exercer a profissão não precisava mais de diploma, aí eu lembro que fiquei muito chateada”, disse ela. Mas a chateação durou até quando a mãe de uma amiga, que é jornalista,  dissipou qualquer temor que a fizesse desanimar. Apesar da felicidade em adentrar numa das mais respeitadas e reconhecidas instituições de ensino público superior do Brasil, Naíse atesta que nem tudo são flores. Isto é, muitas coisas te deixam claro que quem estuda ali “tem uma realidade muito diferente”. “Porque você olha pro lado e vê que tipo assim, a galera que tá (sic) lá tem uma realidade muito diferente. Na faculdade pública, dependendo do curso que você fizer, é muito difícil achar alguém que precise ralar muito pra tá (sic) lá. E essa galera geralmente sai, fica pra trás, não aguenta. Essa galera fica pra trás porque é muito difícil se manter numa universidade pública”, atesta com firmeza. Mas sobre isso ela completa e exemplifica: “Eu tenho uma menina, que é inclusive do meu período, que ela é de São Paulo e veio pra cá pra se bancar e tava muito difícil pra ela, até pra ela conseguir vaga na moradia porque é muito custo. Acaba tipo desestimulando o pessoal pelas dificuldades financeiras mesmo, sabe. Principalmente as pessoas que vem de outras cidades morar aqui. E lá na UFF tem muita gente que veio de São Paulo, veio do Nordeste, veio do Centro Oeste e o pessoal tem que se manter aqui e a galera não consegue porque com esse negócio de greve você tem que ficar se mantendo aqui sem estar estudando”, pontua.

Além das dificuldades diárias que se sobressaltam, a carioca cita outro aspecto que se apresenta diante dos olhos quando percorre a unidade: a falta de diversidade. Leia-se, a baixa presença de alunos negros (dependendo do tipo de curso). Sobre isso, anteriormente contrária à medida, hoje ela entende que as polêmicas cotas raciais são bons instrumentos reparadores de desigualdades. “Quando eu tava no ensino médio eu não era a favor das cotas raciais, mas era por causa do ambiente que eu tava. Sabe, era um colégio particular e tinha aquele discurso de que ‘você é tão inteligente como o resto das pessoas’. Então eu achava que era um absurdo. Só que depois que eu saí do ensino médio eu vi que, cara, isso é muito necessário. Porque depois que você entra numa faculdade pública, você olha pro lado, você vai ver que precisa de cota racial. Porque, sei lá, numa turma de 40 alunos de Comunicação como eu, você olha pro lado e ver que tem no máximo cinco negros”, revela ela. E completa: “É porque Comunicação ainda é um curso muito elitizado porque é difícil de passar. Sim (tive poucos amigos negros no curso), de Comunicação são pouquíssimos. Tem outros cursos que tem mais, mas Comunicação é um dos que não tem”.

Mesma com essa realidade díspare, Naíse não se vê na “obrigação” de ter que fazer mais e melhor do que os outros para mostrar suas qualidades. Entretanto, não se deixa levar pela inocência e sabe que escolheu uma área em que no mercado de trabalho o tom da pele determina posições e seleciona profissões a partir de padrões estéticos. “Assim, eu acho que a questão de você estar ali em frente a um jornal como repórter e tal esbarra muito na questão do racismo e do padrão de beleza. Enquanto o biótipo da mulher negra não for padrão de beleza, você não vai ter muitas mulheres jornalistas como âncoras e como repórter. É uma lá, outra aqui e outra lá e mesmo assim nada muito diferente do que pode aparecer, porque é difícil ter aceitação da sociedade racista, você chegar e ter uma mulher da pele negra muito escura com cabelo crespíssimo e ali na linha de frente do jornal. É muito complicado”, sentencia com propriedade.

Intolerância Religiosa

Apesar de revelar que nunca sofreu nenhum tipo de preconceito, a intolerância já se fez presente no seu dia a dia. Adepta do Candomblé, uma das mais famosas religiões de matriz africana no Brasil, a estudante revela que recentemente foi parada na rua e interpelada por uma psicóloga pelas roupas e objetos que utilizava durante um preceito (obrigação). “Há um tempo atrás eu passei por um ritual que eu precisei ficar um tempo de resguardo e tudo mais. E eu tinha que sair de cabeça coberta, andar toda de branco, com as minhas guias e tudo mais. E teve um dia que eu estava vindo pra cá pro trabalho, eu saí e desci minha rua e uma senhora me parou e perguntou assim: ‘você é da Umbanda?’, aí como as pessoas não sabem a diferença eu falei ‘sou’. Aí ela disse ‘você já leu a Bíblia?’, eu falei que sim. ‘Então você deve saber que essa religião não é de Deus’ ela me respondeu e eu disse que era sim”.

Apesar de surpresa pela maneira inesperada de ser incomodada, ela tirou a situação de letra. Contudo, nem sempre é assim. Olhares são constantes e os desrespeitos também. “Quando você entra no ônibus você sente que você é o centro das atenções. Tem gente que se benze, tem gente que fala ‘não vou olhar porque vai que ela joga uma praga pra cima de mim’, tem o pessoal que sei lá, tenta se esconder ao máximo no corredor pra você não encostar”. Mas isso não a incomoda, pois “meu único problema realmente é sofrer alguma agressão (física) de verdade”. Segundo ela, dois principais motivos a fizeram enveredar pela religião como praticante: “uma é a explicação pra tudo, você acha uma explicação pra tudo, tanto no candomblé quanto na umbanda e, às vezes, as duas se complementam. E a questão da aceitação de tudo e todos. Nunca vai ter alguém que vai chegar no meu centro e vai ser discriminado por qualquer motivo que seja. Só se a pessoa for uma pessoa ruim. Mas mesmo assim a gente vai receber bem porque é isso que a gente é ensinado, sabe, de fazer a caridade até pra aquela pessoa parar de fazer o mal, tipo isso”.

Talvez seja essa mesma sabedoria que falte ao atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Líder de uma das maiores entidades neopentecostais do país, o governante se mostra conservador em suas ações políticas e tem em seu passado um livro em que critica as religiões de matrizes africanas. Sobre isso, Naíse alerta que “é horrível porque você dá voz as pessoas intolerantes. Por mais que ele ache que não, que ele só tá se posicionando, quando você tem uma figura de poder que dá respaldo para as coisas que você pensa as pessoas acabam ficando mais corajosas para atos de intolerância”, resume.

Bissexualidade

Para muitas pessoas a ideia de gostar de homens e mulheres é como se fosse uma “brincadeira” que dá vontade de realizar quando quer se divertir e depois que se satisfaz, acaba. Não para Naíse. A certeza de sua afetividade e sexualidade desde cedo era clara, mesmo durante um relacionamento estabelecido durante cinco anos com um ex-namorado “que terminou quando ele foi fazer intercâmbio”. “A partir dos meus 14 anos eu comecei a ficar muito na dúvida se eu era hetero ou não. Eu ficava tipo “meu Deus do céu não é possível” e eu ficava com aquela dúvida na minha cabeça. Hoje em dia não mais”, diz. E finaliza: “Eu, realmente assumi que era bissexual pra mim mesmo durante o meu namoro. Eu comecei a namorar com 17, então eu devia ter uns 18, por aí mais ou menos. Aí foi quando eu me assumi bissexual pra mim, cheguei no meu namorado e falei”, revela ela com a mesma naturalidade com a qual seu ex companheiro recebeu a notícia.

Apesar de lidar bem com a questão, ainda se vê limitada para explorar esse assunto dentro de casa. “Já tentei (contar pra família), mas não consegui. Eu sei, eu tenho certeza que se eu ligar pra minha mãe agora e falar assim ‘mãe eu estou namorando uma menina’ ela vai falar: ‘show’. É mais um receio meu. Pra minha avó eu sei que não falaria de jeito nenhum porque, sei lá, minha avó até hoje se duvidar acha que eu sou virgem”, responde entre risos. Risadas que somem do seu rosto quando critica a forma como os bissexuais são vistos e, muita das vezes, tratados dentro da própria comunidade LGBT. “Cara, assim eles (a comunidade LGBT) acham que a gente tá de sacanagem, eu já vi muita coisa escrota. Tem a questão do senso comum que é tipo: ou é piranha ou tá indecisa. É tipo assim ‘ah toda mulher gosta de pegar mulher pra poder chamar atenção de macho’ ou ‘você está indecisa’. Ou, sei lá, ‘você está falando que é bi pra afirmar o lado hetero, mas você é sapatão mesmo e tem nada de bissexual não’. Eu já ouvi isso, inclusive. Mas as pessoas acham que não existem, acham que você tá querendo chamar atenção, que é só uma fase e não conseguem entender ainda muito bem que você consegue sentir atração pelas duas”.

Já no que diz respeito aos cuidados referentes ao sexo e sua prevenção, consciente, ela afirma sempre transar de camisinha quando se relaciona com homens. Mas sobre a relação com mulheres ela critica a (falta de) ferramentas disponíveis para se proteger de doenças infecciosas. “Eu acho que a questão da prevenção da mulher é mais complicado, porque não tem muita divulgação de ferramentas. É uma coisa que a gente procura e tipo tem que caçar muito pra gente conseguir achar. Não é uma questão tão óbvia como da camisinha que você chega aqui e pega”. E indaga, ironicamente: “o que eu vou fazer com essa camisinha masculina? Eu e outra menina? A gente vai encher balão e bater parabéns. É isso”.

Além disso, para ela, o moralismo e a invisibilidade (dentro e fora do meio LGBT) afeta a maneira como relações afetivo-sexuais entre mulheres é visto. “(É difícil ter esse tipo de divulgação por) dois motivos: dentro do meio LGBT o B e o L estão sempre de fora. O L ainda tem um pouquinho de visibilidade que o B. O B é tipo chutado pelos dois. E tem a questão do moralismo, com certeza, porque a questão do sexo com penetração é muito mais fácil você falar “use camisinha”, mas se você chegar na rua e perguntar pra uma pessoa o que é (o sexo lésbico) , as pessoas não fazem ideia do que acontece. E ninguém nunca vai falar sobre isso”, categoriza. Especialmente dentro de uma sociedade machista e patriarcal que reduz as possibilidades de ser (ou se tornar) uma mulher. Para Naíse, a sexualidade entre duas mulheres só é protagonizada quando serve para satisfazer o fetiche dos homens. “É aquela situação que você fica com a pessoa e passa um macho escroto e fala ‘nossa, que delícia, posso participar?’. É tipo isso, as mulheres homossexuais só servem, só existem se for pra satisfazer fetiche de macho. Se não for pra isso você é tipo (um) absurdo”.

HIV, AIDS e IST’s

Para a universitária o desconhecimento é um dos maiores fatores de potencialização das novas infecções por HIV/AIDS e IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis), atualmente, entre a juventude. Mas mesmo na era da tecnologia e redes sociais, porque ainda hoje os jovens desconhecem os riscos? Questionada e provocada sobre o assunto, ela é taxativa: “porque, cara, assim a gente acha que é invencível. Acha que tipo, nunca vai acontecer com a gente. A gente tem um pouco mais de noção se acontece com alguém próximo. Porque você fica um pouco mais baqueada e se protege. No intervalo de um ano e meio eu conheci três pessoas que tiveram sífilis. Porque, assim, não se protege e eu acho que é muito moralista da nossa parte querer botar a conta disso só na questão dos aplicativos e do sexo fácil porque, sei lá, se a gente voltar no tempo a um tempo atrás às pessoas também transavam assim e não era aplicativo, mas era de outro jeito”. E mais uma vez critica a invisibilidade de ações voltadas para as questões sexuais e preventivas entre e para mulheres. “Entre mulheres eu também acho que é importante porque todos os métodos de prevenção, pelo menos a maioria que eu conheço, são voltados pra sexo que envolve homens. É tudo muito improvisado, ainda não tem nada muito oficial de método de prevenção (feminino)”.

Além de desconhecer os riscos de um sexo não seguro, a ausência do medo anda lado a lado com um comportamento vulnerável entre os jovens. Ainda que sejam da geração pós-Cazuza ou também conhecidos como “Geração Z” (caracterizado por aqueles nascidos entre os anos de 1983 e 2003), há ainda um senso comum na sociedade sobre não usar camisinha: gravidez indesejada e HIV/AIDS. “Só que eles não sabem que tem umas, sei lá, “700 IST’s” que você pode pegar. E eles realmente não sabem, tipo, não ligam pra isso porque tem a questão da ignorância de não saber que você pode pegar uma outra IST no meio tempo. E tem a questão do ‘não vai acontecer comigo’, ‘eu tomo remédio e melhoro’ e a questão do medo da AIDS, inclusive, que seria uma coisa que faria todo mundo se prevenir, não acontece mais porque não tem mais medo de morrer”, diz a universitária.

Por isso mesmo que Naíse afirma ser muito importante a existência de iniciativas como o Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), coordenado por Vagner de Almeida. “Eu acho que é importante para dar informação e acolhimento para os jovens porque há poucos espaços de referência para fala de sexualidade tão abertamente”.

Futuro

“Eu tenho muita dificuldade de planejar o futuro porque quando eu era mais nova eu planejei muito o futuro e meu Deus(!), ele desandou tanto no meio tempo. Então, tipo assim, eu aprendi que não pode fazer planos pro futuro. Tem coisas que seriam legais se acontecessem até lá tipo, finalmente vou conseguir me formar. Tá na hora de encerrar esse ciclo e sair da faculdade, porque eu não aguento mais (risos).”

Texto e Foto: Jean Pierry Oliveira

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